terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Com direção magistral e estética inconfundível, Tarantino suplanta a si próprio em ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD

Por Sayonara Salvioli


O filme é uma produção de 2019 (coparceria entre Estados Unidos e Reino Unido) e ganhou os holofotes esperados – até pelo próprio tema – por ocasião do Oscar no ano seguinte. No entanto, ERA UMA VEZ EM HOLLYWOD, uma obra-prima de Tarantino, prova a cinéfilos, críticos e espectadores por que é um daqueles filmes atemporais... 

Em princípio, realço aqui uma condição de cinéfila convicta: assistir a um filme de Tarantino será sempre vivenciar o “Mito do Cinema Total”, de Bazin. Seria este um modo mais do que realístico de vivenciarmos a cinematografia. De acordo com o teórico francês, isso significa o máximo que um filme pode conseguir com um espectador: leva-lo à esfera de uma vivência tão absoluta da telona, que é como se entrasse nela, numa espécie de consumação sinestésica do filme. Desse modo, haveria uma “sensação total”, a qual se afiguraria como uma paralela duplicação de realidade.

Pois bem, na minha opinião, Tarantino alcança essa proeza em seus filmes de época. Assim também foi com Pulp Fiction (USA, 1994). E a obra fílmica recriada no ambiente dourado de uma Los Angeles em seu apogeu – é a meu ver um novo retrato móvel da teoria de Bazin. Essencialmente porque Tarantino, mais uma vez, glocaliza a plateia  no exato universo pintado na tela! O cenário de seu universo ficcional é tão refletor de tal período histórico-cultural (o escolhido da vez), que nos sentimos presentes à cena, como se participantes de sua ficção bem-proposta. Assim é com o vivíssimo cenário dos Anos 60 de Era uma vez em Hollywood.





Da trilha sonora ao cenário – passando pela iconografia (principalmente a publicitária) – o espectador é convidado, cena a cena, a visitar a época e o contexto sociocultural do filme. E isso é simplesmente fantástico! Reafirmo que, para mim, é este um dos principais prodígios cinematográficos do genial diretor – e plenamente consumado no longa que, em 2020,  arrebanhou dois Oscars: o de Melhor Direção de Arte e o de Melhor Ator Coadjuvante. Nas indicações, concorria também às estatuetas de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (principal) e Melhor Roteiro Original, ou seja, recebeu seis indicações.


Além disso, desde a sua estreia – no Festival de Cannes, em maio de 2019 –, havendo sido indicado à Palma de Ouro e ganhando o Palme Dog, foi alvo feliz de nítida aclamação crítica e candidato/detentor de diversas outras premiações. Não por acaso! Além das 10 indicações ao prêmio BAFTA, foi agraciado no Globo de Ouro nas categorias Melhor Filme e Melhor Ator Coadjuvante. Sim, Brad Pitt emblematizou nesta produção! Interpretando o peculiar e charmosamente irônico personagem Cliff Booth –, o arrebatamento do espectador é notório. Seu alcance e sua vibração são tais, que o espectador não raro o vê como ator principal do filme. Sim, Pitt supera facilmente o personagem talhado para o protagonismo nesta produção, Leonardo DiCaprio, na pele do (fictício) ator hollywoodiano Rick Dalton. Pitt faz o seu dublê, mas acaba superando em muito o magnetismo do personagem principal, roubando a cena estupendamente. Tanto que venceu todos os prêmios praticamente: também o Critics’ Choice Awards e, ainda, o SAG Awards.



Bom, a “apologia” de algumas das minhas considerações anteriores nesta resenha, por si só, já ressalta a justa premiação do filme por tantas “bancas de arte”. Tarantino também arrematou os títulos de Melhor Filme do Ano pela AFI Awards; Melhor Filme, melhor Roteiro Original e Melhor Design de Produção (C.C.A.). E é esse quesito de Design de Produção que vai ao encontro, propriamente, da escolha da majoritária Academy of Motion Picture Arts and Sciences por sua Direção de Arte, reafirme-se. Dos detalhes de propaganda na TV do período à abordagem dos cenários (e dos transeuntes, dos veículos, etc.) nas ruas, tudo é apresentado ao espectador como sendo um empréstimo de realidade. E assim foi a primorosa direção de arte: da estética geral aos detalhes de recriação (de revistas, “reclames”, objetos, cartazes e produtos mercadológicos da época), é impressionante o talento do genial Quentin Tarantino em apropriar-se cinematograficamente de outras lentes do tempo.

E esse tempo revisto pelo diretor faz passar, panoramicamente na tela (inclusive de nossa imaginação), os memoráveis "Cowboys" do mais tradicional Faroeste, o Spaghetti Western satirizado na trama, o Kung Fu de Bruce Lee e, de modo pictórico, o universo Flower Power da década inesquecível, tudo, tudo pintado em tintas de uma realidade vibrante não mais retornável. 

E o elenco, lançando lume ainda mais ao filme, traz ninguém menos que o astral Al Pacino, que faz na trama o personagem Marvin Shwarz. Daquele jeito todo dele! 


Já da presença da interpretação feminina, a força vem da australiana Margot Robbie, que encontra bela consonância física na personificação de Sharon Tate – a triste protagonista do contexto trágico que, supostamente, o argumento do filme intentou recriar. A atriz fica muito bem na tela, principalmente nas cenas de metalinguagem do longa. Aliás, Tarantino também consolida muito essa proposta – de um filme dentro do filme – em vários momentos da produção. Faz isso precisa e emblematicamente!


Para além da dimensão das personas do filme, de sua já dita e bem-fadada direção artística e de sua configuração perfeita de realidade, está um olhar filosófico-reflexivo enviesado na mensagem cinematográfica: há nuances de insinuação e denúncia nas bases do que teria acontecido em torno da fatídica noite de agosto de 1969... Você reparou nas falas colocadas na boca do personagem Cliff (e suas entrelinhas)? Mais do que isso, prestou atenção aos diálogos entre Sharon e seu ex-namorado, o cabeleireiro Jay Sebring (Emile Hirsch), propostos sugestivamente pelo roteiro?

De resto, é preciso destacar – no contexto das personalidades da trupa hediondamente assassina – o horror em cena destacado pela horrível persona (no filme modificada nominalmente) Susan Atkins, vivida no longa por Mikey Madison. Na triste realidade que foi o assassinato cruel da atriz Sharon Tate [esposa do enigmático diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha)], foi Atkins quem desferiu os golpes – principal agente da consumação horrenda de que foi mentor o psicopata Charles Manson. Se você ainda não viu o filme e não conhece a história real por trás da trama fictícia, sugiro pesquisar sobre o caso policial Família Manson/ Tate-LaBianca.

Para finalizar essa resenha, me valerei de algo que me comoveu – imensamente! – e fecha, com chave de ouro fidedigna, a produção de Tarantino centrada na Hollywood dos Anos Sessenta. Foi simples e maravilhosamente poético o enfoque final do roteirista/diretor: Sharon Tate não morre na sua versão... Tarantino prefere deixá-la viva e apostar numa realidade alternativa para a sua figura, meio que a mantendo numa espécie de “feliz e propícia bolha da ficção”... A despeito de toda a configuração contextual e do momento histórico do crime, o filme acaba como se a tragédia não tivesse acontecido. Nas tintas de sua telona, o diretor propôs um outro desfecho, em que os brutais assassinos da realidade de 69 – liderados naquela noite por Susan Atkins – fossem combatidos antes que pudessem chegar à casa da mulher de Polanski. E na Hollywood tarantiana Sharon permanece linda, jovem, viva e esfuziante!... Perenemente – nas raias do que a ficção pode proporcionar, já que é livre para fazer algo acontecer, para “carimbar a realidade”, para eternizar o que bem quiser... Poesia pura! Sim, Quentin Tarantino com isso me ganhou e surpreendeu mais uma vez. Na verdade, mais do que sempre.