quinta-feira, 5 de julho de 2018

Copa de 82: a memória de um futebol de arte





O ano de 1982 foi, para mim, um dos mais marcantes, até então (bom, creio mesmo que para sempre!). Na verdade, apesar dos muitos marcos que perfizeram a rota sinuosa daquele ano, somente agora – trinta e seis anos depois – é que me apercebi de seu valor cabal em meu histórico. Sem dúvida, isso é matéria para bem mais do que uma crônica... E como o é! Por isso, vou me ater a somente um de seus marcos daquele julho: a fatídica partida do Brasil contra a Itália nas quartas de final da Copa do Mundo da Espanha 82.

Quem não se lembra do Naranjito?... Ah, que emoções me fervem a lembrança – e isso nunca se atenuou, em nenhum desses anos – ao me lembrar do minuto derradeiro do jogo que tirou o Brasil da Copa! Chegamos aos 44 minutos do segundo tempo com uma Sayonara de 14 anos ajoelhada, clamando aos céus por um milagre que se pudesse designar Goooool!... Mas este – para a tristeza de milhões e milhões de torcedores brasileiros – simplesmente não veio... porque o milagre veio antes: a sacralização de um futebol-arte que nunca mais encontraria comparativo nos certames da Fifa campos afora!... A espetacular e inimitável Seleção Canarinho foi embora do estádio Sarriá como quem morre precocemente: mantendo-se para sempre com o frescor e a beleza de uma juventude eterna – com uma face de tal resplendor que o tempo não pode fazer esmaecer nunca, como um ente no imaginário da gente, uma espécie de entidade – linda, luminosa e encantadora! Os que vão antes da hora têm a plenitude dessa marca: uma cicatriz resistente a qualquer varredura dos anos... E se a taça foi trocada pela eternidade do símbolo, talvez tamanha aura sagrada explique por que nunca mais houve um gol de curvatura incomum como o do Eder contra a Escócia ou um ballet de saltos futebolísticos como o do time coeso de Telê! Puro engenho e arte! Era do talento individual em campo!... 



E hoje – precisamente 5 de julho – parece que se acometeu de meu pensamento uma lembrança com data marcada, como se eu adivinhasse e (re)sentisse o marco gregoriano que plantou como que uma flecha no coração do brasileiro. Saibam as novas gerações que, embora sem a vitória, a seleção de 82 alcançou no brasileiro o sentimento, a emoção mais genuína do amor e do orgulho de ser da nação que encantava o mundo com o seu propalado futebol-arte! Sim, aqui brado agora contra esse patrulhamento exacerbado do gosto do brasileiro pela Copa do Mundo! Ora, essas exigências de postura política detonando a Copa – em detrimento do patriotismo, do civismo, de um amor nacional – é um absurdo de seletividade forçada. Onde está escrito que sem o futebol o país preencheria suas lacunas sociais e cerziria as rasuras da economia? Salvar-se-ia o decoro parlamentar se parássemos de torcer pelo futebol? Ora, bolas... bolas na Rússia, bolas nos campos nacionais e internacionais, que mal faz soltar o grito feliz de gol nos intervalos das mazelas nacionais?

Deixando de lado esse tal e antipático politicamente correto, volto a um tempo em que – apesar da sofreguidão emblemática – deixou marcas de uma atuação artística do esporte, de um sonho dourado que não se pegou com as mãos, mas que deu título: a de uma das maiores seleções que as Copas do Mundo já viram! Não duvide, você que é de nascimento recente, pois assim foi! Imagine o que é ver um de seus ídolos esportivos fazendo um gol certeiro ao bater de longe e num ângulo impensável! Imagine, meu leitor jovem, que – ao contrário de agora, quando esperamos por um gol e este não sai, lance após lance – em 82 nós éramos sur-pre-en-di-dos por gols que quando ecoavam na garganta o lance já estava quase no replay, tamanha a surpresa e o rompante da bola na rede que um amarelinho mandava! Literalmente sem que víssemos antes de a redondinha ser encaçapada pela malha adversária! E a bola no (do) pé do Eder – “o canhão olímpico” – presenteava o brasileiro com uma voadora que desenhava um ângulo inacreditável e, ao desafiar a Física, se convertia num golaço como se chutado por um deus do Olimpo dos esportes, tamanha a proeza! E mais: os gols (de falta!) do Zico, a arquitetura da bola e a finalização do Dr. Sócrates, a classe acrobata de Falcão, a bola decidida de Júnior! Uma seleção arrebatadora – a favoritíssima de um certame com 24 seleções participantes – que entrou e saiu encantando!... Tão superior e extraordinária em sua graça e harmonia no gramado que, na coletiva após a eliminação nas quartas de final – fez seu técnico, Telê Santana, ser aplaudido de pé por 250 jornalistas de todo o mundo!

Então, você deve me perguntar: como um time assim não foi campeão do mundo? E eu, que nem entender de futebol entendo, faço coro aos especialistas: não se explica o imprevisível do esporte, mesmo o esporte de brilho... Como dizem todos: “aquilo ninguém entendeu; o Brasil ficou emudecido, e o mundo inteiro ficou chocado com a zebra causada pela Squadra Azurra de Paolo Rossi... E arrisco eu: talvez o deus do futebol tenha ficado com inveja de um futebol-arte que ofuscaria a luz de quaisquer dos atletas olímpicos da antiguidade! E acabou emprestando a um europeu um tributo olímpico que pertencia genuinamente a ágeis e habilidosos pés brasileiros!

Sim, era Paolo Rossi o nome do algoz que plantou três gols na nossa rede e me fez, nos momentos finais da partida, renegar provisoriamente a minha ascendência italiana!  E  o preço, para nós – cidadãos e torcedores brasileiros – foi uma condenação muito clara: nunca mais vimos o Brasil jogar com aquela maestria! Parece até que o nosso futebol-arte ficou enterrado no gramado do Sarriá, que até deixou de ser estádio (ruiu, virou pó... e só tem holofotes hoje  nas vitrines do shopping que se ergueu em seu lugar). Quanto ao italiano carrasco, para se para se redimir, hoje é um dos embaixadores da ONU para Profissionais do Futebol Contra a Fome. Comentários ressentidos à parte, el bambino de ouro da esquadra azurra, além de comentarista da Sky italiana, hoje tem também seus dias de campo ao presidir a produção de azeite e vinho de sua fazenda na Toscana.

Quanto à nossa seleção – reitero e reitero –, nunca mais voltou a exercer um futebol de sutil beleza
como o do nosso Olé na Espanha, a encantar o mundo nas quatro partidas (anteriores ao Sarriá) em que fez 13 gols de galeria [BrasilXUnião Soviética 2X1, BrasilXEscócia (4X1), BrasilXNova Zelândia (4X0) e  BrasilXArgentina(3X1)]. Tanto que quando da conquista do tetra nos Estados Unidos, em 1994, sem qualquer desrespeito aos jogadores que levantaram a taça, a emoção não foi tão farta quanto teria sido a da Copa de 82! 

Além da superioridade clara da seleção brasileira no campeonato e do consequente encantamento que sua jornada despertou em todos nós, uma tal congruência de fatores do jogo em si também corroborou para a memória daquele jogo, fadado ao fardo de uma derrota inesquecível... Foi assim: inaugurando o marcador, Paolo Rossi marcou, ainda aos 5" do primeiro tempo; alguns minutos depois, precisamente aos 12", Sócrates empatou. Primeiro alívio. Depois, aos 22", Falcão fez o gol que nos dava a (provisória) vitória. Alívio enorme... e reconquistada a confiança em nossa integridade imbatível... mas por pouco tempo: exatamente três minutos depois, aos 25", o terrível Rossi marcava seu segundo tento e empatava a partida! E o sofrimento atingiu um quase ápice aos 29", quando o goleador italiano terminou de fazer a sua festa, assinalando o terceiro e último gol, que sagrava a Itália e nos tirava da Copa de que éramos "a grande constelação"! A partir desse ponto, o sofrimento só fez se intensificar, dando-nos – instante a instante – o sabor amargo de uma eliminação histórica! 

E na galeria das grandes tristezas simbólicas nacionais ficou a imorredoura lembrança, que se fez presente por muito tempo nas lamentações populares... A chamada “tragédia do Sarriá” deixou meu pai reclamando anos a fio: “Ah, se o Cerezo não tivesse voltado aquela bola”... Outros culparam o Waldir Peres(in memoriam)... Mas nem um nem outro pode em sua figura suportar o peso de uma derrota que não se explica, já que nosso time, nossas condições técnicas e nossas táticas eram visivelmente melhores, bem como o histórico na primeira fase, haja vista que a Itália fez uma campanha de franca dificuldade, apagada e sem expectativa... 

Mesmo não conseguindo encontrar respostas até hoje, talvez tenha ficado uma lição para o povo brasileiro e para cada um de nós: em guerra contra inimigos em momentos decisivos, talvez mais importante do que o ataque seja a defesa!

Por Sayonara Salvioli