quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

CRÍTICA | O RETORNO DE MARY POPPINS

CRÍTICA | 

O RETORNO DE MARY POPPINS



Espectadores mais e menos sensíveis sempre se deixam encantar pela magia do imponderável quando o que está na telona é um clássico Disney. Sim, todo filme Disney é um clássico, desde o momento em que nasce nos estúdios do mágico e imorredouro Walt. Com base nessa premissa natural, não poderia ser diferente o meu encantamento ao assistir ao live-action O Retorno de Mary Poppins.

Para começar, eu estava numa plateia seleta num CineStar, onde havia preponderantemente estudiosos e críticos de cinema, todos atentos como que numa nuvem, encapsulados pela magia do cine,  o que já proporciona a imersão necessária para a absorção conceitual e artística do título, enquanto a alma se embevece com a mensagem. Cinema, para ser cinema, precisa disso em primeiro lugar: a imersão (ou tentativa de), como nos propôs Bazin. Tal o filme em questão propicia; senão a profundidade do cinema total, ao menos a imersão. Pois bem, vale a pena assistir ao filme com direção de Rob Marshall e roteiro de David Magee; e levemente inebriada fiquei ao longo de suas (mais que) duas horas de duração, mas preciso ser sincera e confessar que o reboot ou sequência não causa um grande arrebatamento, como seria de se esperar. Isso porque, claramente em minha visão, o produto sofreu uma espécie de engessamento, muito provavelmente pelo temor de seus realizadores de adentrarem fita sacra e cometerem o sacrilégio de profaná-la com o acréscimo da novidade do tempo ou da arte.   Pois é aí que se encontra o cerne da discussão: o significado de arte. Esta, para se sagrar como tal, necessita antes de tudo da liberdade de criação, um nascimento sem amarras. E tal não aconteceu com a produção – para muitos, quase um remake (o que não é o caso) – do filme que surgiu para ser a continuidade dourada de um clássico guardado na melhor vitrine Disney.

Responsabilidade demais? Não apenas isso, mas a consequência da circunstância, em detrimento de uma produção cinematográfica que, por possuir o know-how do sucesso na gênese, poderia também ser um estouro. Claro está, no entanto, que um “estouro” propriamente dito, em correspondência sinonímica, seria quase uma utopia videográfica, em tempos de (já banal) cinema 3D e ultravelocidade. Sim, o espectador – principalmente o mirim e o adolescente dessa era cibernética – mudou e, na incontrolabilidade desse compasso, pode residir a dificuldade de (mesmo) os Estúdios Disney não conseguirem prender mais seu espectador com sequências longas típicas dos musicais da primeira metade do século XX.

Pois bem, visto tudo isso, o que mais concorre para inconsistências no filme em que se empregaram milhões de dólares e esforços entusiásticos? No quesito que encabeça a análise em tela: na não-inventividade. Trata-se o longa de trazer à baila novamente – como o próprio título mostra – a mágica babá londrina Mary Poppins dos anos 60. Antes, no clássico que deu origem a este novo filme, Poppins chegava como uma alternativa feliz e animada de entreter e educar sutilmente as crianças Banks e, ao fim de tudo, promover a união entre pais e filhos, a chamada harmonia num lar com os pais antes ausentes – George Banks (David Tomlinson), por causa da exagerada dedicação ao trabalho – e Sr.ª Banks/Winifred Banks (Glynis Johns), em vista de sua luta no momento sufragista.  Agora, no retorno do filme/da babá icônica, esta chega para ajudar o antes pequeno e agora adulto em dificuldades Michael a solucionar seus problemas. Viúvo, com três filhos, e prestes a perder a casa da família, miraculosamente recebe Mary Poppins novamente em seu lar, diretamente vinda do céu em seu guarda-chuvas com função de para-quedas.

Embora o roteiro não seja exatamente insipiente, vários aspectos do longa deixam a desejar, a começar pela diferença em relação à macroestrutura cênica do filme original, o que se estende do conceito à cenografia. Há no Mary Poppins de 64 todo um contexto familiar e de época (1910 – Ah, a Belle Époque!), que, em tudo e por tudo, não deixa lugar para uma superação fílmica. Em outras palavras, no novo filme nada pode exceder-se ao já conquistado no anterior – e nisso fica a sensação constante (durante todo o filme!) de que o segundo nunca conseguirá suplantar em surpresa ou encanto o seu predecessor, nem mesmo a este se equiparando em algum momento.




É importante considerar que quando falo de contexto de família não me refiro, de modo nenhum, a padrões inflexíveis de estrutura do lar, mas à lacuna que se sente (talvez até em razão do falecimento e, por conseguinte, da própria ausência da mãe dos pequenos) e da ideia que fica “de algo pela metade” na casa dos Banks. Antes, tínhamos uma ideia mais clara e atrativa de uma casa funcionando em plena movimentação cotidiana: do esposo inicialmente machista à esposa de consciência político-social, ativista do movimento pelo voto feminino (o filme é muito consciente); da rotina de entorno ao cotidiano doméstico ilustrado pela peraltice extrema das crianças e da fuga das babás...  Da própria época, como me referi, já nos últimos anos da adorável Belle Époque, seus cenários e modas de costumes refletidos na videografia.





Vistas essas questões, que são imutáveis por refletirem um contexto histórico peculiarmente fascinante, a nova produção também não encontra medidas equânimes nas sequências musicais, quer em conceito, quer em letra; decididamente, as antecedentes possuíam mais beleza, criatividade e excelência. É claro que também viajamos um pouco com a evasão proposta pelos momentos musicados, mas existem agora, inclusive, cenas e concepções que se arrastam, trazendo morosidade ao filme. Exceção se faça aqui, apenas, ao momento-mensagem de pura poesia familiar, quando – ao se fazer referência à morte (da mulher de Michael e mãe das crianças) – a música The Place Where Lost Things Go é entoada. Além disso, não mais se vê mais na esfera musical do longa, tão diferentemente das trilhas e sequências marcantes e eternas Supercalifragilisticexpialidoucious e Chim Chim Cher-ee  do grande clássico de Robert Stevenson. 

Outro ponto a ser ressaltado refere-se à sinestesia de cores e alegria, que infelizmente também não se repetem. Aqui se lembre a mágica arrebatadora de Dick Van Dyke ao iniciar o filme com aquele conjunto de instrumentos peculiaríssimo, em agradável tom ao fundo arrebanhando a todos. E o mais importante a se frisar, dentre as dissonâncias: uma (nova) protagonista que, a despeito de interpretação primorosa, tornou-se de poucas falas, sem a criação de um vínculo fílmico maior, exatamente pelo temor de se maculá-la (aqui se leia macular a original).




No fim (e desde o começo) das contas, não há como não estabelecer um pararelo comparativo com o produto original. Esta crítica, quer queiramos ou não, serve-se a isso em primazia. E isso não poderia ser diferente, afinal este filme surge daquele. Corrobora, ainda, a reafirmação desse paralelismo o fato inesquecível da grande luta de Walt Disney para conseguir comprar os direitos de adaptação do livro Mary Poppins. Pode entender isso com clareza quem assistiu ao filme Walt nos Bastidores de Mary Poppins. Na produção de 2016, um retrato detalhado e realístico da odisseia de 24 anos de negociações que Disney teve de enfrentar para cumprir a promessa que fizera à sua filha Diane de levar Mary Poppins para as telas. Irascível era adjetivo simples para a personalidade de Pamela Lyndon Travers, a autora da série de livros protagonizada pela icônica babá que emerge do céu para a graça das crianças de um lar londrino. Na saga narrando a convivência e o contrato comercial entre o grande produtor-cineasta e a escritora, pode-se perceber o deslumbramento e a intuição mais que visionária de Disney para realizar a produção que conquistou a maior bilheteria de seu ano de lançamento (superando My Fair Lady, por exemplo) e nada menos que cinco Oscars. Daí se depreende a importância cinematograficamente histórica que tem uma produção de renovação como essa e as implicariedades surgidas com este novo grande investimento dos estúdios de Walt.

Os acertos da nova produção (sim, é claro que eles existiram!) vão ao encontro, prioritariamente, da escolha certa do elenco, sobrepujando-se neste caso a atuação espetacular de Emily Blunt, que – se não pôde superar a já icônica Mary Poppins de Julie Andrews – construiu uma bem singular e de um classicismo de nota. Personalíssima em sua construção de personagem, Blunt alcançou a proeza máxima de fazer o seu papel com tal distinção e respeito, que superou a linha tênue da comparação entre duas estrelas. Justamente por isso, por possuírem brilho indiscutivelmente próprio, ao final coube a cada uma o seu troféu Mary Poppins de protagonismo, cada qual ao seu tempo. Assim, se temos por um lado a babá mágica da Belle Époque encarnada com dócil firmeza e personalidade por Julie Andrews, por outro temos a magistral e independente (e hábil e aparentemente inflexível) de uma Mary Poppins tão misteriosa quanto altiva de Emily Blunt. Esta concorreu com um mito e, em vez de tentar vencê-lo, apenas o respeitou, construindo o próprio estereótipo, um arquétipo vivificado por seu talento. De grande destaque também foi a atuação mais do que carismática de Lin-Manuel Miranda, o simpaticíssimo Jack, que – se não ressuscitou Bert (o que não seria bom, mesmo) – foi capaz de criar um sucessor à altura.

Contudo, é em Jack que acendo uma lanterna de ponderação: terá sido apropriada a personificação do “acendedor de lampiões” já nos anos 30? Sim, porque o novo filme se passa na época da Grande Depressão (duas décadas depois da época contextual do primeiro), e a essa altura Londres já havia recebido iluminação pública havia muitos anos! Embora, até hoje, quem vá a Londres e transite pela avenida Kensington Palace Gardens – toda ladeada por luxuosas mansões e sedes de embaixadas – se depare com uma rua à antiga, ainda iluminada por lampiões a gás, com os emblemáticos postes da era vitoriana a ornarem o caminho... Bom, sob essa ótica haveria verossimilhança, sim, no fato de a Rua da Cerejeira, dos Banks, precisar de um acendedor de lampiões em 1930...

Também a produção de arte e os efeitos visuais, como seria de se esperar dos Estúdios Disney, vieram com tudo e constituem capítulo especial nessa história de trazer Mary Poppins de volta à vida cênica.




Destaques positivos da nova produção para o próprio Michael Banks (Ben Whishaw), em sua ótima atuação, e para o carisma de Emily Mortimer, que veio encarnar a (antes) pequena Jane Banks, agora adulta e envolvida em ativismo social, lutando pela causa sindicalista. Um aparte aqui, pois este paralelo com o perfil de sua mãe no primeiro filme –  a Sr.ª Banks – faz o filme-sequência perder também, pois se configura como performance imitativa (novamente aqui).

Quanto aos três pequenos atores, protagonistas do fundamental núcleo infantil da produção, Anabel (Pixie Davies), John (Nathanael Saleh) e Georgie (Joel Dawson), também brilharam com afável singeleza, o que me lembrou o supercarismático Michael do clássico de 64, interpretado pelo ator Matthew Garber, que certamente poderia ter se tornado um grande astro não fosse a precoce morte aos 21 anos.




Aludindo, ainda, à participação de Meryl Streep – muito mais por seu brilho perene do que pela essência em si desta parte do filme –, lembro que as lacunas de grandiosidade em O Retorno de Mary Poppins não se dão em nenhum momento pelo elenco – todo estelar – e sim pela concepção, pelo argumento e pela feitura de uma pré-moldada sequência da Disney. Melhor fechar estas notas, então, com a emoção (esta sim, garantida) de um Dick Van Dyke (o antigo Bert, aqui o dono do banco que salva toda a situação) lépido e fagueiro aos 93 anos encerrando o filme como um grato presente ao público.  

No final efetivo das contas – do banco do Sr. Banks, do pai de P.L. Travers ou dos Estúdios Disney –, a produção vale essencialmente pela rememoração que faz de Mary Poppins, o filme, o qual se consagra como o sexto maior musical de toda a história do cinema. E que ventos do norte possam trazer a babá londrina de novo, preferencialmente em performances como a de sua glamourosa estreia, afinal, sobrepondo-se a todas as tecnologias, resiste – nas telas e nos ares – a mágica fantasia do universo pueril!


Por Sayonara Salvioli

Nenhum comentário: