Embate na maternidade
Era uma menina cuidando da outra. Uma menina maior
imaginativa – com asas no coração – olhando encantada para a sua boneca de
horas... A pequenina chorava um chorinho manso, quase um murmúrio de querubim,
chamando pela mão de veludo em seu rosto!... Menina grande acariciava a face da
bonequinha e ela imediatamente parava de chorar! O tio olhava e ficava
impressionado:
– Olha que incrível! Ela chora, a mãe faz carinho de leve
no rostinho dela, e ela fica quietinha na mesma hora!
E assim era. Isso foi na maternidade, no primeiro dia.
Também fora lá que, em dado momento, o médico dissera:
– A enfermeira vai levar o bebê agora.
E a meninona, com os olhos arregalados:
– Levar para onde a minha filhinha?
– Para o berçário. Lugar de bebê é no berçário.
– Não o meu bebê! – retrucou a mãe-menina. – Não vou
permitir que levem a minha filha daqui! – e isso foi dito com ameaça nos olhos.
O médico, por um instante, até pensou em assentir. Ordem de
mãe não se rebate, mesmo mãe-novinha que parece não saber ainda das coisas...
Mas como ir contra as regras da Casa?
– Eu sou a mãe – insiste a jovem. – De jeito nenhum minha
filhinha vai ficar longe de mim! – E, ainda mais imperiosa: - Mande trazer o
bercinho pra cá. – E continuou: – Eu,
hein?! Que tremendo perigo! E se trocam a minha filha no berçário por outro
bebê?
O médico garantiu:
– Isso não acontece. Segurança total. As enfermeiras têm
muito cuidado. E há a pulseirinha, com o seu nome, no bracinho dela.
– Não passa pela cabeça do senhor que podem trocar a
pulseirinha?! Não teme os ardis humanos?
O senhor nunca vai ao cinema? Não viu Marnie?
O médico se sentiu bombardeado de perguntas.
– Qual a relação? – perguntou, meio atônito.
– Pode haver aqui alguma enfermeira maníaca... por bebês!
– Você andou vendo muito Hitchcock. Isso acendeu a sua
imaginação.
– Eu já nasci assim, doutor. E, neste caso, a minha imaginação procede. Estatísticas mundiais consideram o alto índice de enfermeiros entre psicopatas.
O
médico começava a se assustar.
– Além disso, entendo perfeitamente a Melanie... –
insiste a divagadora meninona (incita a preocupação do médico, de propósito).
Silêncio
pesado no ar, até o bebê chorar. A mãe para de ameaçar o médico com o olhar e
volta os olhos na direção da criança. Menina-mãe acarinha o rostinho de
menina-filha, e esta se aquieta novamente. Depois da trégua de minuto e meio – com o médico observando, maravilhado, a mãe-meninona acalmar instantaneamente o bebê – continua o embate, pela mãe (claro):
– Doutor, como eu estava dizendo, dou inteira razão à
Melanie...
– Que Melanie?
– Desculpe, mas vejo que o senhor não saca muito de Hitchcock, Doutor...
O
médico percebeu que perdia na queda de braço.
– Esqueçamos o cinema. Vou te dar algumas orientações
sobre como cuidar de seu bebê. Na vida real.
– Só depois que o senhor disser que a minha filha vai
ficar aqui comigo o tempo todo, sob pena de ela correr perigo lá fora e depois
o senhor poder até ser responsabilizado por isso!... Sei lá, doutor... Judicialmente isso de levar o bebê de uma mãe – para instalá-lo longe da proteção de seus olhos, arriscando a sua segurança – poderia ser considerado algo como omissão ou facilitação de crime, não?
E
o médico, pela primeira vez um pouco enérgico:
– Já disse que esse tipo de coisa nunca aconteceu aqui,
em mais de cinquenta anos de Casa de Saúde!
– É? – a mãe ponderou durante um piscar de olhos. Mas não
se convenceu:
– Existe sempre uma primeira vez. E garanto ao senhor: não
será com o meu bebê! – e quase se ergueu da cama.
O médico tremeu. Mães têm mais argumentos que o Direito e mais recursos que a Ciência.
E Mãe-menina continuou:
– Mas me diga aqui, doutor, com toda a franqueza, se não
existe estatisticamente alguma mínima possibilidade de isso acontecer?
O médico estava perplexo, com o terror nos olhos.
– Fale, doutor, se não há uma probabilidade de, pelo menos,
0,000001 % de chance de acontecer um sequestro ou uma troca de bebês? – E quase
fulminou o médico desta vez: – Refiro-me a algo tão preciso quanto a sentença
do doge de Veneza!... Não pode haver nenhuma milionésima probabilidade de erro
de sua parte, doutor, pois isso seria crime e o hospital (entenda-se: o senhor) seria irrevogavelmente
condenado!
O pobre homem mordia os lábios.
E a mãe, persistente:
– Então, doutor, se houver, minimamente, 0,000001 % de
grave possibilidade?.. – falou Menina-mãe, com os olhos cuspindo fogo em cima
do obstetra.
Nocaute perfeito. A testa do médico suava... E o coitado
sucumbiu:
- O.K., Sayonara. Vamos quebrar as regras do hospital: sua
filha vai dormir aqui com você.
– Do meu ladinho?
– Sim, do seu ladinho.
E permanece quase assim até hoje, no quarto ao lado.
Por Sayonara Salvioli
7 comentários:
Hilário, minha autora voluntariosa!!!! E muito boa a maneira como você nos conduz pelo texto até a revelação final da identidade da mãezona... ou seria mãezinha?... hehe
Eu é que não queria estar no lugar desse médico...huashuas
Acordo e a rua me ofereceu poesia, graças a Deus!, e - depois de registrá-la - resolvo passar no seu blog ( pq me interessa saber de vc!), e vejo este texto que foi logo, na delicadeza da foto, complementando, com suavidade - apesar da 'vozinha autoritária' (ou talvez por isso!) ecoando por toda a manhã de domingo de sol reconfortante e amoroso, como o texto, como vc, como todas as mãeszinhas-meninas. Confirmou o cheiro de anjo do café de hoje!
Adorei!! Certificado de mãe com selo!!!rsrs Pulseirinha no braço é pouco!!
Que mãezinha voluntariosa, hein? rsrsrs
Uma crônica como mãe, outra como filha. Artistas têm todo o sentimento na alma mesmo!!!
Que graça de texto, Sayonara!! Como sempre, você narra as peripécias do cotidiano com muito tempero e talento!!! Parabéns!!!! Virei frequentadora assídua do seu "Lauda Eletrônica"!!Bjss
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