Keira Knightley brilha em cinebiografia centrada na
Belle Époque francesa
O cenário não poderia ser melhor para uma produção
de época: o período das grandes transformações culturais e científicas que
marcaram a transição do século XIX para o XX. Em meio aos fascinantes ares da
Belle Époque, na Paris dos artistas e intelectuais que transgrediam e mudavam a
cena do mundo, desenvolve-se a trama de Colette – filme dirigido por Wash
Westmoreland –, uma biopic com alguns
dos típicos ingredientes do gênero. Um aspecto a ser visto, de antemão, é a distinção da obra fílmica em relação à fonte de sua criação, a história de vida real da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette. Notadamente, uma sempre irá diferir da outra (ficção cinematográfica e realidade biográfica).
A trama tem início no interior da França, onde Gabrielle/Colette (Keira Knightley) conhece o escritor Henry
Gauthier-Villars, o badalado Willy (Dominic West), que se casa com a jovem interiorana e a leva a viver em Paris. Uma vez nas altas e glamourosas rodas parisienses, a
moça campesina se decepciona com a frivolidade e a hipocrisia da sociedade.
No entanto, será a mademoiselle de
hábitos simples que, com seu talento, acabará por dominar a cena do casamento.
Isso porque o marido – autor medíocre que assina obras escritas por diversos ghost-writers – irá descobrir seu
potencial literário e lançar como seus os livros escritos por ela(!), os quais
alcançarão estrondoso sucesso em todo o país. E será essa forma deplorável de
apropriação intelectual (usando aqui um
eufemismo explicativo) o epicentro do drama biográfico que enche a tela com uma
Keira Knightley mais “vestida de época” do que nunca. Preâmbulo necessário, é a
exaltação à atriz principal quase que
essencialmente a tônica destas notas. Dona
de uma coleção de personificações cinematográficas de época, como a Elizabeth/Lizzie
de Orgulho e Preconceito, a Cecília
de Desejo e Reparação, a Georgianna,
de A Duquesa, a personagem-título de Anna Karenina e (claro!) a heroína de Piratas do Caribe, Knightley prova mais
uma vez a sua vocação indefectível para incorporar mocinhas de outros tempos.
E, especialmente no caso de uma protagonista de
vanguarda da Belle Époque, com uma marcante mensagem feminista, isso não
poderia ser diferente. A propósito, são acertos do roteiro a rota da personagem
principal – romancista de expressão num século adverso ao protagonismo feminino
– e a mensagem sobre orientação sexual, concebida de maneira leve e natural. O texto
– assinado pelo próprio Wash Westmoreland, seu falecido marido Richard
Glatzer e por Rebecca Lenkiewicz – soube cadenciar com perfeição a fluida
evolução da protagonista, que vai se descobrindo como adulta e como profissional
enquanto se liberta como ser humano e se abre a novas perspectivas. Aqui se
ressalte a tranquilidade da abordagem cênica no tratamento dado ao romance
entre Colette e Missy (Denise Gough), transgênero retratado naquele período da
história, em que a imagem da mulher passeava pelo ideário das camponesas das
telas impressionistas, por exemplo. Ou seja, o caminhar do roteiro, ainda que
em tal contexto sócio-delimitador, mostrou-se facilitador de compreensão e
arrebatamento do espectador. Aposto aqui que, mesmo para as mentalidades mais
engessadas, o filme soube apresentar a história e suas nuances.
A produção de arte e a fotografia, no entanto, num
contexto videográfico que envolve riquezas estéticas como a Art Nouveau de Mucha,
a suntuosidade do período e as icônicas belezas de Paris, propriamente, deixam
muito a desejar. O figurino também poderia ser melhor. Nestes e em alguns
outros aspectos focais se pode perceptar uma direção artística titubeante.
No que tange ao elenco, os destaques são, mesmo, a
já aclamada intérprete do papel-título (Keira Knightley) e a destreza de atuação
de seu cônjuge na história (Dominic West), o qual – a despeito dos atos ilegais
e totalmente condenáveis de seu papel na “condução da esposa-autora” –
consegue, ao menos no início, despertar a simpatia do espectador, tal o nível
de qualidade cênica em seu jeito folgazão e aparentemente desprendido de bon vivant da Belle Époque. Obviamente –
na sucessão de suas ações, pouco a pouco mostrando seu mau-caratismo –, o
espectador trocará a inicial simpatia por uma natural aversão, já que, por
melhor que seja o ator, seu personagem atenta contra fatores morais e a questão
inflexível dos direitos autorais/patrimoniais de um(a) criador(a).
Entre os esmeros e os pecados de (quase) toda
produção do atual cinema, resta um saldo positivo numa crítica analítica geral, especialmente
em virtude do charme intrínseco ao período histórico retratado, e – aqui se
saliente – em uma história que cativa
por sua mensagem: o crescimento pessoal e profissional de uma mulher à frente
de seu tempo. Tal se mostra a personagem principal, capaz de romper amarras e
autoproclamar sua autonomia intelectual e social, passando de esposa dominada a autora de sucesso retumbante com indicação a um Nobel. E, não importando se a biopic corresponde, de fato, à Colette biográfica e seus meandros existenciais, essencialmente pela personalidade forte de uma escritora que insiste se colocar como tal no contexto sociocultural de seu tempo, vale assistir!
Por Sayonara Salvioli
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