terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | A FAVORITA




Com direção personal e apuro estético –  concorrendo a 10 Oscars –, A FAVORITA traça retrato da sordidez humana 


Por Sayonara Salvioli



Assisti ao longa A FAVORITA num cinema cult do Rio de Janeiro, em meio a uma plateia de espectadores aficionados que – suponho – estivessem ali sabendo a que foram. Em outras palavras, eles sabiam o que esperar, já que muito provavelmente conhecem a obra do cineasta Yorgos Lanthimos. Sim, ele mesmo: o famigerado diretor grego, polarizador da tragédia e do suspense em primazia, em obras normalmente eivadas de terror psicológico e povoadas por psiques doentias. Assim foi com O Sacrifício do Cervo Sagrado (IRL/UK/EUA, 2018), que – a despeito de seu niilismo e de tanta brutalidade – arrebanhou o Prêmio de Melhor Roteiro do Festival de Cannes do ano passado.

Pois bem, outro esperado filme de Lanthimos chegou às telas, desta vez trocando o background da mitologia grega pelos labirintos da realeza britânica. Com uma proposta de drama menos cabal que em seus filmes anteriores e de uma estética de primor visual, ele amealhou multiplamente a promessa do prêmio mais cobiçado do Cinema: concorre a não menos que 10 categorias de Oscars em 2019.




Trata-se o drama de época da história da rainha britânica Anne, cujo reinado – contextualizado nos primeiros anos do Setecentos – proclamou a união entre Inglaterra e Escócia (e, por conseguinte, fazendo surgir a Grã-Betanha), sagrando-a  a  soberana da Casa Stuart da Grã-Betanha e da Irlanda. O filme, porém, não é fiel à realidade. Tal afirma a escritora e historiadora inglesa Anne Somerset – autora do livro Queen Anne: The Politics of Passion (Vintage Books, 2014, sem edição brasileira). De acordo com a sua biógrafa, a rainha Anne foi injustiçada pela história, havendo sido uma monarca atuante e extremamente presente nas rotineiras reuniões com os ministros do reino, por exemplo. E isso configura um paradoxo com o longa, que – a despeito de ela ter tido mesmo uma saúde frágil e mobilidade limitada – a pinta como imatura, hesitante e francamente dominada pela Duquesa de Malborough – Lady Sarah Churchill (que seria a favorita, do título).

O mais importante na película, no entanto – como querem estudiosos e especialistas da Sétima arte – não é a fidelidade ficção X biografia, e sim o que a feitura fílmica traz como proposta artística. Em análise acurada, não constituem as qualidades do longa nem a postura política da governante real nem a Guerra da Sucessão Espanhola (travada entre Grã-Betanha e França), que desenha a trama historicamente, tampouco a própria tônica do conflito central [a relação da rainha Anne (Olivia Colman) com as ditas favoritas –  Sarah/Duquesa de Marlborough (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone)]. O conjunto da obra é que dita tal supremacia: a direção estonteante conjugada com uma fotografia esplêndida e uma iluminação descortinadora, consubstanciadas numa produção esmerada que mostra todo o deslumbramento da corte britânica do século XVIII. Não por acaso, entre as indicações para o Oscar se incluem as de melhor montagem, fotografia, design de produção, figurino e – claro! – direção.

Num longa-metragem em que a linguagem plástica fala mais alto que a narrativa retórica ou conteudística, é superada a própria estética da opulência. Os salões, corredores e jardins palacianos da Inglaterra do Setecentos nunca pareceram tão grandiosos numa película. Lanthimos não economiza no (seu) conhecido uso de lentes do tipo grande-angular, as quais – além de suas peculiaridades de enfoque – ampliam os espaços e lhes dão tanta profundidade, que parecem fazer o espectador mergulhar junto na vastidão da tela. É como se cada um na plateia pudesse adentrar as câmaras reais e os campos da nobreza inglesa, entre duques, lordes e criados a cruzarem os caminhos da corte. Caminhos esses conflituosos e emaranhados, entre personalidades complexas, a destilarem o fel da perfídia humana em sua pior forma.







Mas tudo isso, que detalharei mais adiante, não faz com que – pelo teor de um filme também na melhor linha feel bad – se deixe de vivenciar uma experiência de cinema de verdade. É quando trago à baila destas notas um sentido diretivo capaz de proporcionar uma experimentação muito próxima à estética do Cinema total de Bazin. Sim, a experiência se propõe a uma sinestesia mais do que conceitual, numa abordagem cinematográfica que ultrapassa o texto narrativo.  A verdade é que a direção de Yorgos Lanthimos – a despeito de todas as suas rudezas de enfoque humano e de sua convencionada exaltação ao bizarro – possui um diferencial em relação às demais da contemporaneidade. Não aceito por uns em seu maniqueísmo da tragédia, como agente da arte ele inova, fazendo-o a cada nova produção. E, no caso presente, porque o cineasta situa o filme em tela (mais do que enquadramentos, em linguagem) numa dimensão que pluraliza a percepção estética – arte visual como mensagem. Em A Favorita, tudo é grandioso na abordagem cênica (ambientes/locações, figurinos, acessórios fílmicos); tudo parece enorme neste trabalho de Lanthimos, que agora não divide a assinatura do roteiro, deixando este a cargo de Deborah Davis e Tony McNamara.        
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O próprio pathos, entretanto, é o grande senão neste filme de tanto impacto artístico. O enredo gira inicialmente – em seu primeiro núcleo – entre a Rainha Anne e Duquesa de Malborough. Na trama, esta domina por completo as ações e decisões da soberana, praticamente lhe ditando ideias e ordens, o que faz parecer que governa em seu lugar. As duas mantêm um romance velado, mas que obviamente salta aos olhos dos habitués mais íntimos da Corte. O império emocional da Duquesa de Malborough é tal, que decretos e leis, batalha e trégua – invariavelmente – são decididos pelos jogos de alcova: é a duquesa quem determina o limiar ou o cessar da guerra com a França, por exemplo. Tudo transcorre nessa “harmonia forçada” até que chega ao palácio uma prima da duquesa, a qual, com sua malícia e esperteza, vai tomando o lugar da parenta no coração da rainha e do reino. A partir daí, trava-se uma luta de vida e morte pelo poder. Nesse duelo, o diretor (o grande astro do filme, a meu ver) deleita-se com metáforas – visuais e conceituais – representadas ora num campo de tiro com as duas favoritas se enfrentando, ora num approach de cena com a personificação, em 17 coelhos, das 17 gestações que a rainha tivera em seu casamento com o Príncipe Jorge, da Dinamarca (entre abortos espontâneos, partos prematuros, filhos natimortos ou que pouco viveram).




Apesar do requinte na condução das cenas e na sofisticação viva dos cenários – em todo o apuro de fotografia e interpretação (destaque para Olivia Colman e Raquel Weisz) –, o que mais impressiona no filme é a indignante digladiação pelo poder. Personalidades traiçoeiras, jogos, armadilhas e manipulações (repudiantes!) são mostrados como teias de vil interesse e nenhum escrúpulo. E, em contraponto a uma rainha frágil, insegura e delirante, passa a “imperar” a jovem Abigail (antes, uma criada reclusa da cozinha), em dominância absoluta da coroa real. Nem é spoiler mencionar os apuros em que se verá a antiga favorita. Tampouco tiraria a experiência fílmica do leitor relatar a frieza dos diálogos e das relações – mais metálicas que o aço da espada da Duquesa de Malborough. Em que pese a qualidade cinematográfica do produto – aqui já bem-defendida –, o painel preponderante na vivência do longa pelo espectador é a (permanente) cena patética da frivolidade de relações – no descortinamento de uma nobreza vil e patológica, suas anomalias e desertos sentimentais. Assim é que a concepção e a mensagem do longa conseguem,  nos piores traços e nuances, pintar um retrato autêntico da sordidez humana.




Ante tudo isso, resta a investigação última: vale a pena assistir ao longa? Certamente que sim. O paradoxo da arte com a pequenez da humanidade refletida na película não impede ou invalida a experiência cinematográfica de ver um longa-metragem com qualidades plásticas – as quais lhe dão valor e o diferenciam como produto audiovisual.




Um comentário:

Lize Berrini G. Alencar disse...

PERFECT approach!!!!!!