sábado, 9 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | COLETTE




Keira Knightley brilha em cinebiografia centrada na Belle Époque francesa
O cenário não poderia ser melhor para uma produção de época: o período das grandes transformações culturais e científicas que marcaram a transição do século XIX para o XX. Em meio aos fascinantes ares da Belle Époque, na Paris dos artistas e intelectuais que transgrediam e mudavam a cena do mundo, desenvolve-se a trama de Colette – filme dirigido por Wash Westmoreland –, uma biopic com alguns dos típicos ingredientes do gênero.  Um aspecto a ser visto, de antemão, é a distinção da obra fílmica em relação à fonte de sua criação, a história de vida real da escritora francesa Sidonie-Gabrielle Colette. Notadamente, uma sempre irá diferir da outra (ficção cinematográfica e realidade biográfica). 
A trama tem início no interior da França, onde Gabrielle/Colette  (Keira Knightley) conhece o escritor Henry Gauthier-Villars, o badalado Willy (Dominic West), que se casa com a jovem interiorana e a leva a viver em Paris. Uma vez nas altas e glamourosas rodas parisienses, a moça campesina se decepciona com a frivolidade e a hipocrisia da sociedade. No entanto, será a mademoiselle de hábitos simples que, com seu talento, acabará por dominar a cena do casamento. Isso porque o marido – autor medíocre que assina obras escritas por diversos ghost-writers – irá descobrir seu potencial literário e lançar como seus os livros escritos por ela(!), os quais alcançarão estrondoso sucesso em todo o país. E será essa forma deplorável de apropriação intelectual  (usando aqui um eufemismo explicativo) o epicentro do drama biográfico que enche a tela com uma Keira Knightley mais “vestida de época” do que nunca. Preâmbulo necessário, é a  exaltação à atriz principal quase que essencialmente a tônica destas notas.  Dona de uma coleção de personificações cinematográficas de época, como a Elizabeth/Lizzie de Orgulho e Preconceito, a Cecília de Desejo e Reparação, a Georgianna, de A Duquesa, a personagem-título de Anna Karenina e (claro!) a heroína de Piratas do Caribe, Knightley prova mais uma vez a sua vocação indefectível para incorporar mocinhas de outros tempos.
E, especialmente no caso de uma protagonista de vanguarda da Belle Époque, com uma marcante mensagem feminista, isso não poderia ser diferente. A propósito, são acertos do roteiro a rota da personagem principal – romancista de expressão num século adverso ao protagonismo feminino – e a mensagem sobre orientação sexual, concebida de maneira leve e natural. O texto – assinado pelo próprio Wash Westmoreland, seu falecido marido Richard Glatzer e por Rebecca Lenkiewicz – soube cadenciar com perfeição a fluida evolução da protagonista, que vai se descobrindo como adulta e como profissional enquanto se liberta como ser humano e se abre a novas perspectivas. Aqui se ressalte a tranquilidade da abordagem cênica no tratamento dado ao romance entre Colette e Missy (Denise Gough), transgênero retratado naquele período da história, em que a imagem da mulher passeava pelo ideário das camponesas das telas impressionistas, por exemplo. Ou seja, o caminhar do roteiro, ainda que em tal contexto sócio-delimitador, mostrou-se facilitador de compreensão e arrebatamento do espectador. Aposto aqui que, mesmo para as mentalidades mais engessadas, o filme soube apresentar a história e suas nuances.

A produção de arte e a fotografia, no entanto, num contexto videográfico que envolve riquezas estéticas como a Art Nouveau de Mucha, a suntuosidade do período e as icônicas belezas de Paris, propriamente, deixam muito a desejar. O figurino também poderia ser melhor. Nestes e em alguns outros aspectos focais se pode perceptar uma direção artística titubeante.
No que tange ao elenco, os destaques são, mesmo, a já aclamada intérprete do papel-título (Keira Knightley) e a destreza de atuação de seu cônjuge na história (Dominic West), o qual – a despeito dos atos ilegais e totalmente condenáveis de seu papel na “condução da esposa-autora” – consegue, ao menos no início, despertar a simpatia do espectador, tal o nível de qualidade cênica em seu jeito folgazão e aparentemente desprendido de bon vivant da Belle Époque. Obviamente – na sucessão de suas ações, pouco a pouco mostrando seu mau-caratismo –, o espectador trocará a inicial simpatia por uma natural aversão, já que, por melhor que seja o ator, seu personagem atenta contra fatores morais e a questão inflexível dos direitos autorais/patrimoniais de um(a) criador(a).
Entre os esmeros e os pecados de (quase) toda produção do atual cinema, resta um saldo positivo numa crítica analítica geral, especialmente em virtude do charme intrínseco ao período histórico retratado, e – aqui se saliente –  em uma história que cativa por sua mensagem: o crescimento pessoal e profissional de uma mulher à frente de seu tempo. Tal se mostra a personagem principal, capaz de romper amarras e autoproclamar sua autonomia intelectual e social, passando de esposa dominada a autora de sucesso retumbante com indicação a um Nobel. E, não importando se a biopic corresponde, de fato, à Colette biográfica e seus meandros existenciais, essencialmente pela personalidade forte de uma escritora que insiste se colocar como tal no contexto sociocultural de seu tempo, vale assistir!

Por Sayonara Salvioli

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