Seres de jardim
Aposto que as crianças de hoje
não conhecem lesmas nem caracóis nem formigas-cortadeiras... Não que eu tenha
sido uma criança (tão ativa) de quintal; mesmo havendo sido criança de
interior, fui criança de interiores – da minha biblioteca particular,
principalmente; quase não brincava lá fora, ralei pouco os joelhos e não tinha
gosto em subir em árvores. Escolha minha. E a verdade é que as tais peripécias
não me fizeram falta. Mas presenciei, com olhinhos saltitantes, muitos
espetáculos vivos da natureza: rios caudalosos, cachoeiras, árvores biodiversas e flores, muitas flores – dos mais variados
formados e matizes!.. E, lá no meio do jardim, no meio do verde dos canteiros,
o que havia? Lesmas – asquerosas (sim; é verdade), molengas e lentas... mais lentas
que o ponteiro das horas!
Mas o fato é que eu conheci as tais lesmas e observei, de perto, outros seres de jardim. As crianças de agora conhecem os
elfos das trilogias cinematográficas e dos games, mas assim como (infelizmente)
não travaram intimidade com a mitologia greco-romana em leituras clássicas, não
viram de pertinho esses pequenos seres que trepidavam feito geleia de carne
sobre as folhas e no meio da terra (assim como as minhocas). Sempre me
pareceram medrosas e acovardadas, como se demonstrassem em cada um de seus
longos instantes a certeza de que jamais poderiam ir longe – o que não era mais
do que uma confirmação da natureza. Afinal, coitadinhas
– eu pensava em minhas evasões de criança –, não passam de inofensivos gastrópodes, apesar de ficarem a carcomer
restos de frutos e folhinhas por aí... Mas apenas isso! E só aumentou
o meu sentido de piedade mirim em relação a elas, já que descobri facilmente
como exterminá-las sob um mero sopro de sal! Suas substâncias inconsistentes
logo se desintegravam...
Não quero aqui defender as lesmas
ou negar que elas, como diversas outras preguinhas naturais (mesmo fazendo
parte de um ecossistema que tudo absorve), sejam indesejáveis para jardineiros
e donas de bem-cultivados jardins. Nem quero lembrar como se proliferam, nem
que sua constituição aquosa as tornam potinhos úteis na
Cosmetologia. Apenas observei e quis falar sobre como as crianças do século XXI
desconhecem elementos da natureza como as antiquadas lesmas de jardim...
Fica faltando, então, a poesia de
jardins molhados de chuva, de jardins de esplendor de primavera, de fotos
tiradas nos bancos de ferro entre os canteiros circulares de amor-perfeito, zínias, rosas, miosótis, orquídeas e violetas!... Fica faltando um mundo natural de
cores... Faltam hoje amores e sabores de infância: a pipoca no cone de papel
dos carrinhos nas esquinas, maçãs do amor, algodão-doce, jogos de “laçar” e
ratinhos de espuma... Agora, somente mouses, metálicos e de material
inflexível. Substituições que fugiram à nossa escolha.
Assim como os pequenos bichinhos
de jardim, não se sabe mais o que é encapar cadernos e etiquetá-los (com fita
personalizada de rotulador... rs). Também não se imagina o que seja o fabrico
artesanal de um cartaz de escola – com
pó-de-serra e flores de papel crepom – retratando o mês de junho... Nem as
Festas Juninas são como antigamente: em vez de cocadas e quentões, suas
barracas agora vendem fondados e frango com cheddar no palito. A metrópole
esgarçou o campo, e a tecnologia desinventou a brincadeira. Um reino quase sem
bonecas, sem fogãozinho, sem pipas ou carrinhos de rolimã. Um reino internético
pelo qual transitam crianças que não têm qualquer contato além das formas
geométrico-metálicas da máquina! Parece até que o mundo deixou de ser redondo e
se tornou um futurista universo retangular, um reino meio quadrado, sem curvas
de imaginação... A virtualidade tomou conta da realidade e abriu mão do sonho
genuíno da infância.
Sim, tenho saudade de um tempo em
que até crianças engomadinhas, como eu era, se dispunham a tomar banho de
cachoeira e a observar a sociedade das formigas e as lesmas de jardim!...
Por Sayonara Salvioli
Um comentário:
Linda e poética crônica, Sayonara! E observação aguçada do cotidiano. Parabéns!
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