quinta-feira, 20 de agosto de 2015


Seres de jardim




Aposto que as crianças de hoje não conhecem lesmas nem caracóis nem formigas-cortadeiras... Não que eu tenha sido uma criança (tão ativa) de quintal; mesmo havendo sido criança de interior, fui criança de interiores – da minha biblioteca particular, principalmente; quase não brincava lá fora, ralei pouco os joelhos e não tinha gosto em subir em árvores. Escolha minha. E a verdade é que as tais peripécias não me fizeram falta. Mas presenciei, com olhinhos saltitantes, muitos espetáculos vivos da natureza: rios caudalosos, cachoeiras, árvores biodiversas e flores, muitas flores – dos mais variados formados e matizes!.. E, lá no meio do jardim, no meio do verde dos canteiros, o que havia? Lesmas – asquerosas (sim; é verdade), molengas e lentas... mais lentas que o ponteiro das horas!

Mas o fato é que eu conheci as tais lesmas e observei, de perto, outros seres de jardim. As crianças de agora conhecem os elfos das trilogias cinematográficas e dos games, mas assim como (infelizmente) não travaram intimidade com a mitologia greco-romana em leituras clássicas, não viram de pertinho esses pequenos seres que trepidavam feito geleia de carne sobre as folhas e no meio da terra (assim como as minhocas). Sempre me pareceram medrosas e acovardadas, como se demonstrassem em cada um de seus longos instantes a certeza de que jamais poderiam ir longe – o que não era mais do que uma confirmação da natureza. Afinal, coitadinhas – eu pensava em minhas evasões de criança –, não passam de inofensivos gastrópodes, apesar de ficarem a carcomer restos de frutos e folhinhas por aí... Mas apenas isso! E só aumentou o meu sentido de piedade mirim em relação a elas, já que descobri facilmente como exterminá-las sob um mero sopro de sal! Suas substâncias inconsistentes logo se desintegravam...




Não quero aqui defender as lesmas ou negar que elas, como diversas outras preguinhas naturais (mesmo fazendo parte de um ecossistema que tudo absorve), sejam indesejáveis para jardineiros e donas de bem-cultivados jardins. Nem quero lembrar como se proliferam, nem que sua constituição aquosa as tornam potinhos úteis na Cosmetologia. Apenas observei e quis falar sobre como as crianças do século XXI desconhecem elementos da natureza como as antiquadas lesmas de jardim...

Fica faltando, então, a poesia de jardins molhados de chuva, de jardins de esplendor de primavera, de fotos tiradas nos bancos de ferro entre os canteiros circulares de amor-perfeito, zínias, rosas, miosótis, orquídeas e violetas!... Fica faltando um mundo natural de cores... Faltam hoje amores e sabores de infância: a pipoca no cone de papel dos carrinhos nas esquinas, maçãs do amor, algodão-doce, jogos de “laçar” e ratinhos de espuma... Agora, somente mouses, metálicos e de material inflexível. Substituições que fugiram à nossa escolha.

Assim como os pequenos bichinhos de jardim, não se sabe mais o que é encapar cadernos e etiquetá-los (com fita personalizada de rotulador... rs). Também não se imagina o que seja o fabrico artesanal de  um cartaz de escola – com pó-de-serra e flores de papel crepom – retratando o mês de junho... Nem as Festas Juninas são como antigamente: em vez de cocadas e quentões, suas barracas agora vendem fondados e frango com cheddar no palito. A metrópole esgarçou o campo, e a tecnologia desinventou a brincadeira. Um reino quase sem bonecas, sem fogãozinho, sem pipas ou carrinhos de rolimã. Um reino internético pelo qual transitam crianças que não têm qualquer contato além das formas geométrico-metálicas da máquina! Parece até que o mundo deixou de ser redondo e se tornou um futurista universo retangular, um reino meio quadrado, sem curvas de imaginação... A virtualidade tomou conta da realidade e abriu mão do sonho genuíno da infância.

Sim, tenho saudade de um tempo em que até crianças engomadinhas, como eu era, se dispunham a tomar banho de cachoeira e a observar a sociedade das formigas e as lesmas de jardim!...


Por Sayonara Salvioli




Um comentário:

Roberto M. Paschoal disse...

Linda e poética crônica, Sayonara! E observação aguçada do cotidiano. Parabéns!