Com direção
personal e apuro estético – concorrendo a 10 Oscars –, A FAVORITA traça retrato da sordidez humana
Por Sayonara Salvioli
Assisti ao longa A FAVORITA num cinema cult do Rio de Janeiro, em meio a uma plateia de espectadores aficionados que – suponho – estivessem ali sabendo a que foram. Em outras palavras, eles sabiam o que esperar, já que muito provavelmente conhecem a obra do cineasta Yorgos Lanthimos. Sim, ele mesmo: o famigerado diretor grego, polarizador da tragédia e do suspense em primazia, em obras normalmente eivadas de terror psicológico e povoadas por psiques doentias. Assim foi com O Sacrifício do Cervo Sagrado (IRL/UK/EUA, 2018), que – a despeito de seu niilismo e de tanta brutalidade – arrebanhou o Prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cannes do ano passado.
Pois bem, outro
esperado filme de Lanthimos chegou às telas, desta vez trocando o background da
mitologia grega pelos labirintos da realeza britânica. Com uma proposta de
drama menos cabal que em seus filmes anteriores e de uma estética de primor
visual, ele amealhou multiplamente a promessa do prêmio mais cobiçado do
Cinema: concorre a não menos que 10 categorias de Oscars em 2019.
Trata-se o drama
de época da história da rainha britânica Anne, cujo reinado – contextualizado nos
primeiros anos do Setecentos – proclamou a união entre Inglaterra e Escócia (e,
por conseguinte, fazendo surgir a Grã-Betanha), sagrando-a a soberana
da Casa Stuart da Grã-Betanha e da Irlanda. O filme, porém, não é fiel à
realidade. Tal afirma a escritora e historiadora inglesa Anne Somerset – autora
do livro Queen Anne: The Politics of Passion (Vintage Books, 2014, sem edição
brasileira). De acordo com a sua biógrafa, a rainha Anne foi injustiçada pela
história, havendo sido uma monarca atuante e extremamente presente nas
rotineiras reuniões com os ministros do reino, por exemplo. E isso configura um
paradoxo com o longa, que – a despeito de ela ter tido mesmo uma saúde frágil e
mobilidade limitada – a pinta como imatura, hesitante e francamente dominada pela
Duquesa de Malborough – Lady Sarah Churchill (que seria a favorita, do título).
O mais
importante na película, no entanto – como querem estudiosos e especialistas da
Sétima arte – não é a fidelidade ficção X biografia, e sim o que a feitura
fílmica traz como proposta artística. Em análise acurada, não constituem as
qualidades do longa nem a postura política da governante real nem a Guerra da
Sucessão Espanhola (travada entre Grã-Betanha e França), que desenha a trama
historicamente, tampouco a própria tônica do conflito central [a relação da
rainha Anne (Olivia Colman) com as ditas favoritas – Sarah/Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) e
Abigail (Emma Stone)]. O conjunto da obra é que dita tal supremacia: a direção
estonteante conjugada com uma fotografia esplêndida e uma iluminação
descortinadora, consubstanciadas numa produção esmerada que mostra todo o
deslumbramento da corte britânica do século XVIII. Não por acaso, entre as
indicações para o Oscar se incluem as de melhor
montagem, fotografia, design de produção, figurino e – claro! – direção.
Num
longa-metragem em que a linguagem plástica fala mais alto que a narrativa
retórica ou conteudística, é superada a própria estética da opulência. Os
salões, corredores e jardins palacianos da Inglaterra do Setecentos nunca
pareceram tão grandiosos numa película. Lanthimos não economiza no (seu)
conhecido uso de lentes do tipo grande-angular, as quais – além de suas
peculiaridades de enfoque – ampliam os espaços e lhes dão tanta profundidade,
que parecem fazer o espectador mergulhar junto na vastidão da tela. É como se
cada um na plateia pudesse adentrar as câmaras reais e os campos da nobreza
inglesa, entre duques, lordes e criados a cruzarem os caminhos da corte. Caminhos
esses conflituosos e emaranhados, entre personalidades complexas, a destilarem
o fel da perfídia humana em sua pior forma.
Mas tudo isso,
que detalharei mais adiante, não faz com que – pelo teor de um filme também na
melhor linha feel bad – se deixe de
vivenciar uma experiência de cinema de
verdade. É quando trago à baila destas notas um sentido diretivo capaz de
proporcionar uma experimentação muito próxima à estética do Cinema total de
Bazin. Sim, a experiência se propõe a uma sinestesia mais do que conceitual,
numa abordagem cinematográfica que ultrapassa o texto narrativo. A verdade é que a direção de Yorgos Lanthimos
– a despeito de todas as suas rudezas de enfoque humano e de sua convencionada
exaltação ao bizarro – possui um diferencial em relação às demais da
contemporaneidade. Não aceito por uns em seu maniqueísmo da tragédia, como
agente da arte ele inova, fazendo-o a cada nova produção. E, no caso presente,
porque o cineasta situa o filme em tela (mais do que enquadramentos, em
linguagem) numa dimensão que pluraliza a percepção estética – arte visual como
mensagem. Em A Favorita, tudo é grandioso na abordagem cênica
(ambientes/locações, figurinos, acessórios fílmicos); tudo parece enorme neste
trabalho de Lanthimos, que agora não divide a assinatura do roteiro, deixando
este a cargo de Deborah Davis e Tony McNamara.
.
O próprio pathos, entretanto, é o grande senão
neste filme de tanto impacto artístico. O enredo gira inicialmente – em seu
primeiro núcleo – entre a Rainha Anne e Duquesa de Malborough. Na trama, esta
domina por completo as ações e decisões da soberana, praticamente lhe ditando
ideias e ordens, o que faz parecer que governa em seu lugar. As duas mantêm um
romance velado, mas que obviamente salta aos olhos dos habitués mais íntimos da Corte. O império emocional da Duquesa de
Malborough é tal, que decretos e leis, batalha e trégua – invariavelmente – são
decididos pelos jogos de alcova: é a duquesa quem determina o limiar ou o
cessar da guerra com a França, por exemplo. Tudo transcorre nessa “harmonia
forçada” até que chega ao palácio uma prima da duquesa, a qual, com sua malícia
e esperteza, vai tomando o lugar da parenta no coração da rainha e do reino. A
partir daí, trava-se uma luta de vida e morte pelo poder. Nesse duelo, o
diretor (o grande astro do filme, a meu ver) deleita-se com metáforas – visuais
e conceituais – representadas ora num campo de tiro com as duas favoritas se
enfrentando, ora num approach de cena com a personificação, em 17 coelhos, das 17 gestações que a
rainha tivera em seu casamento com o Príncipe Jorge, da Dinamarca (entre
abortos espontâneos, partos prematuros, filhos natimortos ou que pouco viveram).
Apesar do
requinte na condução das cenas e na sofisticação viva dos cenários – em todo o
apuro de fotografia e interpretação (destaque para Olivia Colman e Raquel Weisz)
–, o que mais impressiona no filme é a indignante digladiação pelo poder. Personalidades traiçoeiras, jogos, armadilhas e manipulações (repudiantes!) são mostrados como teias de vil interesse e
nenhum escrúpulo. E, em contraponto a uma rainha frágil, insegura e delirante, passa
a “imperar” a jovem Abigail (antes, uma criada reclusa da cozinha), em
dominância absoluta da coroa real. Nem é spoiler
mencionar os apuros em que se verá a antiga favorita. Tampouco tiraria a
experiência fílmica do leitor relatar a frieza dos diálogos e das relações –
mais metálicas que o aço da espada da Duquesa de Malborough. Em que pese a
qualidade cinematográfica do produto – aqui já bem-defendida –, o painel
preponderante na vivência do longa pelo espectador é a (permanente) cena
patética da frivolidade de relações – no descortinamento de uma nobreza vil e
patológica, suas anomalias e desertos sentimentais. Assim é que a concepção e a
mensagem do longa conseguem, nos piores
traços e nuances, pintar um retrato autêntico da sordidez humana.
Ante tudo isso,
resta a investigação última: vale a pena assistir ao longa? Certamente que sim.
O paradoxo da arte com a pequenez da humanidade refletida na película não
impede ou invalida a experiência cinematográfica de ver um longa-metragem com qualidades
plásticas – as quais lhe dão valor e o diferenciam como produto audiovisual.
Um comentário:
PERFECT approach!!!!!!
Postar um comentário