terça-feira, 21 de outubro de 2008

O gordo da banca da esquina


Apesar de ser do interior, originariamente, tenho alma urbana. Gosto de barulho, ruas cheias e cenários de concreto em cubos (prédios) entremeando árvores com projetos paisagísticos. Apaixonam-me menos os campos esparsos das fazendas que os parques urbanisticamente gramados das grandes cidades. Minha preferência de alma é tamanha que, mesmo em cenários paradisíacos, se silenciosos, fico triste no quarto dia e penso em voltar para casa.

Por tudo isso – e mais uma infinidade de quesitos que enumerarei crônica a crônica –, gosto de morar no Rio de Janeiro. O Rio adorável da exuberância natural do Pão de Açúcar ornado com os trilhos do bondinho em sua rotina de ir e vir, poeticamente, sobre cabeças cariocas – e baianas e pantanenses e gaúchas e potiguares e estrangeiras...

Depois de horas ao computador, escrevendo textos técnicos ou artísticos, gosto de descer e observar a correria do mundo e a multidiversidade de seus personagens. Dou-me, então, uns merecidos intervalos e me entrego à eterna curiosidade sobre o fenômeno humano. Ao atravessar os portões do condomínio, observo a minha síndica (merece uma crônica!), com seu carioquês sui generis a fiscalizar o trabalho de um contingente de dez sofridos porteiros. Depois me misturo aos rostos desconhecidos da calçada, na captação de semblantes e energias próprias de multidão. Olho para a fileira de carros no sinal, a calçada com seus transeuntes e a diversidade de pontos comerciais da rua: restaurantes – peruano, chinês, japonês e colonial –, além da cervejaria de modalidades raras e a casa de produtos nordestinos. Do Intihuasi à Herr Brauer, do China in Box e Nobu Matsuhisa à Sorveteria do Nordeste (merchandising gratuito para todos eles!), aprecio as diversificadas ofertas – nacional e multinacional – de gostos e paladares. Mas, no fim, sempre volto ao bom e velho restaurante com cara nacional, para o consumo cotidiano de sua picanha fatiada, seu caldo verde e suas pizzas.

Além dos restaurantes, também há na minha rua (uma delas, pois meu prédio é de esquina) uma papelaria de que sou habitué, o salão de beleza de nome (e preço) francês que freqüento e um prédio com cinco agências de modelos (que de nada me servem, diga-se de passagem). Ah, já ia me esquecendo da academia de ginástica (esta, então, inexiste para mim!), da floricultura, da loja de assistência técnica de eletrodomésticos, das farmácias e das clínicas. Porém, úteis mesmo são os restaurantes! São eles os meus points de visita prediletos na prática de atividades diárias!... Sou adepta da boa mesa e cometo, na constância dos dias, um tal pecado capital de gula que me traz as duras penas dos quilinhos adicionais! Falando nestes – e abominando-os naturalmente –, logo me vem à mente outro ponto de atração da minha rua: uma banca de jornal, com seu peculiar dono de larga fachada (é sem vírgula mesmo, pois a fachada a que me refiro é a do dono, um gordo de mais ou menos 130 Kg e, com boa vontade de minha parte, 1.50m de altura). Pois bem, o gordo da banca da esquina intenta ser o personagem central desta crônica narrativo-descritiva, de humor despretensioso e leves toques de concepção poética da realidade.

Na verdade, nos últimos meses, o gordo tem sido uma figura esmaecida na minha imaginação, já que não tenho visitado a banca em fluência coadunante com as minhas vontades. Uma destas era a minha mania de dirigir-me até lá, não para comprar jornais ou revistas, mas – siim!!! – para comprar balinhas não-dietéticas de deliciosas e “puxantes” calorias condensadas (existem guloseimas mais gostosas que essas balas aderentes aos dentes?)... Pois é...

Então, há alguns bons meses (mudei, temporariamente, minha mania de balas para mousses e tortas), eu tinha um hábito praticamente religioso de passar na banca todos os dias e comprar 20 balinhas. Atitude de pouco exercício cerebral, visto que seria mais inteligente comprar – de uma só vez – 100 delas, a fim de tê-las em casa, o que evitaria a peregrinação diária à minha Meca doce. O(a) leitor(a) não acha? Imagino que sim. Mas a verdade era que eu distribuía assim a minha compra de balas avulsas. Possivelmente, como narrei acima, para descer às calçadas e misturar-me com o mundo.

À época de minha freqüência diária à banca do gordo, eu passava por algumas suaves crises de raiva quando me deparava com aquela cara larga dele, a me sorrir com seu sorriso farto, como se a dizer: “Ah! Já voltou de novo pra comprar balas? Elas engordam, sabia? Veja como fiquei!” Gordo chato, gordo feio, gordo abusado! E o pior nem era esse meu pensamento a pressupor a plausibilidade do dele. Pior ainda que isso era o fato de ele parecer me considerar uma integrante do seu grupo de gordinhos tarados por balas... Era como se ele dissesse: “Lá vem ela de novo! Está viciada mesmo!”... Mais que isso, me irritava profundamente a impressão nítida que ele me causava: parecia demonstrar que já me considerava no seu futuro bloco de gordos! A coisa era tal que, ao chegar em casa, muitas vezes eu analisava no espelho se estavam visíveis as minhas recentes aquisições calóricas!... Viagens paranóicas por culpa do gordo! Ora, que acinte, que despautério (como diriam os literatos antigos)! Que abuso! Posso estar um pouquinho acima do peso (sem contar que mulher sempre acha que está), mas nem mesmo um decênio de ingestão daquelas balas poderia operar tamanha transformação na minha aparência! Aquele gordo se mostrava totalmente no sense ao pensar que seria eu uma de suas colegas por afinidade de gula... Por afinidade de gula, podia até ser, mas não por similaridade de peso, isso jamais!

E ainda havia outro detalhe: se eu passasse, no mesmo dia, pela segunda vez em frente à banca, ele se adiantava na minha direção - com as mãos cheias! - na intenção clara de aliciar-me para novos consumos e calorias! Eu ficava com tanta raiva que passava direto; sequer olhava na direção da banca! Outra coisa que ele fazia, a acirrar-me uma "ira branca", era ofertar duas ou três balinhas a cada compra: "Estas são de cortesia". Mas não era cortesia, nada! Apenas mais uma de suas intenções sarcásticas. E a minha reação (o(a) leitor(a) bem pode imaginar) era jamais aceitar tais ofertas! Mas ele nem se tocava com a minha veemente atitude de retaguarda; parecia não se dar conta de sua inconveniência, tampouco de sua figura... Tenho mesmo a impressão de que ele ficou gordo assim por permanecer lá, o dia inteiro, alheio ao mundo durante algumas décadas, a chupar aquelas balas... E declaro que não quero ser sua seguidora na seita do açúcar e do mel (Ah, as balinhas de mel!)...

Mas o fato é que abandonei essas frivolidades de rotina e, sempre que passo pela banca, sorrio para o gordo com ares de vitória e superioridade! Ah, ah! Você não pôde comigo, penso. Ele, no entanto, com aquela expressão cínica que lhe é peculiar, continua a sorrir-me seu sorriso debochado de dentes feios e mínimos, claramente afetados pelo açúcar dos anos! Às vezes, animada que fico por havê-lo vencido, ainda viro a cabeça para trás, dou novo sorriso e acrescento com o olhar: Gordo bobo, olhe só como sou diferente de você! Nem preciso dessas balas! Ih!... Não é que, ao narrar esses fatos de recente passado corriqueiro, momentaneamente, fiquei com saudades das tais balinhas... Humpf! Tudo por culpa daquele gordo da banca da esquina!

Por Sayonara Salvioli


P.S.: Deixo claro aqui que tenho amigas e amigos gordinhos, que são pessoas maravilhosas e das quais gosto muito. O meu problema é só com o gordo da banca da esquina!


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A mulher e o gato



Texto publicado, em 1999, no site cultural Pátio, no espaço Crônica do Dia, e em 2000 na "Gatolândia", antologia editada pela Blocos.

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Conheci a mulher na vizinha casa dos Santos Abud. Lembro-me bem da primeira impressão que me causou: não me despertou simpatia. Suscitou-me, antes, um sentido de desconfiança, denunciado pela frieza do olhar. Sem querer parecer junguiana, costumo conceber, numa pretensa análise de almas, a grande variedade dos tipos humanos. Meu grande hábito é observar as pessoas, delas buscando intuir a essência do espírito. Assim vou acumulando um arsenal múltiplo de personalidades estudadas. E, estranhamente, aquela mulher desconhecida remetia-me a análises profundas da alma humana.

Era uma criatura opaca, dessas que o viço e a transparência há muito abandonaram. Mulher do povo que era, trabalhava como doméstica e emprestava à vida dos patrões um pouco da sua. Seu dia a dia confundia-se com o dos habitantes da casa, que adotara como sua responsabilidade. Apesar da impressão inicial negativa que me despertou, aos poucos foi ganhando a minha credibilidade.

Em seus sessenta e poucos anos, malfadados pelos maus-tratos do ofício, tinha rosto cansado e pele alquebrada. Trazia sempre um desbotado lenço estampado sobre a cabeça e trajava roupas preferencialmente exuberantes, numa perceptível desproporção e assimetria de cores e formas. Era morena, tinha o rosto achatado e um certo ar inflexível. O olhar era brilhante, porém calculista. Falava pelos cotovelos e, ao que se sabe, tal característica a impeliu, por diversas vezes, à perda do emprego. Essencialmente porque, ao falar tanto, já não sabia se fazer ouvir. Também raramente se predispunha a escutar o que lhe era dito, fator preponderante de irritação da patroa.

Sua rotina começava cedo; iniciava as tarefas da casa nas primeiras horas do dia. Entre ininterruptas narrativas e "uma coçadinha" de cabeça, mesclava seus afazeres. Era estabanada na execução de algumas funções, mostrando-se, porém, inigualável cozinheira. Seus pratos eram verdadeiros petiscos de deuses! Sabia, como ninguém, imprimir ao sabor da comida a prazerosa sensação de paladar satisfeito. O arroz-com-feijão de cada dia era uma verdadeira ambrosia; todos da casa lambiam-se de prazer à hora das refeições!...

Havia dias em que estava estupidamente mal-humorada, debatendo-se em reclamações constantes. Era realmente de causar mal-estar até mesmo à gentil Dona Cândida, que, como seu nome, emanava uma certa placidez de espírito. Esta era normalmente calma e paciente, irritando-se, contudo, com Dona Anísia. Vez por outra, perdia as estribeiras, a ponto de quase despedir a falastrona. 

Eu, que convivia no ambiente, passava a me interessar, cada vez mais, pelas estranhas atribuições pessoais daquela senhora. Ela misturava em si qualidades e defeitos que pareciam não combinar. Parecia pouco plausível que uma pessoa tão dedicada ao trabalho pudesse ter aquela expressão no olhar e nos gestos. Também era estranho que, com tanta respeitabilidade pessoal e moral (mostrava elementares princípios de ética), não se deixasse afetar pelo amor da convivência. Dona Anísia não fazia mal a ninguém, mas também não se tomava de amores por aqueles com quem convivia. Talvez sua vida passada de sacrifícios e sofrimentos pudesse explicar aquele jeito avesso.

Confidenciou-me, certo dia, que fora casada com um homem que não gostava de tomar banho. Afora as asquerosas condições higiênicas do companheiro, este ainda a maltratava e atrapalhava... Por causa do fulano, já até perdera "importantes empregos”... Seus filhos viviam longe, e a sua companhia era um bonito animalzinho branco e peludo: um gato angorá chamado Mano. Era esquisita e improvável a relação dos dois. Eu, que nunca estudara animais, vi-me subitamente interessada pela psicologia de ação do bichano. Este acompanhava a pobre solitária na ida e na vinda do trabalho. Dona Anísia morava dentro do espaço da chácara, a cinquenta metros da residência dos patrões. E, apesar da curta distância que a separava do local do emprego, compromissava-se o gato a fazer-lhe companhia, impreterivelmente, pela manhã e à noite.

O gato chegava logo cedo com Dona Anísia à casa dos Santos Abud. A seguir, Mano retornava ao casebre próximo da empregada, onde permanecia por todo o dia. Não se via ou ouvia qualquer sinal do animal, que se mantinha oculto no interior da casinha branca de Dona Anísia. Somente à noite o bichano apontava ao longe, ressabiado, desmascarado apenas pelo olhar ofuscante. Silencioso, prostrava-se sob uma árvore próxima à cozinha, diante da qual esperava, deitado, o retorno da amiga. Noite clara ou tenebrosa (nem mesmo tempestades o desobrigavam da missão, apesar da natural aversão de gatos por água), lá estava ele a perscrutar os passos da companheira, que com ele retornaria, mais uma vez, ao lar compartilhado...

Era profundamente impressionante ver a precisão cronológica do gato, que, na hora determinada e constante da saída da mulher, assomava à casa de seus patrões. Tal cumplicidade irracional (seria realmente?) chegava a assustar-me. Como poderia um animalzinho, com tanta acuidade, compreender e efetuar aquela sistemática de vida? Mano, notadamente, não sabia ver horas e falar, mas marcava o tempo como um humano, além de parecer aveludar, com falas caladas, a vida rústica daquela mulher.

Ainda hoje me lembro com carinho da pobre criatura, que abandonou a casa de meus vizinhos meses depois. Diante de seu natural desapego, ela não se fixava, permanentemente, em um emprego. Tal fato (como tudo nela) impressionava a quem quer que fosse, já que detinha em si algumas qualidades desejáveis. O caçula da casa, inclusive, apegara-se a ela. Acho que entendi o motivo: Dona Anísia imprimia uma certa ordem e segurança ao lar, apesar do quê de insatisfação e afastamento que, desde o início, percebi em seu olhar. Mas ela não criava raízes, simplesmente porque não as tinha em seu espírito. Seu liame era apenas o gato.

Valores e estranhezas à parte, a maior lembrança que tenho de Dona Anísia é a sua incomum relação de amizade. Normalmente, o cachorro é considerado o grande amigo do homem. Todavia, naquele caso, o amigo fraternal era um pequeno felino.

Minha alma de poeta faz-me, comumente, divagar por essa lembrança. Vez por outra, pareço vislumbrar em pensamento o olhar enigmático, longínquo e soturno de Mano... E, ainda que eu viva cem anos, nunca me esquecerei da estupenda história real daquela mulher e seu gato.


Por Sayonara Salvioli

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