Invadindo a cabine do Comandante
Porém, se você estiver com pressa – no meio do trânsito, com
mil coisas a fazer e 12 horas diárias apenas para tudo realizar etc. - pode ler
daqui em diante mesmo que garanto compreensão.
A coisa se deu assim: Marina fez a tal viagem, na qual tudo
correu bem (depois do aeroporto, quero dizer), e na capital pernambucana passou
bons e alegres momentos: cumpriu a tarefa sagrada da viagem, passeou com a
amiga Viviane e seus lindinhos, reforçou seus laços de amizade com a cicerone
Cristina, confirmou a lindeza de Olinda
e se deleitou com bolo de rolo e bolo Souza Leão. Mas a verdade é que – como pano
de fundo emocional – duas (pre)ocupações não saíam de sua cabeça loura:
– O negócio que ela precisaria realizar (e realizou mesmo!)
quando chegasse;
– O tal presságio que a perseguiu, todo o tempo, desde o início... A mesma sensação
de aviso ruim no ar que sentiu desde os momentos prévios ao embarque.
Fazer o que se ela era sibila?
Pois bem, Marina decolou levando sua profecia junto: algo parecia prestes a acontecer! O lance era, como no lembrete
bíblico, “vigiar e orar”. E sem tréguas. Quando algo paira sobre a sua
cabeça, assim, Marina não descansa um só segundo... E esse certamente foi um dos
motivos das profundas olheiras que ela manteve durante a viagem. Então: Marina
flanava pela cidade e se preocupava, ia para a igreja e filosofava, andava no
calçadão da Praia da Boa Viagem e se evadia,
ia ao restaurante predileto de
carne de sol e seu pensamento a ameaçava... Sempre com aquela nuvenzinha cinza
de desenho sobre a cabeça! Sim: a natureza prometia tempestade! O fato era que
ela só podia mesmo confiar aos Céus o pedido de desvio das águas... ou dos ares!
Como a moça imaginou desde o começo: o perigo estava
nos ares. Só que a turbulência começou antes mesmo da decolagem... Foi assim:
Marina foi para o aeroporto certa – repito – de que o
Guararapes guardava uma mensagem incógnita. Dessa vez não se atrasou nem perdeu
nada, sequer pegou fila para despachar a bagagem. Era a primeira, tão cedo
chegou! Com os olhos arregalados, à moda Louise.
Então, nossa protagonista estava lá – sentadinha e bonitinha –
diante do seu respectivo (e confirmadíssimo) portão quando percebeu que o voo
estava atrasado... Muuuito atrasado!... Passaram-se 20, 40 minutos... 1 hora e
meia... duas horas... e nada! Assim foi que – exatamente três horas, quarenta e oito minutos depois – uma
comissária, com ares mais solenes que sérios, aproximou-se dos passageiros-de-espera e disse:
– Atenção, passageiros do voo 4739 eu peço que não se
alarmem, mas o voo está atrasado por um pequeno problema técnico nas
poltronas...
Ao que um senhor de boina azul interrompeu:
– Ah, o voo está atrasado?... Duas horas depois o voo está
atrasado ainda???
Clamor geral. Burburinho e confluência de vozes, alarde
prévio em uníssono.
Exclama uma ruiva com camisa de time de polo e botas de
montaria:
– Isso é inaceitável! Tenho treino no Jockey... Vou participar
de competição esportiva amanhã!... E tudo isso por causa de irregularidades em
poltronas?
Nisso, um comissário – ao lado da primeira interlocutora da
companhia aérea – intervém:
– O problema foi precisamente uma pane na poltrona 11B e...
Antes que terminasse a fala, a comissária deu um beliscãozinho disfarçado nele, como se estivesse a falar demais...
– Pane???? – gritaram todos, já apavorados.
A aeromoça tenta desconversar:
– Bom, senhores e senhoras, o que houve na verdade já está
sendo controlado com as devidas medi...
– Ah, está sendo controlado ainda? E a companhia permite que
embarquemos num voo furado desses, com uma pane não-resolvida? – pergunta um
executivo.
O comissário volta a colocar panos quentes:
– A verdade, senhor, que uma pane nem sempre é grave,
dessas de...
– De derrubar avião?
– questionou um metaleiro.
Novo burburinho. Faíscas no ar.
O rapaz tenta continuar:
– Uma pane é uma interrupção não-programada no funcionamento
de algum mecanismo da aeronave.
– E quem me garante que não houve uma pane séria, dessas que
fazem aviões caírem, como o garoto ali disse?...– bradou um halterofilista de
uns dois metros.
Marina, com estranha expressão no rosto, mantinha-se quieta
diante de tudo. Mais que todos, ela tinha praticamente a certeza da gravidade. Sim, deve ter havido uma pane mesmo! Imaginativa,
nossa protagonista praticamente vislumbrou as faíscas nos ares de sua
imaginação...
Eis que um terceiro comissário chega e transmite o
comunicado do comandante sobre as perfeitas condições da aeronave, conseguindo
acalmar a todos (ah, humanidade
teleguiada!), iniciando-se um embarque normal.
Marina seguiu o fluxo, mais apavorada do que pela distração
costumeira. Mas, no fundo, tinha a consciência responsável de que só adentraria
a aeronave para observar o estado da tal poltrona, ou das poltronas, e
verificar – também pelo discurso do comandante – se a situação era de real
periculosidade. Bom, seus botões já haviam conversado entre si... Aliás, um
intercolóquio de dias! Realmente, a situação era séria... e Marina começou a sofrer
aqueles vácuos de respiração abruptos que tinha cada vez que uma ameaça se colocava bem diante dela... Minutos depois, olhou em volta, mais uma vez, e -
não conseguindo ver sinal de nenhuma poltrona “reparada” –, bruscamente se
levantou e foi – em passo impetuoso – direto até a cabine do comandante. Já na
entrada, um terceiro comissário tentou impedir a sua passagem...
No entanto, resoluta,
a moça adentrou o espaço, já se dirigindo com ares austeros ao comandante:
– Comandante, me desculpe pela invasão, mas de fato não irei
nesse voo se não souber exatamente – e pelo aval do senhor – o que aconteceu
com esta aeronave para ela atrasar mais de duas horas e, ainda assim, os
comissários se atrapalharem totalmente no comunicado lá fora... – Marina falava
sem parar, num só resfolegar.
É claro que ela não falou de sua premonição de dias (ele
zombaria dela), embora viesse bem a calhar naquele momento (quanto a isso, nós
três concordamos, não é?)...
O comandante parecia entre meio petrificado e com raiva. Mas
se limitou a dizer:
– Senhorita...
– Senhora – a moça
rebate, com olhos de husky siberiano.
Parece até que o comandante ficou com medo por dois
segundos. Se o teve, todavia, disfarçou:
– Como eu dizia, senhora, tivemos uma pane el...
– Ah então foi uma pane... elétrica?
– Quem disse para a senhora que foi uma pane elétrica?
– Ah, então foi isso que aconteceu, meu Deus?! Uma pane
elétrica! Pode até explodir o avião!
– A senhora é quem
está dizendo.
– Nada disso! O senhor estava dizendo e peguei o termo
“elétrica” bem no meio e, então, percebi a forjação!
– Mas que forjação, senhora?...
– Senhor, não adianta tentar me enganar: fiz cursos de Neurolinguística
e Controle Emocional. E, até pelo seu respirar, posso mensurar o nível de
verdade de suas palavras... Portanto, depois de toda essa aflição, me diga: há
possibilidade de voltarmos a ter uma pane?... Assim... em pleno voo?
O homem balançava a cabeça.
Numa última tentativa, falou:
– Senhora, tenho 46 anos, uma carreira sólida e uma linda
família. A companhia me paga bem, as aeronaves passam por revisão, e eu por
treinamentos constantes. Assim como a senhora, também não quero morrer, deixar
minha filha de 15 anos, meu filho corintiano e minha mulher, que foi miss e de
quem eu morro de ciúmes, sozinhos aqui nessa Terra de vândalos! Portanto, vou
fazer um trato com a senhora: o comissário Gesualdo Augusto vai acompanha-la
até sua poltrona, e no caminho vai mostrar-lhe que, em lugar da poltrona 11C...
Uma Marina já mais complacente diz:
– Mas eu não a vi, em nenhum momento!
– É claro que a senhora não pôde vê-la... Como eu lhe dizia,
o comissário Gesualdo irá mostrar-lhe o vão – ou seja, o espaço vazio – que
ficou no lugar da poltrona retirada. Assim, se a senhora não constatar isso,
poderá deixar a aeronave.
Marina viu razoabilidade na proposta. E disse:
– Ok, Comandante. Parece-me que o senhor fala a verdade.
Talvez as incoerências tenham surgido da insegurança dos comissários a
transmitirem a notícia. Mas lhe digo: se eu não confirmar o vão dessa tal
poltrona, sairei e ainda direi o motivo, conclamando a todos que façam os mesmo para salvarem suas vidas!
– A senhora vai causar pânico no acidente sem necessidade.
– Melhor pânico agora que gritos de horror depois com a
aeronave embicando pra baixo...
O pobre homem suspirou alto. Marina ainda o fitou bem no
profundo dos olhos, emudecida, e saiu.
No caminho para a sua poltrona, a moça verificou mesmo o
vazio deixado pela tal 11B. Além disso, a 11A também apresentava uns reparos de ocasião. Mas algo
superficial, que parecia simples.
A moça resolveu que iria no voo, afinal
parecia que o Comandante falara a verdade... e Louise e o Rio a aguardavam! Entretanto,
sabia que, mesmo não tendo medo de avião, daquela vez iria rezando...
E foi concluindo um Pai-Nosso feliz e devotado que ela
aportou no Rio de Janeiro – cerca de três horas depois –, depois do voo de mais
quantitativas – e terríveis! – turbulências de sua vida!
Mas... e a intuição de tantos dias prévios? Simples: Marina
atribuíra o fato à perda de um pendente antigo que trazia ao pescoço num dos
trajetos pela Boa Viagem... Qual a relação entre uma coisa e outra? Bom, ela
desenvolveu uma teoria de que – havendo no ar algum tipo de presságio, tal
energia ruim confluiu para um objeto, especificamente, e aí se dissiparam os
eflúvios de perigo, do mesmo modo que seu perdeu o pendente... Como se tudo tivesse sido descarregado nele, entende? Fim de contas:
com o sumiço da peça, também seguira com ela a promessa de acontecimento
infeliz... Marina estava certa disso. E entendeu que o prenúncio não-sólido se
desmanchou no ar!...