domingo, 9 de junho de 2019

A TRÍADE ELEMENTAR DE MESTRE KELVIN





A TRÍADE ELEMENTAR DE MESTRE KELVIN



Em tempos antigos, junto à costa noroeste da Europa, vivia uma civilização bastante socializada e desenvolvida. A organização de sua sociedade era tal, que raramente havia conflitos de família ou grupos. Todos viviam em harmonia com a natureza e com os irmãos de nação. Mais do que isso, ainda: nunca houvera uma só guerra civil naqueles domínios.




Pois bem, lá havia construções rochosas com cobertura de palha e similares, e uma  área centralizadora, onde funcionavam a Casa do Governo, um mercado de víveres e uma espécie de Fórum. E havia uma praça circular, cercada de pedras, onde funcionava uma Escola de Ábaco – lugar onde se ensinava Aritmética e Raciocínio Lógico aos educandos. Bem ao centro, um púlpito, onde mestres também pregavam para os discípulos ensinamentos de Botânica, Filosofia e Linguística.

O mestre principal daquele pequeno Ágora – como viria a existir na Grécia tempos depois – era um homem alto, muito magro e meio corcunda, mas com uma força tal no olhar e tanta vida nas palavras, que – durante o percurso suave e belo de sua oratória – era como se até as pedras do lugar ganhassem vida e, paradas em sua estática, se pusessem a ouvi-lo, extasiadas com tanta sabedoria!...

Mas não era apenas sabedoria que emanava das palavras de Mestre Kelvin; havia amor e caridade em suas lições. Estas eram tão profundas e verdadeiras, que poderiam – se aplicadas na vida em sociedade – tornar aquele pequeno país uma grande nação, talvez até um reino capaz de agregar várias civilizações.

Pois bem, Mestre Kelvin estava ali ajudando a formar cidadãos para o seu país, e um de seus ensinamentos mais importantes referia-se ao caráter que todo filho daquela terra deveria ter. Ele dizia às suas turmas de atentos ouvintes:

– O princípio da civilização humana baseia-se numa tríade: Bondade, Honra e Verdade. Quem souber aplicar estes três elementos poderá, em qualquer circunstância de sua vida, até governar o mais conflituoso reino.

No dia em que Mestre Kelvin falou isso à turma de Lórien, ele, Ceridwen e Maedhros ficaram reflexivos por longo tempo, pois desejaram ardentemente alcançar, algum dia, a sabedoria de alcançar e praticar aqueles três princípios, como ensinava o mestre. E, na verdade, com o passar dos anos, eles até se saíram bem – como conciliador, médico e guerreiro, em suas respectivas funções.

Um dia, no entanto, quando o reino estava prestes a entrar em colapso e se anunciava a primeira guerra civil daquele povo, insurretos reuniam-se numa caverna junto à entrada da cidade-reino e conspiravam contra o rei Angrod. Este deveria cair... Acontecia, porém, que o Primeiro-Ministro era, então, o bom e velho sábio dos três discípulos de outros tempos: Mestre Kelvin. E derrubar o rei significava atentar contra a vida dele! Ele poderia mesmo morrer... Quanta ingratidão isso não representaria! De todo modo, os inconfidentes precisariam decidir a respeito: na dominação do reino, que estava iminente, o que aconteceria aos membros do ministério e, sobretudo, ao conselheiro-mor do rei?

Foi aí que Lórien, um dos antigos discípulos, professou:

– Não pode haver dúvida. Se derrubar o trono e ocupá-lo, em regra, significa destituir Kelvin ou, mesmo, destruí-lo, a palavra de ordem está dada!

Nisto, incrédulo e estupefato com a atitude do colega, Ceridwen tentou intervir em favor do velho mestre:

– Esqueceu a tríade, Lórien? Destruir o nosso antigo Mestre será como desfazer a espiral do equilíbrio e atrair má sorte ao reino!...

E Maedhros confirmou:

– Elementar, cavalheiro Ceridwen. – e dirigindo-se a Lorien – Se você derrubar a machadadas a árvore mais antiga da floresta, estará destruindo a floresta inteira!

Contudo, Lórien não ouviu seus amigos e prosseguiu em seu plano de tornar-se rei, mesmo que para isso precisasse matar seu velho mestre. Esqueceu-se daquelas aulas repletas de sabedoria – época em que Kelvin tanto o defendera (a despeito de toda a sua rebeldia!) nos Conselhos dos Mestres – e resolveu praticar um pérfido embuste: qualquer coisa, mentiria ao povo dizendo ser Mestre Kelvin um bruxo cruel das mais arraigadas tradições celtas. Que vergonha! Lórien havia se tornado um mentiroso – e não se importava mesmo de trair e trapacear, desde que fosse para se dar bem... Quanta perfídia para um velho aluno do bom Mestre Kelvin!

Pois bem, chegou o grande dia da batalha decisiva. Antes, porém, das lutas sangrentas e dos saqueamentos planificados –, a rebelião fora deflagrada (tudo fora descoberto! Ah, a justiça do Céu neste mundo! Há... e como há!) e Lórien é que foi para a roda dos condenados: o chefe dos revoltosos deveria morrer na forca! Ceridwen e Maedhros, amigos de toda uma vida, fiéis que eram e lembrando-se do espírito de justiça do Mestre, foram até este e apelaram:

– Ó grande e sábio Mestre Kelvin, deixará seu discípulo perecer na roda dos condenados?

E Mestre Kelvin, do alto de sua sabedoria, redarguiu:

– Livrá-lo-ei da pena máxima, que é a sentenciada pena de morte, e também não o banirei do reino em vista da grande estima que nutro pelo seu pai, o conselheiro Mondrien.

Todos se interrogaram, sem nada entender. Então, uma insurreição daquela dimensão (capaz de derrubar o reino!) era descoberta e... tudo ficaria por isso mesmo? Ele mesmo, Kelvin, iria perder a vida hediondamente!... Como poderia haver tamanha complacência e nobreza de sua parte? Foi quando o velho e sábio professor explicou:

– Caro povo, a pior condenação que pode haver é a da condenação sumária de um indivíduo ao descrédito e ao desamor, essencialmente por ter declinado do ensinamento da tríade superior. Refiro-me não a uma condenação falsa e inventada, arquitetada por embusteiros e fraudadores da verdade, mas a condenação real: aquela visão – única e geral –  que todos têm realmente de alguém. Não a simulada por perfídia! Quem, afinal, espera amor, credibilidade ou justiça de perfidiosos?! Na verdade, se advindos de insurretos desonrados, tais “sentimentos” nem têm valor. Quem, afinal, os quererá? A mim, por exemplo, não interessam os favores ou as falsos sentimentos dos que não prestam. Assim é que Lórien (infelizmente, para ele mesmo) não faria falta a este mundo, mas eu sou diferente dele e, por isso mesmo, decidi conceder clemência ao inconfidente.  Como Primeiro-Ministro e Conselheiro-mor do reino, resta-me, pois, lembrar aqui o que significa a base da tríade que ensinei aos meus discípulos:

- 1- a BONDADE: ninguém perde por ser originalmente bom. Eminentemente porque isso suscita uma proteção natural – a redoma própria dos que estão blindados com a nobreza de sentimentos.  Pode até parecer a uns que ser bom significa ser bobo perante o mundo. Mas, creiam, assim não é. Não será possível a alguém guardar em si o dom da bondade se junto deste também não houver, adjacente, o dom da sabedoria. São particularidades espirituais intrínsecas, e não se pode ter um sem ser dono de outro. De modo inversamente proporcional, Lórien demonstrou não possuir nenhuma bondade e, portanto, nenhuma sabedoria também.  Com isso, estará naturalmente condenado ao que é ruim, e sentimentos ruins constituem uma espécie de autocondenação perene. Não é preciso, pois, aplicar-lhe nenhuma outra pena. E, assim, Lórien – já desvalido em bondade – ao chefiar um motim e tentar passar por cima de seu velho mestre, destituiu-se sobremaneira da segunda base da tríade:

- 2- a HONRA: Lórien desonrou-se ao conspirar contra o rei e, o que é pior, contra o seu professor. Esqueceu-se de que preparar armadilhas e motins,  trair e ferir são atos danosos e próprios dos brutos e desonrados. Quem cultiva a honra presta solene e eterno tributo a seus mentores, àqueles que, um dia, sem ganharem nada em troca, o defenderam. Como mestre, o dito mentor teria que ensinar, impreterivelmente. Mas não precisaria defender os seus discípulos com notado e nobre desprendimento, como sempre ocorreu de minha parte. Pode-se recordar agora que, já naquela época, Lórien demonstrava índole ruim e revoltosa, havendo sido defendido por seu mestre, que pensava poder confiar no bom coração dele. Então, agora, décadas depois, o antigo discípulo arquiteta tão falsa e vil acusação de bruxaria ao seu antigo  professor? Mesmo sabendo que este sempre foi um homem da arte e da ciência? Lórien, pois, feriu o princípio da honraria. Está, portanto, condenado à desonra. A pior de todas: não a imputada ou armada injustamente, mas a verdadeira desonra, aquela que atinge a pessoa mais importante: o humano desonrado, pois ele assim se reconhecerá.

-3 – a VERDADE – Ao intentar prejudicar a mim – e até conspirar contra a minha vida –, sendo ingrato e injusto, Lórien praticou –  acima de tudo – a falsidade e a mentira. Assim, feriu a terceira e tão preponderante base da tríade: a VERDADE, aquele princípio que pode definir quem é um humano, em sua real essência. Pois bem, todos sabemos que tal artífice fora uma cruel inverdade, já que foi algo inventado por um inimigo. Mas, ainda que de tal não soubéssemos, o que Lórien planejou apregoar sobre Kelvin era uma fato? O mestre, de fato, era um bruxo, praticou algum dia bruxarias ou malefícios ao próximo? Ele, Lórien, alguma vez ouvira falar de alguma feitiçaria realmente praticada por Kelvin? E, se ouvira, ele comprovara? Vira, com seus próprios olhos, Kelvin preparar alguma poção ou lançar feitiço a algum aldeão do reino? Com toda a certeza, tal não se poderia sequer mencionar, por tratar-se de absoluta infâmia. Lórien também feriu o princípio sagrado da verdade. 

Portanto, concluíra Mestre Kelvin, eis as três razões pelas quais não se faz preciso condenar Lórien: ele – de coração ruim, desonrado e desonroso, já precisa aguentar, em si, a própria e irrefutável verdade de sua autocondenação. E esta, para ele, é o pior castigo. Eu mesmo não irei condená-lo ou bani-lo daqui por sua traição. Até porque não quero ferir outros, além dele, que têm a minha boa visão e a minha consideração aqui em nosso reino. Apenas me surpreendera haver sido ele um dos maiores malfeitores da história, havendo mesmo conduzido os motinados. Se me perguntassem, algum dia, se eu o consideraria capaz de uma perfídia assim, eu diria que não. Mas tal imagem era uma ilusão – a ilusão sobre os verdadeiros amigos. E isto é capítulo para uma próxima lição.

Estas foram as palavras de Mestre Kelvin para o caso. Nem mesmo uma só a mais! Apenas ficou, para a tradição daquele povo, o teor da história, contada e recontada inúmeras vezes na aldeia original e em muitas outras. Dizem até que – tempos e tempos depois – fora essa passagem ocorrida na era pré-romana que dera origem, na Grécia Antiga, ao que hoje conhecemos como “AS TRÊS PENEIRAS DE SÓCRATES”. Terá sido mesmo? Quem saberá?...


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | ROMA


ROMA: nem só de fotografia vive o Cinema




O filme Roma ganhou rápida fama na comunidade internacional e arrebanhou premiações importantes, além de ser candidato a dez estatuetas da Academia. Mas quem se vê numa sala de cinema diante da película de Alfonso Cuarón não necessariamente se sente atraído pela trama entediante que tem apenas na direção de fotografia o seu trunfo. Sim, porque não só de conceito se sustenta um filme. E, no caso, se a fotografia do longa todo em P & B é luxuosa e até esplendorosa em seu approach, elogio similar não se aplica ao roteiro e, mesmo, à base argumentista do longa.

Desde os primórdios da história da Sétima Arte, ficou claro que o cinema não é uma junção aleatória de cenas. Um filme – para que possa ser concebido em seu sentido artístico e integral – precisa ser cadenciado, necessita ser feito de fragmentos que interajam entre si, na formação de um mosaico. Em definição bem simplista, um filme precisa contar uma história. Quando apresenta uma ideia inteira, um longa faz esse papel naturalmente. Mas Roma não passa mensagem, é lúgubre, arrastado e não possui coesão dramatúrgica.

Uma coisa é o fato de um cineasta querer trazer lume a uma ideia; outra, bastante diferente, é constituir o painel integral desse ideário e fazer o público enxergá-lo e comprá-lo com sua emoção. A propósito, já no início do século XX, Georges Méliès – com a sua mensagem de arte visual móvel – conseguiu contar breves histórias. Como ilusionista e “artesão cênico”, ele mostrou-se um mago já naquele tempo, produzindo plastica e conceitualmente um cinema de verdade quando este ainda era inventado. Isso porque – além da plástica imagética e de efeitos visuais inacreditáveis para 1902 – ele foi capaz de construir uma retórica narrativa para Le Voyage dans la Lune, por exemplo. Sem dúvida, um feito sem precedentes. Nem Léon Bouly nem os irmãos Lumière o conseguiram antes, em tal proporção e dimensão. Alfonso Cuarón, entretanto, na segunda década do século XXI não traça um discurso narrativo palpável em seu Roma. E, por mais que vivamos na atualidade a era da imagem, uma mensagem cinematográfica de verdade sempre precisa de uma story line consistente para se fazer sentir, reitere-se.

Mesmo com a sua intenção de retratar a infância e homenagear as admiráveis mulheres que o criaram –, Cuarón em seu filme não disse a que veio. Não foi claramente expressa a mensagem social do longa – que buscava retratar as relações cotidianas entre classe empregadora tradicional e empregados indígenas, no âmago do bairro de classe média alta Roma, na Cidade do México. 

O cinema prescinde de algo mais que uma fotografia espetacular para se estruturar. Também não é o bastante uma sequência com impactante edição de som, como a cena do quase afogamento de Sofi. Momentos soltos não desenharam o cenário desta produção. Além do desejo de polemizar e da imagem (unicamente) apresentada, o longa não teve o que oferecer e, na verdade, produziu duas horas de tédio para uma plateia que aguardava, ansiosamente, ver a história despontar... Meia hora, uma hora, uma hora e meia de filme... e nada de acontecer a triunfante fita que – imaginava-se – iria arrebatar os espectadores com algum acontecimento cênico. 

A atriz principal, Yalitza Aparicio, não tem uma atuação espetacular, mas ainda é a única do elenco (inteiro) a cativar o público com a incorporação de sua personagem.



No que tange ao objetivo de cineasta de romper paradigmas sociais, a temática seria boa e frutífera se houvesse uma trama consistente e bem engendrada, mas nem a rota do drama nem a composição de seus personagens demonstraram inteireza sob a câmera do famoso mexicano.

Minha decepção com o longa também passa pelos (des)caminhos de cenas sem proposta, de (supostos) conflitos sem cerne, de tentativas que não somente não encantaram como também não (simplesmente) agradaram. Pelo terremoto que se ameaça, pela história de separação que não faz sofrer, pelo intencionado drama que quase nunca emociona (apenas Cleo em sua perda passa sentimento).

Em análise realística, talvez Cuarón tenha agradado mais aos especialistas como realizador de uma façanha cinematográfica, afinal ele conseguiu que a Netflix levasse a cabo seu projeto pessoal sem características atrativas às produtoras internacionais de relevo (todo falado em espanhol e mixteco, sem os apelos multicores ou fantásticos de um blockbuster). Cuarón desempenhou o prodígio de ter seu longa-metragem difundido em estrondoso streaming. No entanto, até mesmo para ser cult, o conceito (a base, o pathos, o texto) precisa ser sólido e passar na ficção uma verdade de vertente e fato.

No final das contas, pode até ser que estas perfaçam o total de 10 Oscars no próximo domingo, 24. Mas a verdade – neste filme sem essência dramatúrgica – é que a propagação da fama (e da suposta qualidade) do longa parece dever-se ao velho efeito dominó das relações humanas... Aquela situação em que pessoas ou grupos aderem a determinada coisa em decorrência da voz geral, que vai arrastando a opinião coletiva. Disso já nos preveniu Andersen em pleno Oitocentos, com o seu conto A Roupa Nova do Imperador. É similar a alegoria para este produto, especialmente: o longa de Alfonso Cuarón parece o reluzente soberano da história do dinamarquês: sua roupa esplêndida e elogiada por todos não passa de uma convenção socialmente proposta. E neste caso – mais ainda que Fermin(Jorge Antonio Guerrero), o namorado mau-caráter de Cleo – o rei está nu e ninguém tem coragem de dizer que não existe nenhuma indumentária de brilho sobre o seu corpo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | A FAVORITA




Com direção personal e apuro estético –  concorrendo a 10 Oscars –, A FAVORITA traça retrato da sordidez humana 


Por Sayonara Salvioli



Assisti ao longa A FAVORITA num cinema cult do Rio de Janeiro, em meio a uma plateia de espectadores aficionados que – suponho – estivessem ali sabendo a que foram. Em outras palavras, eles sabiam o que esperar, já que muito provavelmente conhecem a obra do cineasta Yorgos Lanthimos. Sim, ele mesmo: o famigerado diretor grego, polarizador da tragédia e do suspense em primazia, em obras normalmente eivadas de terror psicológico e povoadas por psiques doentias. Assim foi com O Sacrifício do Cervo Sagrado (IRL/UK/EUA, 2018), que – a despeito de seu niilismo e de tanta brutalidade – arrebanhou o Prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cannes do ano passado.

Pois bem, outro esperado filme de Lanthimos chegou às telas, desta vez trocando o background da mitologia grega pelos labirintos da realeza britânica. Com uma proposta de drama menos cabal que em seus filmes anteriores e de uma estética de primor visual, ele amealhou multiplamente a promessa do prêmio mais cobiçado do Cinema: concorre a não menos que 10 categorias de Oscars em 2019.




Trata-se o drama de época da história da rainha britânica Anne, cujo reinado – contextualizado nos primeiros anos do Setecentos – proclamou a união entre Inglaterra e Escócia (e, por conseguinte, fazendo surgir a Grã-Betanha), sagrando-a  a  soberana da Casa Stuart da Grã-Betanha e da Irlanda. O filme, porém, não é fiel à realidade. Tal afirma a escritora e historiadora inglesa Anne Somerset – autora do livro Queen Anne: The Politics of Passion (Vintage Books, 2014, sem edição brasileira). De acordo com a sua biógrafa, a rainha Anne foi injustiçada pela história, havendo sido uma monarca atuante e extremamente presente nas rotineiras reuniões com os ministros do reino, por exemplo. E isso configura um paradoxo com o longa, que – a despeito de ela ter tido mesmo uma saúde frágil e mobilidade limitada – a pinta como imatura, hesitante e francamente dominada pela Duquesa de Malborough – Lady Sarah Churchill (que seria a favorita, do título).

O mais importante na película, no entanto – como querem estudiosos e especialistas da Sétima arte – não é a fidelidade ficção X biografia, e sim o que a feitura fílmica traz como proposta artística. Em análise acurada, não constituem as qualidades do longa nem a postura política da governante real nem a Guerra da Sucessão Espanhola (travada entre Grã-Betanha e França), que desenha a trama historicamente, tampouco a própria tônica do conflito central [a relação da rainha Anne (Olivia Colman) com as ditas favoritas –  Sarah/Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone)]. O conjunto da obra é que dita tal supremacia: a direção estonteante conjugada com uma fotografia esplêndida e uma iluminação descortinadora, consubstanciadas numa produção esmerada que mostra todo o deslumbramento da corte britânica do século XVIII. Não por acaso, entre as indicações para o Oscar se incluem as de melhor montagem, fotografia, design de produção, figurino e – claro! – direção.

Num longa-metragem em que a linguagem plástica fala mais alto que a narrativa retórica ou conteudística, é superada a própria estética da opulência. Os salões, corredores e jardins palacianos da Inglaterra do Setecentos nunca pareceram tão grandiosos numa película. Lanthimos não economiza no (seu) conhecido uso de lentes do tipo grande-angular, as quais – além de suas peculiaridades de enfoque – ampliam os espaços e lhes dão tanta profundidade, que parecem fazer o espectador mergulhar junto na vastidão da tela. É como se cada um na plateia pudesse adentrar as câmaras reais e os campos da nobreza inglesa, entre duques, lordes e criados a cruzarem os caminhos da corte. Caminhos esses conflituosos e emaranhados, entre personalidades complexas, a destilarem o fel da perfídia humana em sua pior forma.







Mas tudo isso, que detalharei mais adiante, não faz com que – pelo teor de um filme também na melhor linha feel bad – se deixe de vivenciar uma experiência de cinema de verdade. É quando trago à baila destas notas um sentido diretivo capaz de proporcionar uma experimentação muito próxima à estética do Cinema total de Bazin. Sim, a experiência se propõe a uma sinestesia mais do que conceitual, numa abordagem cinematográfica que ultrapassa o texto narrativo.  A verdade é que a direção de Yorgos Lanthimos – a despeito de todas as suas rudezas de enfoque humano e de sua convencionada exaltação ao bizarro – possui um diferencial em relação às demais da contemporaneidade. Não aceito por uns em seu maniqueísmo da tragédia, como agente da arte ele inova, fazendo-o a cada nova produção. E, no caso presente, porque o cineasta situa o filme em tela (mais do que enquadramentos, em linguagem) numa dimensão que pluraliza a percepção estética – arte visual como mensagem. Em A Favorita, tudo é grandioso na abordagem cênica (ambientes/locações, figurinos, acessórios fílmicos); tudo parece enorme neste trabalho de Lanthimos, que agora não divide a assinatura do roteiro, deixando este a cargo de Deborah Davis e Tony McNamara.        
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O próprio pathos, entretanto, é o grande senão neste filme de tanto impacto artístico. O enredo gira inicialmente – em seu primeiro núcleo – entre a Rainha Anne e Duquesa de Malborough. Na trama, esta domina por completo as ações e decisões da soberana, praticamente lhe ditando ideias e ordens, o que faz parecer que governa em seu lugar. As duas mantêm um romance velado, mas que obviamente salta aos olhos dos habitués mais íntimos da Corte. O império emocional da Duquesa de Malborough é tal, que decretos e leis, batalha e trégua – invariavelmente – são decididos pelos jogos de alcova: é a duquesa quem determina o limiar ou o cessar da guerra com a França, por exemplo. Tudo transcorre nessa “harmonia forçada” até que chega ao palácio uma prima da duquesa, a qual, com sua malícia e esperteza, vai tomando o lugar da parenta no coração da rainha e do reino. A partir daí, trava-se uma luta de vida e morte pelo poder. Nesse duelo, o diretor (o grande astro do filme, a meu ver) deleita-se com metáforas – visuais e conceituais – representadas ora num campo de tiro com as duas favoritas se enfrentando, ora num approach de cena com a personificação, em 17 coelhos, das 17 gestações que a rainha tivera em seu casamento com o Príncipe Jorge, da Dinamarca (entre abortos espontâneos, partos prematuros, filhos natimortos ou que pouco viveram).




Apesar do requinte na condução das cenas e na sofisticação viva dos cenários – em todo o apuro de fotografia e interpretação (destaque para Olivia Colman e Raquel Weisz) –, o que mais impressiona no filme é a indignante digladiação pelo poder. Personalidades traiçoeiras, jogos, armadilhas e manipulações (repudiantes!) são mostrados como teias de vil interesse e nenhum escrúpulo. E, em contraponto a uma rainha frágil, insegura e delirante, passa a “imperar” a jovem Abigail (antes, uma criada reclusa da cozinha), em dominância absoluta da coroa real. Nem é spoiler mencionar os apuros em que se verá a antiga favorita. Tampouco tiraria a experiência fílmica do leitor relatar a frieza dos diálogos e das relações – mais metálicas que o aço da espada da Duquesa de Malborough. Em que pese a qualidade cinematográfica do produto – aqui já bem-defendida –, o painel preponderante na vivência do longa pelo espectador é a (permanente) cena patética da frivolidade de relações – no descortinamento de uma nobreza vil e patológica, suas anomalias e desertos sentimentais. Assim é que a concepção e a mensagem do longa conseguem,  nos piores traços e nuances, pintar um retrato autêntico da sordidez humana.




Ante tudo isso, resta a investigação última: vale a pena assistir ao longa? Certamente que sim. O paradoxo da arte com a pequenez da humanidade refletida na película não impede ou invalida a experiência cinematográfica de ver um longa-metragem com qualidades plásticas – as quais lhe dão valor e o diferenciam como produto audiovisual.




sábado, 9 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | A ESPOSA



A ESPOSA: Glenn Close carrega filme e merece, mais do que nunca, o Oscar



A Sétima Arte tem andado carente de bons argumentos e roteiros, bem como de direções que tragam o aditivo do novo. Talvez seja por isso que, dentre as três críticas que escrevi hoje, duas abordem com destaque a atuação das intérpretes do papel-título, em detrimento de quaisquer outros componentes da ficha técnica. Assim é que, mais do que trama, fotografia ou produção, a dona da cena tem sido a personificadora da heroína. Sim, mulheres no centro da ribalta.

Pelas lentes do feminismo, pode-se ver – com clareza – a adequação das novas produções à vertente natural que na verdade vem moldando as civilizações ao longo dos séculos: a irrefutável presença feminina dominando a cena – e não por estrelismo, mas como consequência de suas ações e iniciativas. A propósito, estudos historiográficos podem dar conta do papel da mulher em autonomia, criatividade, arte e liderança.

Tudo isso é incontestável; apenas não considero argumento de verossimilhança uma story-line que mostra uma mulher contemporânea escrevendo livros e os “dando” para que seu marido assine e brilhe em seu lugar. Não, isto não é possível nos dias de hoje. Eis o meu primeiro rebate ao filme, pois na trama Joan (Glenn Close) é uma mulher de raro talento literário que – em nome de uma “adaptação a um mercado machista” e, mesmo, de um amor fiel e devotado – abre mão de seu nome intelectual e de suas obras. Joe Castleman (Jonathan Pryce) é um autor medíocre que se envolve com a (então) aluna e se casa com ela, vindo a apropriar-se absurdamente de seu gênio literário e de seu trabalho.

No início da trama (roteiro de Jane Anderson, baseado em livro de Meg Wolitzer), a protagonista se deixa seduzir por Joe, que – a despeito de ser um teórico e professor universitário – não possui nenhum talento literário. Como – na visão de Joan – o mundo editorial não lhe abriria as portas pelo fato de ela ser uma mulher, e embarcando na onda acadêmica do marido com o nome que este impostava, resolve ir “consertando” os seus escritos até que passa a escrever obras inteiras para ele. Tal se dá por quatro décadas – período em que ela vive à sua sombra (intelectual), embora nesse interregno vão construindo um lar com filhos e uma relação de cumplicidade. Incrivelmente, a esposa tudo suporta até o dia em que o marido, pelos méritos dela, ganha o Prêmio Nobel de Literatura e isso mexe com suas convicções de abnegação.

Ora, o mote da trama é basicamente o mesmo do filme Colette (Estados Unidos/Reino Unido, dezembro de 2018, com direção de Wash Westmoreland), em que a personagem principal também empresta seus dotes literários ao esposo. Apenas A Esposa foi lançado primeiro, em agosto de 2018. De todo modo, assisti inicialmente à biopic passada na França e em sua trama vi total sentido argumentativo, já que no período da Belle Époque (final do século XIX – início do século XX) realmente as mulheres não tinham o seu papel intelectual profissionalmente demarcado na sociedade de costumes. Tanto que isso se mostra no painel realístico refletido pelo longa. Na nossa era, entretanto, parece absurda a ideia de que alguma pessoa, de qualquer dos sexos, se submeta a uma situação dessas. Sou mulher, escritora do século XXI e, obviamente – na tônica de minhas ações e decisões – optei pela minha carreira. Fica, pois, a story-line absolutamente fora de contexto do longa-metragem A Esposa. Se sua mensagem intrínseca encontrar identificação em segmentos do público feminino (o feminismo requer muito mais do que isto), que haja a necessária ênfase – na vivência daquelas mulheres que não tenham experimentado a sua autonomia – para a necessidade premente de comandarem o espetáculo de suas vidas. Neste ponto, o discurso da atriz ultradimensional no recebimento de seu Globo de Ouro foi mais incisivo que o filme em sua fragilidade dramatúrgica. 

Nos quesitos direção de fotografia e correlata linguagem cênica, o filme não entrega o produto esperado. Menção aqui às impropriedades de enquadramento e movimentos de câmera, com destaque para a frágil atmosfera videográfica, a qual parece contextualizar as sequências com cabal artificialidade. Os cenários, todos, não tinham vida fílmica, figurando como que estáticos e inexpressivos panos de fundo. Até mesmo a sequência de majestoso brilho dos bastidores do Nobel entre os nobres e intelectuais de Estocolmo com  com aquela longa e paramentada “mesa real”, seus arranjos florais, castiçais e pratarias – parece empalidecer como fundo cenográfico, passando ao espectador a impressão de todo cenário constituir uma espécie de natureza morta visual-conceitual. Tal poderia concorrer para tornar o longa estanque não fosse a dimensão de Glenn Close, que puxa o carro sozinha com a força da sua arte. 

Restam, pois, duas considerações analíticas de nota: a mensagem de amor sólido e duradouro na relação do casal [sim; apesar da renúncia inaceitável, o amor existe; Joan amava não o escritor (que era um produto de sua seara), mas o homem] e, sobremaneira (não é demais repetir) a interpretação magistral de Glenn Close, que praticamente lhe concede, em antemão conceitual, o famigerado Oscar de Melhor Atriz. Da cena em que se “rebela” às expressões fisionômicas – olhar, choro  do momento derradeiro do longa, passando por todas as cadências fílmicas, sua atuação foi inegavelmente a cereja do bolo.

CRÍTICA | COLETTE




Keira Knightley brilha em cinebiografia centrada na Belle Époque francesa
O cenário não poderia ser melhor para uma produção de época: o período das grandes transformações culturais e científicas que marcaram a transição do século XIX para o XX. Em meio aos fascinantes ares da Belle Époque, na Paris dos artistas e intelectuais que transgrediam e mudavam a cena do mundo, desenvolve-se a trama de Colette – filme dirigido por Wash Westmoreland –, uma biopic com alguns dos típicos ingredientes do gênero.  Um aspecto a ser visto, de antemão, é a distinção da obra fílmica em relação à fonte de sua criação, a história de vida real da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette. Notadamente, uma sempre irá diferir da outra (ficção cinematográfica e realidade biográfica). 
A trama tem início no interior da França, onde Gabrielle/Colette  (Keira Knightley) conhece o escritor Henry Gauthier-Villars, o badalado Willy (Dominic West), que se casa com a jovem interiorana e a leva a viver em Paris. Uma vez nas altas e glamourosas rodas parisienses, a moça campesina se decepciona com a frivolidade e a hipocrisia da sociedade. No entanto, será a mademoiselle de hábitos simples que, com seu talento, acabará por dominar a cena do casamento. Isso porque o marido – autor medíocre que assina obras escritas por diversos ghost-writers – irá descobrir seu potencial literário e lançar como seus os livros escritos por ela(!), os quais alcançarão estrondoso sucesso em todo o país. E será essa forma deplorável de apropriação intelectual  (usando aqui um eufemismo explicativo) o epicentro do drama biográfico que enche a tela com uma Keira Knightley mais “vestida de época” do que nunca. Preâmbulo necessário, é a  exaltação à atriz principal quase que essencialmente a tônica destas notas.  Dona de uma coleção de personificações cinematográficas de época, como a Elizabeth/Lizzie de Orgulho e Preconceito, a Cecília de Desejo e Reparação, a Georgianna, de A Duquesa, a personagem-título de Anna Karenina e (claro!) a heroína de Piratas do Caribe, Knightley prova mais uma vez a sua vocação indefectível para incorporar mocinhas de outros tempos.
E, especialmente no caso de uma protagonista de vanguarda da Belle Époque, com uma marcante mensagem feminista, isso não poderia ser diferente. A propósito, são acertos do roteiro a rota da personagem principal – romancista de expressão num século adverso ao protagonismo feminino – e a mensagem sobre orientação sexual, concebida de maneira leve e natural. O texto – assinado pelo próprio Wash Westmoreland, seu falecido marido Richard Glatzer e por Rebecca Lenkiewicz – soube cadenciar com perfeição a fluida evolução da protagonista, que vai se descobrindo como adulta e como profissional enquanto se liberta como ser humano e se abre a novas perspectivas. Aqui se ressalte a tranquilidade da abordagem cênica no tratamento dado ao romance entre Colette e Missy (Denise Gough), transgênero retratado naquele período da história, em que a imagem da mulher passeava pelo ideário das camponesas das telas impressionistas, por exemplo. Ou seja, o caminhar do roteiro, ainda que em tal contexto sócio-delimitador, mostrou-se facilitador de compreensão e arrebatamento do espectador. Aposto aqui que, mesmo para as mentalidades mais engessadas, o filme soube apresentar a história e suas nuances.

A produção de arte e a fotografia, no entanto, num contexto videográfico que envolve riquezas estéticas como a Art Nouveau de Mucha, a suntuosidade do período e as icônicas belezas de Paris, propriamente, deixam muito a desejar. O figurino também poderia ser melhor. Nestes e em alguns outros aspectos focais se pode perceptar uma direção artística titubeante.
No que tange ao elenco, os destaques são, mesmo, a já aclamada intérprete do papel-título (Keira Knightley) e a destreza de atuação de seu cônjuge na história (Dominic West), o qual – a despeito dos atos ilegais e totalmente condenáveis de seu papel na “condução da esposa-autora” – consegue, ao menos no início, despertar a simpatia do espectador, tal o nível de qualidade cênica em seu jeito folgazão e aparentemente desprendido de bon vivant da Belle Époque. Obviamente – na sucessão de suas ações, pouco a pouco mostrando seu mau-caratismo –, o espectador trocará a inicial simpatia por uma natural aversão, já que, por melhor que seja o ator, seu personagem atenta contra fatores morais e a questão inflexível dos direitos autorais/patrimoniais de um(a) criador(a).
Entre os esmeros e os pecados de (quase) toda produção do atual cinema, resta um saldo positivo numa crítica analítica geral, especialmente em virtude do charme intrínseco ao período histórico retratado, e – aqui se saliente –  em uma história que cativa por sua mensagem: o crescimento pessoal e profissional de uma mulher à frente de seu tempo. Tal se mostra a personagem principal, capaz de romper amarras e autoproclamar sua autonomia intelectual e social, passando de esposa dominada a autora de sucesso retumbante com indicação a um Nobel. E, não importando se a biopic corresponde, de fato, à Colette biográfica e seus meandros existenciais, essencialmente pela personalidade forte de uma escritora que insiste se colocar como tal no contexto sociocultural de seu tempo, vale assistir!

Por Sayonara Salvioli

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | O RETORNO DE MARY POPPINS

CRÍTICA | 

O RETORNO DE MARY POPPINS



Espectadores mais e menos sensíveis sempre se deixam encantar pela magia do imponderável quando o que está na telona é um clássico Disney. Sim, todo filme Disney é um clássico, desde o momento em que nasce nos estúdios do mágico e imorredouro Walt. Com base nessa premissa natural, não poderia ser diferente o meu encantamento ao assistir ao live-action O Retorno de Mary Poppins.

Para começar, eu estava numa plateia seleta num CineStar, onde havia preponderantemente estudiosos e críticos de cinema, todos atentos como que numa nuvem, encapsulados pela magia do cine,  o que já proporciona a imersão necessária para a absorção conceitual e artística do título, enquanto a alma se embevece com a mensagem. Cinema, para ser cinema, precisa disso em primeiro lugar: a imersão (ou tentativa de), como nos propôs Bazin. Tal o filme em questão propicia; senão a profundidade do cinema total, ao menos a imersão. Pois bem, vale a pena assistir ao filme com direção de Rob Marshall e roteiro de David Magee; e levemente inebriada fiquei ao longo de suas (mais que) duas horas de duração, mas preciso ser sincera e confessar que o reboot ou sequência não causa um grande arrebatamento, como seria de se esperar. Isso porque, claramente em minha visão, o produto sofreu uma espécie de engessamento, muito provavelmente pelo temor de seus realizadores de adentrarem fita sacra e cometerem o sacrilégio de profaná-la com o acréscimo da novidade do tempo ou da arte.   Pois é aí que se encontra o cerne da discussão: o significado de arte. Esta, para se sagrar como tal, necessita antes de tudo da liberdade de criação, um nascimento sem amarras. E tal não aconteceu com a produção – para muitos, quase um remake (o que não é o caso) – do filme que surgiu para ser a continuidade dourada de um clássico guardado na melhor vitrine Disney.

Responsabilidade demais? Não apenas isso, mas a consequência da circunstância, em detrimento de uma produção cinematográfica que, por possuir o know-how do sucesso na gênese, poderia também ser um estouro. Claro está, no entanto, que um “estouro” propriamente dito, em correspondência sinonímica, seria quase uma utopia videográfica, em tempos de (já banal) cinema 3D e ultravelocidade. Sim, o espectador – principalmente o mirim e o adolescente dessa era cibernética – mudou e, na incontrolabilidade desse compasso, pode residir a dificuldade de (mesmo) os Estúdios Disney não conseguirem prender mais seu espectador com sequências longas típicas dos musicais da primeira metade do século XX.

Pois bem, visto tudo isso, o que mais concorre para inconsistências no filme em que se empregaram milhões de dólares e esforços entusiásticos? No quesito que encabeça a análise em tela: na não-inventividade. Trata-se o longa de trazer à baila novamente – como o próprio título mostra – a mágica babá londrina Mary Poppins dos anos 60. Antes, no clássico que deu origem a este novo filme, Poppins chegava como uma alternativa feliz e animada de entreter e educar sutilmente as crianças Banks e, ao fim de tudo, promover a união entre pais e filhos, a chamada harmonia num lar com os pais antes ausentes – George Banks (David Tomlinson), por causa da exagerada dedicação ao trabalho – e Sr.ª Banks/Winifred Banks (Glynis Johns), em vista de sua luta no momento sufragista.  Agora, no retorno do filme/da babá icônica, esta chega para ajudar o antes pequeno e agora adulto em dificuldades Michael a solucionar seus problemas. Viúvo, com três filhos, e prestes a perder a casa da família, miraculosamente recebe Mary Poppins novamente em seu lar, diretamente vinda do céu em seu guarda-chuvas com função de para-quedas.

Embora o roteiro não seja exatamente insipiente, vários aspectos do longa deixam a desejar, a começar pela diferença em relação à macroestrutura cênica do filme original, o que se estende do conceito à cenografia. Há no Mary Poppins de 64 todo um contexto familiar e de época (1910 – Ah, a Belle Époque!), que, em tudo e por tudo, não deixa lugar para uma superação fílmica. Em outras palavras, no novo filme nada pode exceder-se ao já conquistado no anterior – e nisso fica a sensação constante (durante todo o filme!) de que o segundo nunca conseguirá suplantar em surpresa ou encanto o seu predecessor, nem mesmo a este se equiparando em algum momento.




É importante considerar que quando falo de contexto de família não me refiro, de modo nenhum, a padrões inflexíveis de estrutura do lar, mas à lacuna que se sente (talvez até em razão do falecimento e, por conseguinte, da própria ausência da mãe dos pequenos) e da ideia que fica “de algo pela metade” na casa dos Banks. Antes, tínhamos uma ideia mais clara e atrativa de uma casa funcionando em plena movimentação cotidiana: do esposo inicialmente machista à esposa de consciência político-social, ativista do movimento pelo voto feminino (o filme é muito consciente); da rotina de entorno ao cotidiano doméstico ilustrado pela peraltice extrema das crianças e da fuga das babás...  Da própria época, como me referi, já nos últimos anos da adorável Belle Époque, seus cenários e modas de costumes refletidos na videografia.





Vistas essas questões, que são imutáveis por refletirem um contexto histórico peculiarmente fascinante, a nova produção também não encontra medidas equânimes nas sequências musicais, quer em conceito, quer em letra; decididamente, as antecedentes possuíam mais beleza, criatividade e excelência. É claro que também viajamos um pouco com a evasão proposta pelos momentos musicados, mas existem agora, inclusive, cenas e concepções que se arrastam, trazendo morosidade ao filme. Exceção se faça aqui, apenas, ao momento-mensagem de pura poesia familiar, quando – ao se fazer referência à morte (da mulher de Michael e mãe das crianças) – a música The Place Where Lost Things Go é entoada. Além disso, não mais se vê mais na esfera musical do longa, tão diferentemente das trilhas e sequências marcantes e eternas Supercalifragilisticexpialidoucious e Chim Chim Cher-ee  do grande clássico de Robert Stevenson. 

Outro ponto a ser ressaltado refere-se à sinestesia de cores e alegria, que infelizmente também não se repetem. Aqui se lembre a mágica arrebatadora de Dick Van Dyke ao iniciar o filme com aquele conjunto de instrumentos peculiaríssimo, em agradável tom ao fundo arrebanhando a todos. E o mais importante a se frisar, dentre as dissonâncias: uma (nova) protagonista que, a despeito de interpretação primorosa, tornou-se de poucas falas, sem a criação de um vínculo fílmico maior, exatamente pelo temor de se maculá-la (aqui se leia macular a original).




No fim (e desde o começo) das contas, não há como não estabelecer um pararelo comparativo com o produto original. Esta crítica, quer queiramos ou não, serve-se a isso em primazia. E isso não poderia ser diferente, afinal este filme surge daquele. Corrobora, ainda, a reafirmação desse paralelismo o fato inesquecível da grande luta de Walt Disney para conseguir comprar os direitos de adaptação do livro Mary Poppins. Pode entender isso com clareza quem assistiu ao filme Walt nos Bastidores de Mary Poppins. Na produção de 2016, um retrato detalhado e realístico da odisseia de 24 anos de negociações que Disney teve de enfrentar para cumprir a promessa que fizera à sua filha Diane de levar Mary Poppins para as telas. Irascível era adjetivo simples para a personalidade de Pamela Lyndon Travers, a autora da série de livros protagonizada pela icônica babá que emerge do céu para a graça das crianças de um lar londrino. Na saga narrando a convivência e o contrato comercial entre o grande produtor-cineasta e a escritora, pode-se perceber o deslumbramento e a intuição mais que visionária de Disney para realizar a produção que conquistou a maior bilheteria de seu ano de lançamento (superando My Fair Lady, por exemplo) e nada menos que cinco Oscars. Daí se depreende a importância cinematograficamente histórica que tem uma produção de renovação como essa e as implicariedades surgidas com este novo grande investimento dos estúdios de Walt.

Os acertos da nova produção (sim, é claro que eles existiram!) vão ao encontro, prioritariamente, da escolha certa do elenco, sobrepujando-se neste caso a atuação espetacular de Emily Blunt, que – se não pôde superar a já icônica Mary Poppins de Julie Andrews – construiu uma bem singular e de um classicismo de nota. Personalíssima em sua construção de personagem, Blunt alcançou a proeza máxima de fazer o seu papel com tal distinção e respeito, que superou a linha tênue da comparação entre duas estrelas. Justamente por isso, por possuírem brilho indiscutivelmente próprio, ao final coube a cada uma o seu troféu Mary Poppins de protagonismo, cada qual ao seu tempo. Assim, se temos por um lado a babá mágica da Belle Époque encarnada com dócil firmeza e personalidade por Julie Andrews, por outro temos a magistral e independente (e hábil e aparentemente inflexível) de uma Mary Poppins tão misteriosa quanto altiva de Emily Blunt. Esta concorreu com um mito e, em vez de tentar vencê-lo, apenas o respeitou, construindo o próprio estereótipo, um arquétipo vivificado por seu talento. De grande destaque também foi a atuação mais do que carismática de Lin-Manuel Miranda, o simpaticíssimo Jack, que – se não ressuscitou Bert (o que não seria bom, mesmo) – foi capaz de criar um sucessor à altura.

Contudo, é em Jack que acendo uma lanterna de ponderação: terá sido apropriada a personificação do “acendedor de lampiões” já nos anos 30? Sim, porque o novo filme se passa na época da Grande Depressão (duas décadas depois da época contextual do primeiro), e a essa altura Londres já havia recebido iluminação pública havia muitos anos! Embora, até hoje, quem vá a Londres e transite pela avenida Kensington Palace Gardens – toda ladeada por luxuosas mansões e sedes de embaixadas – se depare com uma rua à antiga, ainda iluminada por lampiões a gás, com os emblemáticos postes da era vitoriana a ornarem o caminho... Bom, sob essa ótica haveria verossimilhança, sim, no fato de a Rua da Cerejeira, dos Banks, precisar de um acendedor de lampiões em 1930...

Também a produção de arte e os efeitos visuais, como seria de se esperar dos Estúdios Disney, vieram com tudo e constituem capítulo especial nessa história de trazer Mary Poppins de volta à vida cênica.




Destaques positivos da nova produção para o próprio Michael Banks (Ben Whishaw), em sua ótima atuação, e para o carisma de Emily Mortimer, que veio encarnar a (antes) pequena Jane Banks, agora adulta e envolvida em ativismo social, lutando pela causa sindicalista. Um aparte aqui, pois este paralelo com o perfil de sua mãe no primeiro filme –  a Sr.ª Banks – faz o filme-sequência perder também, pois se configura como performance imitativa (novamente aqui).

Quanto aos três pequenos atores, protagonistas do fundamental núcleo infantil da produção, Anabel (Pixie Davies), John (Nathanael Saleh) e Georgie (Joel Dawson), também brilharam com afável singeleza, o que me lembrou o supercarismático Michael do clássico de 64, interpretado pelo ator Matthew Garber, que certamente poderia ter se tornado um grande astro não fosse a precoce morte aos 21 anos.




Aludindo, ainda, à participação de Meryl Streep – muito mais por seu brilho perene do que pela essência em si desta parte do filme –, lembro que as lacunas de grandiosidade em O Retorno de Mary Poppins não se dão em nenhum momento pelo elenco – todo estelar – e sim pela concepção, pelo argumento e pela feitura de uma pré-moldada sequência da Disney. Melhor fechar estas notas, então, com a emoção (esta sim, garantida) de um Dick Van Dyke (o antigo Bert, aqui o dono do banco que salva toda a situação) lépido e fagueiro aos 93 anos encerrando o filme como um grato presente ao público.  

No final efetivo das contas – do banco do Sr. Banks, do pai de P.L. Travers ou dos Estúdios Disney –, a produção vale essencialmente pela rememoração que faz de Mary Poppins, o filme, o qual se consagra como o sexto maior musical de toda a história do cinema. E que ventos do norte possam trazer a babá londrina de novo, preferencialmente em performances como a de sua glamourosa estreia, afinal, sobrepondo-se a todas as tecnologias, resiste – nas telas e nos ares – a mágica fantasia do universo pueril!


Por Sayonara Salvioli