SAYONARA SALVIOLI
O PRESENTE DE POMPEIA
romance inéditoSS1738091
Prólogo
Créditos da imagem: F. Surprise
Eu ainda não direi o meu nome; a lei do
silêncio pode ser um bom começo de relação – algumas vezes, foi saída fácil
para a humanidade. E eu a uso agora não como um recurso especial, mas porque
não interessa aqui a minha identidade: se sou um homem destemido e valoroso,
talvez um guerreiro de bíceps avantajado, se sou uma mulher bela e gentil, de
faces rosadas e olhar traiçoeiro... se sou (quem sabe?) um jovem sonhador ou um
velho com as forças combalidas, espinha vergada e voz trêmula. Não importa. No
entanto, não sou nenhum desses. E neste momento interessa apenas a minha missão
da vez: a história que eu vou contar.
É a história de um amor proibido capaz de
tocar o coração mais endurecido, mas também passível de liberar o verso do
poeta, acalmar animais indomáveis e arrancar sussurros dos amantes! E tudo é assim tão forte e bonito, desde o
princípio, porque estou aqui – navegando o mar Egeu, numa imensidão azul de
causar inveja ao próprio céu! A visão é
como uma cortina d’água cor de turquesa contornando a corte do Olimpo... Na
verdade, atravessei o Mediterrâneo e acabei por optar por esta fresta magnífica
de oceano, onde assisto agora a um espetáculo que é o oposto do que vi, aqui
neste mesmo mar, o ano passado...
Era o
dia 2 de setembro de 2015 e eu andava pelas bandas da Turquia, em Bodrum,
quando vi as águas do Mar Egeu banharem o corpinho imóvel de um menino moreno,
bonito como um anjo, com o rostinho redondo enfiado na areia pelo beijo da
morte!... Aproximei-me dele e o que senti foi um golpe de alma: um vento frio
espalhou um som lúgubre que parecia atravessar todo o mar em protesto, no mais
lancinante grito dos ares! Sabe quando o vento sopra um murmúrio triste, mas
tão triste que os dentes dos humanos parecem ranger e a sua coluna dorsal se
petrifica? Assim!
Bom, eu
não sou novo, posso garantir, e conheço desta vida tudo que uma pessoa possa
imaginar. Mas, juro, nem o acúmulo dos anos me trouxe, até hoje, a aceitação da
morte de uma criança. Pequenos não deveriam cerrar os olhos... Mãe nenhuma
poderia perder um filho ainda criança. E o menino na praia foi silenciado à
força, pelo humano grito estridente da guerra.
Estou
acostumado a viajar o mundo (flâneur incorrigível que sou!) e já vi coisas que
não estão nem nas inscrições nas árvores dos druidas nem no Apocalipse de João.
Mas essa cena do pequeno sírio, com toda a sua inocência enterrada na praia dos
homens insensíveis, foi uma das piores de meu manancial de memórias. Há muito
eu não via nada igual! E era apenas um dos inocentes tornados inertes... Mais
ainda do que essa dor, teve lugar por aqui uma lamentação coletiva, de milhões de
pessoas, entre crianças e desvalidas, que precisaram deixar seu lar e sua
pátria na Síria.
Minha
memória me faz recordar que, naquela quarta-feira triste, morreram o menininho
de três anos, sua mãe, seu irmão e outros seis patrícios. A partir disso, como
se não fosse tarde, governos da União Europeia resolveram, enfim, dar guarida a
mais de cem mil sírios. E um contingente de refugiados começou a chegar à
Itália e à Grécia...
E é nessa Grécia estupendamente azul, bem no
meio da paradisíaca baía de Kiladha, Golfo de Argos, que vejo uma figura de
mulher que mais se assemelha a uma oferenda viva ao Mar Egeu! Uma Ifigênia
em honra a Posseidon, o deus dos mares? Ou a própria Afrodite — a deusa da
beleza saída das espumas do mar?
Num ângulo da Terra, ao largo da costa
oriental do Peloponeso, pareço avistar a própria rainha das nereidas: Sophia! Quando olhada de perto, a
divindade terrena revela um biotipo de Grécia Clássica. Aliás, quando a fito mais
de perto ainda, percebo que ela parece mesmo uma estátua grega, como essas que
adornam os museus, os ginásios e os pódios. E tem um ar de quem não é
deste mundo: seu rosto e suas formas bem acentuadas dão a ideia de que ela vive
em outra era... parece habitar os tempos da antiguidade.
Mas a verdade é que ela é da Terra mesmo —
uma cientista, exploradora náutica e de civilizações antigas. Especializada
em arqueologia subaquática, é uma heroína pós-moderna da era 2000. Natural da
Ilha de Santorini, mora em Atenas. Mas vive rodando o mundo em busca de
tesouros milenares, pré-históricos e sensacionais. E não é para menos: além do
talento intelectual notório, o seu berço natural – a famosa ilha grega, ponta
norte – oferece um mundo de atrações capazes de estimular qualquer pessoa a querer
conhecer melhor esse universo: penhascos, mar cristalino e rochas
vulcânicas....
E aqui estou, sem ser visto, contemplando o
próprio paraíso — como todos se sentem ao entrar no Egeu —, onde o mundo é um
espetáculo à nossa volta... Não posso deixar de olhar com fascínio para essa
humana destemida, que se afunda em cavernas, tumbas e mares para penetrar os
segredos do passado.
O sol se
reflete no seu corpo em movimento,
debatendo-se nas águas, e faz reluzir o neoprene da sua roupa de mergulho, da
cor do oceano. Sophia se flexiona como uma enguia – toda agilidade e
desenvoltura – como se o snorkel
fosse uma extensão de seu corpo e não pesasse ou incomodasse.
Penso que agora, este ano, é bem mais feliz a
minha visita ao Mar Egeu: estou de olhos postos numa figura de mulher grega que
imerge em suas águas com a intrepidez maior que a de um navegador e, ao mesmo
tempo, a leveza de uma nereida, dona de todos os encantos do mar, com as suas
curvas corporais e os seus meneios... O barulho de seus braços e pernas na
água e também a sua fala se fazem ouvir:
—
Leandro, quem diria que o nosso trio da faculdade iria encontrar uma cidade
submersa como essa?!
A água parece estar quente e agradável, mas o
arqueólogo tem dificuldades para falar, pois ficou muito tempo debaixo d’água:
— Sim — diz, em entrecortes de voz —, da
Idade do Bronze. — e começa a estabilizar a respiração.
Sophia está empolgada:
— E o melhor: uma civilização de três
milênios antes de Cristo! Literalmente, essa descoberta é um divisor de águas
na nossa carreira! — Acho que com essa ficamos mais importantes que Ulisses...
— Ah, ah, ah, ah!
— Mas a odisseia, a grande aventura, não será
fácil! — Uns acadêmicos de Genebra estão brigando pela descoberta; já se
instalou uma turma na praia de Lambayanna...
A arqueóloga-nadadora, de repente, desloca-se
na água fazendo barulho e borbulhas... afunda-se de propósito e emerge à
superfície, agitada e falando alto:
— Eles não podem abrir uma temporada de
pesquisa sem o nosso grupo, Leandro! O feito foi nosso! Acham que é fácil assim? Que é só chegar e
“pegar” tudo pronto? E explorar os doze mil metros quadrados de uma civilização
costeira submersa... — faz uma pausa para respirar melhor — que nós descobrimos?! Não, mesmo!
Leandro começa a rir, e Sophia não entende
nada. Mais do que isso, fica irritada:
— Está maluco, Lê? Então, os caras querem
tirar os louros da nossa conquista, descaradamente roubando a nossa descoberta...
e tudo que você faz é rir?!
O amigo, então, estende a mão direita,
contendo algo dentro, e diz:
— Duvido que adivinhe o presente que tenho
aqui pra você!
Sophia se interessa:
— O que é? Pegou lá nos escombros? — e,
entrando na brincadeira: — Já sei, já sei... um colar ou uma tiara das damas da
nova Atlântida?!
Leandro balança a cabeça que não. E, como já
conseguiu o que queria, o brilho nos
olhos de Sophia — que estão translúcidos como a água —, resolve acabar com o
suspense:
— Nada
disso! Não peguei no navio... Prefiro os presentes vivos! — e entrega à colega
— tapando com a mão direita e guardando o conteúdo misterioso entre os dedos da
mão fechada de Sophia — uma criaturinha do mar muito, muito diferente...
Sophia solta um gritinho e algumas
exclamações, ao abrir a própria mão e se deparar com uma espécie de miniarraia
com os olhos vivos fitos nos seus, uns olhos grandes, destacados e meio
amendoados como os de uma egípcia, se humana a criaturinha fosse... Mas de
repente:
— Ai, esse bicho espeta... furou minha mão!
Olhe: ela é cheia de pequenos espinhos no dorso... eles ferem... — e, no
momento seguinte, entendeu o motivo do presente: — Mas... observe isso,
Leandro, a miniarraia tem a boca pintada! Ei... ela parece estar de batom! Como
pode?! A cor dos lábios dela é do exato tom do gloss que eu quase comprei na Sephora ontem!
Sophia está agitada com a novidade e olha,
com ar gentil e, ao mesmo tempo, perplexo, para o presente em forma de...
crustáceo?!
O amigo esclarece:
— É um Ogcocephalus
darwini. Peguei no ponto mais profundo do oceano, junto à entrada da
cidade.
A cientista continua investigando com o olhar
o bichinho do mar que parece uma figura de ficção ultramarina. Diz:
— Eu não sabia que no Egeu era possível
encontrar algo assim. Parece a imagem de um serzinho saído d’algum livro de
magia...
— Bom, nas “profundas” do Egeu, você quer
dizer. Ela morava a mais ou menos trinta
metros de profundidade!
Um pensamento passa pela cabeça inventiva da
cientista, que já está achando que a espécie — assim como a cidade submersa — é
de uma outra era...
Leandro parece entender a sua imaginação:
— É um tipo de vida incomum, mas existe,
ainda, em Galápagos; foi lá que vi pela primeira vez essas moças
engraçadinhas...
Ambos olham o pequeno bicho do oceano e riem.
Sophia não se contém, contemplativa:
— É incrível, mas essa priminha do siri
parece estar mesmo com os lábios pintados! E que rosto mais humano: olhos,
narinas!...
É inacreditável, sim: uma pequena arraia, sustentando-se
sobre quatro patas esbranquiçadas e gelatinosas, com uma “carinha” de expressão
humana. O tal rosto desenhado, com a sua “boca de peixe” (ou seria crustáceo?),
lábios coloridíssimos de um batom alaranjado-cintilante... Um deslumbre para
olhos de desbravadores. De mulheres exploradoras, especialmente!
Bruscamente, o bichinho sai andando com as
patinhas curtas, desde a mão até o antebraço esquerdo de Sophia, indo dar na
água, rapidamente — numa fluência que só a natureza explica... A moça fica desapontada:
— Ah, não... Fugiu!
Neste momento, na imensidão toda cristal e
borbulhas — num barulho de deslocamento que faz romper o silêncio do meio do
oceano, Leandro afunda de novo.
Sophia nada entende, retira o snorkel e o joga no bote ao lado, próximo
uns metros de sua embarcação-veículo. Meio sem consciência dos perigos que
podem existir à sua volta, aproveita o momento para ficar boiando naquele
paraíso aquático, com uma civilização milenar submersa e escondida... Seu corpo
molhado fica moldado dentro daquela roupa que parece uma armadura modernosa de
astronauta das profundezas abissais... E ela está refletindo sobre os ciclos da
vida quando, bruscamente, novo deslocar de águas traz de volta Leandro à
superfície, tendo nos braços...
—... um peixe todo azul e fofinho! Que coisa
mais linda, Lê!... Não está pesado?
Ele é enorme! Parece de aquário gigante de exposição!
A arqueóloga, maravilhada, se refere ao
imenso peixe, cristalinamente azul, de mais de um metro de comprimento — e
parecendo uma figura em 9D de tão dimensional —, cujo tom se mistura ao das
águas quentes do Egeu!... De fato, é coisa para encher os olhos, pois o peixe
resplandecente parece todo aquoso, quase como se fosse inflável, todo cheinho,
volumoso... e tem a cor do céu! E com um olhar brilhante, quase lacrimoso, como
o do mais encantador peixinho de estimação! Um mimo do reino marinho... Trazido
pelo amigo, um presente feito de mar, textura de oceano, tom azul-piscina
mesmo, talvez uma prolongação perfeita do Egeu dentro de um corpo de peixe!
Sophia sorri com a imagem, e Leandro também
está sorrindo, quando, de repente, daqui — do meu ângulo de observação — eu
miro o inferno de Dante em seus olhos: é
a expressão fiel do pavor:! Acho que a nereida viu a própria Medusa surgida
nos mares!
Leandro é suspenso nos ares, e o lindo peixe
azul cai nas águas... Numa fração de segundo, como se surgido das profundezas
abissais de um inferno náutico, um animal enorme, um monstro — lobo-marinho
gigante, orca, um cruzamento de espécies?! — levanta-se na água abruptamente...
Por Zeus! Parece ter uns sessenta pés de comprimento! No seu dorso, está
Leandro, como um boneco de tão pequeno nos braços mortíferos da fera! Está
imprensado dentro dos braços da quimera marinha, envolvido por filamentos que parecem
tentáculos gigantes, sendo aos poucos envolvido e sufocado, com a língua de
fora e os olhos vermelhos como fogo, sem ar, oprimido na garganta com o
silêncio da morte!...
De frente para ele, Sophia — em estado de
choque — fura os ares com um grito agudo e alarmante, que faz os pelicanos se
afugentarem céus afora... E o som da lamentação penetra as águas e as encostas
dos rochedos, a praia e a atmosfera! E só se cala no fundo do ouvido das
criaturas... Todos — humanos e aves —, todos paralisados com a criatura furiosa
do Mar Egeu!
**********
Embora Sophia nunca mais vá esquecer esse
quadro de horror — ainda que ela venha a viver cento e cinquenta anos! —,
talvez mais tarde ela venha a entender melhor a perda brutal do amigo na baía
de Kiladha e conclua até que, em seu pavor repentino, ela chegara a ver coisas...
Sim, a cientista estava com sono e mergulhara por muito tempo — sem forças e
sem se alimentar direito. Suas ideias embaralhavam-se e sua mente podia fazer
projeções... Falta de sono, de comida e mar podem ser perfeitos alucinógenos. E
por isso, muito provavelmente, a arqueóloga vira na foca-monge-do-Mediterrâneo
— um real ser marinho de quatrocentos quilos — não menos que a figura terrena e
reduzida da monstruosa Hidra de Lerna!
**********
Coincidência de nomes, acaso ou destino? Na
mitologia grega, o jovem Leandro também foi tragado pelas águas.
DESTINO
GREGO
Primeira
parte
Capítulo
I
De marfim e ouro, qual
Athena...
E vem o pós-tragédia... Aquele período em que
as pessoas se encontram no fundo de uma caverna, mas que não é como a de
Platão. Prisioneiro é quem ficou, a
pessoa que — abatida pelo trauma da perda — está com grilhões nos pés que a
impedem de alcançar a saída da caverna para ver o mundo... E a moça foi essa
prisioneira por um tempo — não dos próprios mitos —, mas sim de uma dor
gigantesca. E só nisso o sentimento era igual à caverna de Platão: a ideia de
que a dor dentro de si era maior que o resto do mundo.
Não
era! E
Sophia saiu da caverna... Bom, no caso dela também adentrou outras grutas e
cavernas, por ser arqueóloga. E sabia que algum dia precisaria voltar a
mergulhar e a emergir — no Egeu e no mundo.
**********
Atenas,
Museu Arqueológico Nacional, agosto de 2016.
Agora, porém, a arqueóloga está em terra. Sophia
decide voltar ao trabalho convencional da rotina em museus. Assume, então, seu
posto à frente das coleções Esculturas
e Tera.
A heroína de ciência
da Grécia atual, totalmente voltada ao trabalho, pode até se esquecer de que é
fiel aos moldes gregos também na aparência. No entanto, quem quer que a olhe,
sendo deste mundo ou não, da era contemporânea ou de uma fase distante, imediatamente
irá achar que a moça se trata de uma obra de arte viva — de pele marmórea e
traços fisionômicos dos helenos clássicos. E, se catalogada ela fosse, como as
demais peças de valor do museu, teria uma inscrição assim:
Sophia Chronis, 31 anos — mulher grega do
séc. XXI, arqueóloga, lenda feminina pós-moderna
Quanto à descrição, precisaria de um número
maior de caracteres do que a praxe permite neste caso. Eu, no entanto, me
atrevo a tentar descrever melhor a sua forma exterior... Rosto oval, algumas
sardas — porém, em tez aveludada —, cabelos da cor do âmbar! Trata-se de uma
linda mulher; mesmo, uma estátua grega tornada humana (repito!). Vejo ainda que
o seu rosto parece o de uma italiana; ela tem algo que a faz parecer a eleita
do Imperador, no tempo do apogeu do Império Romano. Sim, não sei se a
classifico como grega ou romana... Ela parece ter as duas faces do que era o
mito feminino dos dois povos. Isso fisicamente.
Sophia Chronis é alta e magra, mas de uma
esbelteza que os antigos chamariam de bem-feita, torneada, com formas realçadas
e vibrantes. Além das pernas esguias — que parecem prontas o tempo todo para uma
maratona —, possui um tronco firme e rijo, que a faria ser confundida com uma
lançadora de dardo dos primeiros jogos olímpicos, na própria Grécia. Sim, Sophia
é esculpida e encarnada a estátua de Fídias — a Athena de ouro e marfim de doze
metros que enfeitava o Parthenon! E, com essas formas esculturais, não poderia
ser diferente quando está com um homem... O seu poder de atração é quase
mortal, suponho... Ela não sabe, mas um de seus amores me falou sobre a sua
efervescência feminina. Fiquei morto de inveja, pois queria também poder estar
com ela na cama e sentir todas as nuances de seus sentidos... Aliás, desde que
senti suas mãos quentes há uns anos nunca mais pude me esquecer da ninfa lépida
e longilínea —, dourada como a estátua magna e como o Sol! Ao tomar a sua mão,
sente-se um fervor constante, uma temperatura que não é normal... Talvez tenha sido por isso que seu homem do passado
tenha dito:
— Uma noite, no auge do amor, olhei para o modo
como ela se contorcia, fremitante, e senti meu peito inflamando com o corpo
dela — e a vi tão em êxtase, no ponto mais alto do Olimpo, a tremer
convulsivamente — que pensei até que ela pudesse morrer! Ali, naquele instante!
Tamanha a intensidade de sua vibração orgásmica... Assustei-me e maravilhei-me,
ao mesmo tempo, com aquela pele incandescente e aquele furor de amazona, e
pensei que ela não era humana... Senti-me o próprio Rei-Sol!
Mas o corpo de luz não era ele mesmo. Tanto que
tinha noção:
— Mas aquele calor
não vinha do meu corpo para o dela. Era justamente o contrário! A graça divina da hipertermia em
momento de êxtase é da própria Sophia — e
só dela! Nunca vivi nada parecido com nenhuma mulher... É a própria deusa grega da epiderme e do tato
— da plenitude corpórea.
E aí ele completou com algo que não mais me
saiu da lembrança:
— Se
êxtase tivesse nome próprio, seria feminino: Sophia Chronis!
Contudo, eu vejo ainda mais, bem mais na
Athena humana: a sua personalidade também a faz parecer uma lenda! Sou um
exímio observador e, não por qualquer motivo, sinto que em certo momento ela
irá me surpreender, justo a mim, que sou mais visionário e atento que um mortal
comum. Mas percebo que — mesmo sendo eu instável e voluntarioso — ela pode
comigo: talvez ela consiga me enxergar em minhas diversas faces, penetrar-me os
segredos... Eu bem sei o que ela pode com um homem! E, candidato que sou a seus
amores, comigo ela não deverá ser diferente...
Ainda bem que ela ainda não sabe que me
causou este sentimento, coisa que poucas vezes senti em toda a minha história,
para ser franco. No entanto, o que vem ao caso é que Sophia Chronis é o atual objeto
de minhas paixões mais arrebatadoras! Ela é capaz de atravessar-me, ponta a
ponta, e instalar-se bem ao centro da minha emoção! Por isso, sempre estarei
disposto a dar-lhe novas e novas chances...
E isso — o seu destempero, a sua impetuosidade
— se manifesta não é de hoje... Pasme: já a vi fazendo coisas que a maior parte
dos mortais nunca fará, como trilhar as áreas que circundam os mais de oito mil
quilômetros da Muralha da China! Como uma Indiana Jones de indumentária
feminina, vi também imagens suas no interior de pirâmides antiquíssimas, no
alto das escadarias incas, no âmago de desertos e em matas cerradas da África
Setentrional. Ainda a vi estampada de coragem a vasculhar instalações secretas
dos governos do período da Segunda Guerra! Sei que não tem fim o seu espírito
de busca, a sua avidez em redescobrir o mundo... E sei, mais ainda, que ela
sonha — mais como estudiosa do que como aventureira — descobrir reinos que
tenham ficado escondidos da humanidade por séculos, talvez milênios.
Mas agora as pistas que ela encontra infestam
os ambientes internos do Museu Arqueológico Nacional de Atenas, sua segunda
casa.
(...)
Capítulo II
Sentimentos gregos & troianos
Acropolis / Μνησικλέους 56, Plaka, Atenas
Sophia
Chronis — mesmo sendo uma mulher tão atraente e singular —, não seduz apenas
pelos encantos de sua feminilidade. Sou seu fã, como já demonstrei, mas ela é
lenda porque é mais... Mais que apenas mulher, mais que apenas criatura. E, com
toda essa aura de deusa, ela é — na verdade e sobretudo — uma cientista
brilhante das coisas antigas. Mas o
recente trauma, ainda que diante de suas (sagradas) obrigações, não lhe permite
ficar em lugar fechado por muito tempo. Se antes isso não era comum, agora se
tornou impossível. Leandro Alfeu era seu colega de trabalho, foi parceiro na
universidade e amigo de infância. Vê-lo morrer completamente sufocado e com os
olhos estatelados, num abraço maligno daquela criatura do mar, deixou-lhe uma
ferida na alma, como pode pressupor qualquer um que carregue um órgão
palpitante na caixa torácica.
É
por isso que agora — acreditando que a vida pode se esvair em um minuto — ela
começou a jogar os compromissos para o alto e ir olhar o céu sempre que a sua
razão tem dúvidas. Acostumada a pensar como cientista, a arqueóloga começa a
entender que a emoção também pode ser diretriz e que — assim como o cérebro —
cada lado da existência tem uma função.
********
Sophia
sai do museu meio desabalada, parecendo ter mais pressa que o vento soprante a
saudá-la no grande átrio frontal à construção. De repente, ela dá uma paradinha
e olha para trás, como se, com isso, pudesse contemplar o passado de volta. Mas
o que ela vê mesmo, nesse momento, é a fachada do prédio salmão e branco, com
grandes pilastras de mármore sustentando o pórtico principal. Quatro colunas
gregas estilo coríntio são a porta de entrada para um mundo de antiguidades bem-guardadas.
Lá, pensa a cientista, estão alguns dos maiores tesouros artísticos do seu país
em peças individuais — da civilização helena primordial e, mesmo, da chamada
era romanizada. E o período histórico ocorrido entre as duas.
A arqueologia
estava no íntimo da heroína grega pós-moderna desde que ela se entendia por ser
pensante. Sempre fora apaixonada pelos cenários do passado. Agora, no entanto,
o seu cenário real — a rua Oktovriou — é o princípio de um trajeto quase inteiramente a pé até a
Acrópole. Vinte minutos de um percurso compassado — com uma escalonada
intermediária de metrô — a levarão até a colina sagrada dos discípulos de Zeus
e sua corte.
Enquanto dá suas passadas de exploradora — observando sempre
tudo ao seu redor — ela se admira (isso acontece sempre) com o paradoxo que é a
cidade: apesar de ser uma metrópole da Europa toda movimentos e modernidades —
com direito a prédios majestosos, comércio de rua, veículos e gentes —, Atenas
é também um lugar que não esqueceu o passado. A capital grega dialoga com o tal
Senhor Tempo de quem tanto falam, e Sophia é uma das principais interlocutoras
dessa conversa. Ela apenas não sabe o que ele (o soberano tempo) deseja fazer
dela. Por outro lado, ela sabe que gosta de acariciá-lo — no museu e na
lembrança — sempre que o presente se mostra uma morada inóspita ou indesejada.
E ela quer fugir não sabe para onde... E tem saudades não sabe de que lugar...
Como entender isso?!
E a “cientista de roupa cáqui” não pode distinguir se são
realidade ou memória olfativa os odores de limão e iogurte que sente nos ares
ao caminhar pelas ruas de Atenas. Também o delicioso cheiro de um assado
penetra suas narinas no momento em que passa em frente a um restaurante...
Sabores no ar e voos na mente (sempre!), ela se vê entrando
na estação Vitoria, quase
automaticamente. Cerca de cinco minutos depois, ela salta na
Monastiraki Metro Station.
********
Agora,
Sophia está quase diante da Acrópole. E o que ela sente, especialmente hoje, não
seria maior se todos os deuses estivessem reunidos no alto da colina sagrada.
Ouve-se de um guia turístico local:
— Αυτή
είναι η πιο μαγευτική στιγμή στον κόσμο!
Sim, todos estão a contemplar a
construção mais majestosa do mundo!
Sophia
caminha entre enormes blocos de rocha calcária, em superfície irregular. Num
relance, ela estica as vistas para apreciar o vizinho Templo de Hefestos e o
Templo de Dionísio. É quando ela escuta um sino badalando e entende que o
presente é uma aventura palpável. E que embora esteja na antiga Cidade Alta,
quase diante do Parthenon —, num sítio arqueológico antiquíssimo, com a vista
de uma cidade de seis mil anos —, é uma realidade bem viva que a prende ao
mundo. É a sua eterna sede de desbravadora se manifestando mais uma vez!
Num
átimo, a grandeza enche seus olhos: olha diante de si, muito, muito próximo
agora, o monumento espetacular — o esplendor de mármore que reina absoluto na
Acrópole! O Propileu, o Erecteu e o templo de Atena Nike ficam realmente pouco
expressivos diante do Parthenon... É quase como se Athena, deslumbrante, o
tivesse selado como uma das obras mais belas da Terra! E encantamento puro é o
que Sophia sente toda vez que vem aqui. Como na história dos amores que queimam
a pele, cada nova vez é como se fosse a primeira!
Repentinamente,
um movimento aerodinâmico, um bater de asas —
planando sobre a sua cabeça e confundindo-a — quase a leva a transe,
quando numa fração de segundo, um pombo gigante... de cor preta... Seria mesmo
um pombo? Não, talvez um corvo... uma ave grande e escura... que mais e mais se
agiganta, faz turvar suas vistas e, de repente, passa de raspão em seu rosto, desarruma
seus cabelos, arregala seus enormes olhos cor de Sophia.... e ela cai,
desmaiada!
Sophia Chronis acorda numa taverna no bairro boêmio de Plaka. O barulho
das ruas badaladas a faz abrir os olhos. Ao seu lado, Klei Alexander — um olhar
suave num pender de cabeça, apesar dos braços musculosos, um deles ornado com
uma tatuagem de Teseu, numa alegoria do momento em que ele vence o Minotauro.
Isso deixa o rapaz bastante exuberante.
. A moça não sabe o
que viu nele, mas o fato é que — apesar de não sentir pelo rapaz nenhuma paixão
— acha-o sempre por perto quando nada sabe de si mesma... Ele já foi seu
namorado por um bom período, mas agora é uma espécie de ficante frequente ou uma companhia de determinadas fases. Mas a
arqueóloga teme não sair desse marasmo da falta de paixão e acabar, por
comodismo, voltando o namoro e se casando com o escultor-taverneiro-navegador,
como se ele fosse um eterno encontro marcado.
Klei é um artista
plástico que molda sua arte num barco, a bordo do horizonte azul... Tudo muito
livre para a mentalidade sistemática da cientista. Contudo, o rapaz parece o
ponto de reinício de uma circunferência e acaba sempre fazendo a tal curva de
360 graus na sua vida. E não porque ele se pareça com um deus grego ou alguma
espécie de fauno... Não, mas não deixa de ser raridade, já que — segundo as
amigas da moça — Klei é um tremendo macho-alfa, tipo de homem em extinção.
Certa vez, ele foi ao
museu e até a sisuda da Dra. Adria, oceanógrafa e curadora da Exposição Sazonal
de Talassos, ficou excitada com a visão do efebo:
—
Por Afrodite, Sophia! Apolo veio buscar sua lira? Ou Zeus resolveu assumir de
vez a forma de homem?!
De
fato, o espécime grego dono de taverna e de mãos de torneador parecia um deus
não só por saber manipular ferramentas como o próprio ferreiro Hefestos — o
deus do fogo (o mesmo que fabricou o arco-e-flecha de Eros), com a sua forja em
forma de raio. O artista terreno é capaz
de moldar formas humanas perfeitas e representações esculpidas de tudo quanto
existe! Mas na Terra de hoje um deus do fogo chama a atenção por outros
dotes... Ao vê-lo, também a auxilar Calandra exclamou:
— Ζεύς! Que músculos! Este Klei Alexander
parece mais o David de Michelangelo,
com exceção, claro, daquele detalhe mínimo — e olha os países baixos, em
certo ponto da calça do rapaz: — não, não, decididamente, não! Sua majestade em
testosterona é bem mais poderosa!
Nesse
dia, Dafne e até a Dra. Adria riram aos montes, ao ouvirem isso, mas Sophia deu
apenas um meio risinho, só para não ser antipática... Isso porque ela conhecia
muito bem o lado de dentro da estátua máscula e sabia que, no fundo, no fundo,
Klei é de uma grandeza quase sobre-humana de coração, e não só de peitoral ou
de “partes”, apenas.
O bonitão também
parece menos terreno e humano por causa de sua vida quase nômade. Divide a vida
entre suas navegações no extremo azul e sua taverna no sopé da acrópole.
O lugar, meio mágico,
apesar de feito para turistas, tem uma espécie de terraço grande, frontal, de
onde se pode ter a vista mais bonita e ampla da cidade: nada menos que o quadro
esplendoroso da colina clássica mais famosa do mundo!
********
E a taverna do
ex-namorado(?) de Sophia fica no bairro noturno mais badalado da Atenas atual.
Sua fachada mostra um
telhado arquitetonicamente rebaixado e decorado com uma cabeça da Medusa e
medalhões de deusas com heras — em muitos galhos e ramificações — ornando-lhes
as frontes. E, adentrando o espaço, logo se vê um jardim interior que mais
parece um núcleo da Grécia antiga, um jardim com estátuas, parreiras e tochas —
todo recriado para servir à noite dos novos tempos, com seus drinques
coloridos, música, dança e festim. Dionísio aqui seria um deus de marasmo...
E a noite de Atenas na
taverna Reino de Hades, de Klei
Alexander — que mantém seu último fio de vida até o amanhecer, sem interrupções
— ilustra bem o que dizem na Europa sobre a capital grega nos dias de hoje: que Atenas nunca dorme!
E não dorme mesmo!
Como nas festas dos jovens, a noite toda, nas praias dos arredores, esse Reino
de Hades bem contemporâneo apaga as tochas de festim somente quando o sol
aparece.
(...)
A noite caía com a
beleza estrelada do céu de Atenas quando Sophia decidiu que iria nos próximos
dias ao Oráculo de Delfos.