quinta-feira, 30 de abril de 2009

Procuração de Batismo?!

Aposto que você ainda não viu um documento como este... Ele se encontra na página 15 do meu livro A Penumbra e o Arco-íris – biografia romanceada de Zeny Bastos Villaça, sobrinha-neta do Patrono da cadeira nº 35 da Academia Brasileira de Letras, Aureliano Cândido Tavares Bastos.
          Bom, em procuração de casamento você certamente já ouviu falar: um homem em Aracaju que
          se casou com uma mulher em São Paulo em tempos pregressos... Também personalidades da               galeria histórica nacional tiveram casamentos assim.
Voltando ao documento, no caso do livro – embora o melhor da história seja, sem dúvida, o passeio pela alma humana, na abordagem da saga pessoal da encantadora Zeny – há em seu conteúdo diversos registros e documentos de época, visto que o enredo abarca o período de 1922 a 2001. Para a sua elaboração, foi feita ampla e detida pesquisa, o que pressupôs toda uma contextualização na História do Brasil, até porque a biografada conviveu em meio a ícones de seu tempo, como o presidente Artur Bernardes e o juiz Mello Mattos (primeiro Juiz brasileiro da Infância). Além disso, a genealogia da protagonista estava cercada de história, havendo sido seu tio Aureliano Cândido publicista, parlamentar e membro brilhante da ABL; seu bisavô, Presidente da Província de São Paulo e autoridade decisiva em Alagoas, e seu avô, Cassiano C. Tavares Bastos, importante desembargador brasileiro. Zeny também teve um outro tio apaixonado pelas letras (recomendado por Drummond, em sua juventude) e Ministro do Supremo Tribunal Federal, também outro Cassiano... Por tudo isso, e essencialmente pelos liames da família com o governo imperial, agraciamentos como a Ordem da Rosa e menções assinadas pela Princesa Isabel têm referência na narração. Posteriormente, a ilustre família de juristas – Tavares Bastos –, radicada num solar do Catete antigo à época de seu apogeu, também estabeleceu relações com o poderio republicano. E foi aí que o Marechal Floriano Peixoto, amigo pessoal do desembargador Cassiano Cândido, foi por este convidado para batizar seu filho, que recebeu o nome do padrinho.
É é aí que se centra o mote deste post: Floriano Tavares Bastos, que viria a ser o pai da
adorável Zeny, teve uma história pouco comum em torno da pia batismal... No dia marcado para a cerimônia, seu padrinho Floriano Peixoto – que deixara havia pouco o cargo de Presidente da República – não pudera comparecer. Por isso, o bebê foi batizado, em seu nome, por um casal de tios. Achei algo muito curioso tal tipo de designação – uma procuração de Batismo – e, ao ter o documento nas mãos (quando comecei a escrever o livro), quis descobrir o motivo pelo qual o padrinho não fora ao batizado, passando a função para outrem. Haveria sido por mero e impessoal motivo protocolar? A notoriedade do padrinho, por alguma forte razão, o teria impedido de comparecer à solenidade religiosa?... Ora, dois detalhes me despertaram a atenção na tal procuração: a assinatura tremida de Floriano e o ano de 1895, que minha memória, ao longe, parecia acusar como o ano de morte do nosso segundo presidente da República. Pus-me, então, a analisar a questão...
Quem me conhece bem sabe que costumo reter na memória tudo aquilo que me diz respeito ou interessa, sejam tais informações são quantitativas ou não. Algum estranho mistério – talvez relacionado a mecanismos psíquicos (risos perturbadores) – faz-me “saber de cor” os meus poemas, por exemplo, e ter registrados na mente trechos inteiros de meus livros. Por várias vezes, tive o prazer de narrar de memória partes decisivas de alguma história que escrevi. Não quero com isso, de modo nenhum, proclamar atos próprios; não é nada disso, certamente. Mas é que essa característica minha explica como cheguei a tal ligação de fatos... Pois bem, como eu dizia, observei a data de 1895 no documento e pensei:
– Ora, a procuração foi escrita em 12 de junho de 1895. E Floriano morreu, se não me engano, exatamente em junho de 1895!
Eu estava certa. Desde que soubera da relação do Marechal Floriano com os familiares de minha biografada e analisei todos os documentos de família (compõem um vasto cabedal de informações e registros de época) e de arquivos vários, li muita coisa a seu respeito e, involuntariamente, registrara o ano de seu nascimento e morte. Naquele dia, após a reunião, assim que cheguei a casa verifiquei a data de morte do ilustre padrinho: ele realmente morrera em junho de 1895, no dia 29, apenas dezessete dias depois de haver assinado o documento sui generis! Estendendo o meu investigativo interesse, descobri também que ele morrera de grave enfermidade (vide os trêmulos caracteres em sua assinatura, diferentemente da letra firme de sua esposa, D. Josina, logo abaixo), o que explicava a impossibilidade de seu comparecimento ao batizado do filho do amigo.  Portanto, ele estava acamado e impossibilitado de comparecer ao ato religioso. E isso gerou o documento que até hoje é guardado pela família da biografada, cujo conteúdo transcrevo abaixo, em seu tratamento linguístico original:

Floriano Peixoto, Bacharel em
Sciencias physicas e
mathematicas,
Marechal do Exercito, e sua
Mulher D. Josina Peixoto,
**********************
Pelo presente instrumento de procuração bastante feito do próprio punho do primeiro signatário e por nós ambos assignado constituímos nossos bastantes procuradores na Capital Federal ao Senhor Manoel Alves Horta _ commerciante na mesma cidade _ e a Exma Senhora D. Theonilla Cândida Tavares Bastos para em nosso nome, como se presentes foramos, tocar à pia baptismal o parvulo _ Floriano _ filho legitimo do Exmo Senr Dor Cassiano Candido Tavares Bastos; para o que conferimos aos ditos nossos procuradores todos os poderes necessários, inclusive o de substabelecerem em quem lhes convier.

Estação da Divisa, Rio de Janeiro, doze de junho de 1895.

Floriano Peixoto
Josina Peixoto

P.S.1: Já pensou, leitor, se essa moda pega? Você é convidado a ser padrinho de uma cerimônia e, não podendo, delega a missão a outra pessoa? Parece absurdo, não?... No caso dos Florianos, porém, além do contexto rigoroso de uma época, havia a peculiaridade de o padrinho ser tão notório e muito amigo da família, fatores que, combinados, pressupunham uma formalidade qualquer. Considerando isso, podemos até entender o significado de uma “dita procuração de batismo”.

P.S.2: Qualquer dia desses, farei um post aqui falando sobre a destacada trajetória de um tio de minha biografada e sua importância nacional em âmbito sociopolítico, cultural e jurídico. O ilustre era genial!

sábado, 18 de abril de 2009

Círculo de Fogo


Chamavam-no Pelengo. Era um sujeito esquisito, carrancudo, com ares de quem queria “botar fogo” no mundo. Na verdade, porém, ele só colocava fogo em objetos. Vivente sem rumo e ao relento, todos os dias fazia seu trajeto demarcado: cortava toda a avenida, ao longo da qual fazia seu desfile particular, empurrando aquele triciclo carregado de coisas velhas.

A Avenida Prestes era relativamente movimentada. Por ela transitavam, todo o tempo, veículos e passantes em sua corrida de ir e vir. E o itinerário de Pelengo passava por um supermercado, uma farmácia, uma quitanda, uma loja de tecidos, uma clínica, um hotel, uma fundação filantrópica e um restaurante. Todos que por ali trabalhavam e se movimentavam já tinham incorporado, no panorama de sua rotina, aquela espécie de peregrino com bagagem.

Pelengo era corpulento, usava um chapéu feio e roupas sempre sujas. Agasalhava-se em pleno verão, mantendo-se coberto de casacos mesmo sob um sol abrasador. Às vezes, também trazia sobre os ombros um cobertor velho e esburacado. Aquela destoância de temperatura bem revelava a sua incongruência com o mundo e as pessoas à sua volta, já que sempre parecia tão distante de tudo.

Nem mesmo Erasto, o gerente do supermercado, com seu jeito simpático e falante, era capaz de arrancar manifestações de Pelengo. Sua fisionomia desconfiada foi sempre uma incógnita, e suas palavras eram silentes, como se de um louco sem fala.

Afora as esquisitices, a maior característica do mendigo era o fato de todos os dias – por volta das dezesseis horas – fazer uma trouxa de jornal, papelão e panos velhos e atear-lhe fogo. Era mesmo um espetáculo pouco comum, que mais parecia uma ilustração em p/b de canto de página no cenário colorido de uma rua movimentada.

O piromaníaco, como todo portador de desequilíbrio, lançava mão de recursos próprios para executar seus atos diários. Tais incêndios vespertinos contavam com um aparato peculiar: Pelengo usava um cano, no interior do qual despejava óleo diesel, e sobre a improvisada pira lançava a trouxa com retalhos, revistas, caixas e outros fragmentos de lixo. Formava-se uma imensa fogueira enquanto o incendiário ficava a observar os objetos arderem, impassível e sem dizer palavra.

No início da temporada do piromaníaco pela Avenida Prestes, seus atos causavam espécie, afinal não era comum ver um homem provocando um incêndio em meio à movimentação urbana. Funcionários da clínica e da fundação em frente às quais ele passava já haviam tentado, sem sucesso, resgatá-lo para uma vida saudável. Também não foram poucos os que se aproximaram, na tentativa de o fazerem abrir-se ou entregar-se a cuidados médicos. Mas todas as tentativas foram infrutíferas, e – com o passar do tempo – Pelengo se tornou uma pintura a mais na paisagem urbana. O incendiário acabou virando uma espécie de estereótipo local, aceito e sem realces de atenção. Sua mania doentia era previsível e, àquela altura, já se sabia que ele não representava perigo para a sociedade. Na verdade, ele vivia preso ao próprio mundo, um mundo interior repleto de cinzas como as que restavam de seus incêndios.

Contudo, para as crianças, o piromaníaco era uma figura temida. O homem tinha cara feia, nunca sorria e, para completar, ainda lançava de vez em quando aquele olhar de vou te pegar. Alguns pequenos corriam horrores quando ele se aproximava.

Na verdade, ainda que de forma velada, também os adultos o abominavam desde que Wanda, a espalhafatosa vendedora da loja de tecidos, contara a desventura do pobre homem. Segundo ela – que dissera haver conhecido um parente do mendigo –, este enlouquecera por causa de uma dor descomunal. Segundo ela, aquela vida de louco era castigo, afinal “aqui se faz, aqui se paga”...

Pelengo era um homem normal, com mulher, filho e profissão. Mecânico, tinha uma pequena oficina nos fundos da casa. Tudo corria muito bem, até que um dia sua mulher precisou sair e pediu que ele olhasse o menino Laio, de onze meses, no berço. Disse-lhe o marido que ficasse tranqüila, pois tomaria conta da criança. E nada de ruim teria acontecido se uma dessas ciladas do destino não houvesse escolhido Pelengo para a ocasião... Depois de duas horas de trabalho – já tendo olhado o filho em seu quarto por diversas vezes –, o homem recebeu um chamado para rebocar um carro num bairro vizinho. Coincidentemente, nesse mesmo momento, chegou à oficina Dino, um menino de rua, de treze anos, que houvera se tornado amigo dos donos da casa e gostava de ficar observando o mecânico trabalhar em processos de soldagem. Pelengo já até lhe havia ensinado algumas coisas. E achou que poderia atender ao chamado de trabalho enquanto o garoto ficasse por lá e ajudasse a olhar a criança por um tempo. O homem, então, fitou o filho mais uma vez, fez recomendações a Dino e saiu . Pensou que a sua ausência de minutos não poderia trazer riscos ao pequeno, que dormia a sono solto e, pelo hábito diário, não deveria acordar até o fim da tarde. Já passava das quinze horas quando Pelengo, depois de trancar a casa com os dois dentro, atravessou o portão da garagem em sua caminhonete.

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O relógio marcava dezesseis horas quando Pelengo abriu o portão e viu um dos quadros mais aterrorizantes de sua vida. Nuvens de fumaça se espraiavam pelo ar na direção do quintal. Pelengo correu para ver o que tinha acontecido e, ao aproximar-se de casa, viu altas chamas nas janelas. Foi quando o homem, apavorado, entrou na casa e constatou que o quarto do pequeno Laio ardera por inteiro!

Horas depois, Pelengo olhava o que restou de sua oficina e de sua casa. Concluiu que Dino talvez tivesse ligado as máquinas de solda de que tanto gostava e, em seu desconhecimento do funcionamento do instrumento, num ambiente com galões de gasolina, acabou causando uma explosão que atingiu não somente a garagem como a cozinha e o quarto de Laio. Morreram Dino e o menino, e Pelengo acreditava ter sido o causador da tragédia. A mulher de Pelengo não o perdoara por ele ter deixado “o bebê morrer dormindo”, e o homem, já quase enlouquecido, saíra pelo mundo...

Desde então, o antigo mecânico virara incendiário. E viveu anos assim, até que um dia foi dormir, ante o desleixo de sempre, e deitou-se na rua, cobrindo o rosto com um jornal. Só que a fogueira daquele dia ainda não havia parado de queimar e, quando as luzes da cidade se apagaram, o vento soprou de novo os ares da tragédia e fez Pelengo arder junto com sua trouxa. No dia seguinte, a Avenida Prestes acordara com a notícia: o piromaníaco pegou fogo enquanto dormia. Sua própria loucura – o passado em forma de círculo de fogo – o levara à morte.


Por Sayonara Salvioli