segunda-feira, 14 de maio de 2012

Embate na maternidade



Embate na maternidade


Era uma menina cuidando da outra. Uma menina maior imaginativa – com asas no coração – olhando encantada para a sua boneca de horas... A pequenina chorava um chorinho manso, quase um murmúrio de querubim, chamando pela mão de veludo em seu rosto!... Menina grande acariciava a face da bonequinha e ela imediatamente parava de chorar! O tio olhava e ficava impressionado:

– Olha que incrível! Ela chora, a mãe faz carinho de leve no rostinho dela, e ela fica quietinha na mesma hora!

E assim era. Isso foi na maternidade, no primeiro dia. Também fora lá que, em dado momento, o médico dissera:

– A enfermeira vai levar o bebê agora.

E a meninona, com os olhos arregalados:

– Levar para onde a minha filhinha?

– Para o berçário. Lugar de bebê é no berçário.

– Não o meu bebê! – retrucou a mãe-menina. – Não vou permitir que levem a minha filha daqui! – e isso foi dito com ameaça nos olhos.

O médico, por um instante, até pensou em assentir. Ordem de mãe não se rebate, mesmo mãe-novinha que parece não saber ainda das coisas... Mas como ir contra as regras da Casa?

– Eu sou a mãe – insiste a jovem. – De jeito nenhum minha filhinha vai ficar longe de mim! – E, ainda mais imperiosa: - Mande trazer o bercinho pra cá. – E continuou:  – Eu, hein?! Que tremendo perigo! E se trocam a minha filha no berçário por outro bebê?

O médico garantiu:

– Isso não acontece. Segurança total. As enfermeiras têm muito cuidado. E há a pulseirinha, com o seu nome, no bracinho dela.

– Não passa pela cabeça do senhor que podem trocar a pulseirinha?! Não teme os  ardis humanos? O senhor nunca vai ao cinema? Não viu Marnie?

O médico se sentiu bombardeado de perguntas.

– Qual a relação? – perguntou, meio atônito.

– Pode haver aqui alguma enfermeira maníaca... por bebês!

– Você andou vendo muito Hitchcock. Isso acendeu a sua imaginação.

Eu já nasci assim, doutor. E, neste caso, a minha imaginação procede. Estatísticas mundiais consideram o alto índice de enfermeiros entre psicopatas. 

O médico começava a se assustar.

Além disso, entendo perfeitamente a Melanie... – insiste a divagadora meninona (incita a preocupação do médico, de propósito).

Silêncio pesado no ar, até o bebê chorar. A mãe para de ameaçar o médico com o olhar e volta os olhos na direção da criança. Menina-mãe acarinha o rostinho de menina-filha, e esta se aquieta novamente. Depois da trégua de minuto e meio  – com o médico observando, maravilhado, a mãe-meninona acalmar instantaneamente o bebê – continua o embate, pela mãe (claro):

Doutor, como eu estava dizendo, dou inteira razão à Melanie...

Que Melanie?

Desculpe, mas vejo que o senhor não saca muito de Hitchcock, Doutor... 

O médico percebeu que perdia na queda de braço.

Esqueçamos o cinema. Vou te dar algumas orientações sobre como cuidar de seu bebê. Na vida real.

Só depois que o senhor disser que a minha filha vai ficar aqui comigo o tempo todo, sob pena de ela correr perigo lá fora e depois o senhor poder até ser responsabilizado por isso!... Sei lá, doutor... Judicialmente isso de levar o bebê de uma mãe – para instalá-lo longe da proteção de seus olhos, arriscando a sua segurança – poderia ser considerado algo como omissão ou facilitação de crime, não? 

E o médico, pela primeira vez um pouco enérgico:

Já disse que esse tipo de coisa nunca aconteceu aqui, em mais de cinquenta anos de Casa de Saúde!

– É? – a mãe ponderou durante um piscar de olhos. Mas não se convenceu:

– Existe sempre uma primeira vez. E garanto ao senhor: não será com o meu bebê! – e quase se ergueu da cama.

O médico tremeu. Mães têm mais argumentos que o Direito e mais recursos que a Ciência. 

E Mãe-menina continuou:

– Mas me diga aqui, doutor, com toda a franqueza, se não existe estatisticamente alguma mínima possibilidade de isso acontecer?

O médico estava perplexo, com o terror nos olhos.

– Fale, doutor, se não há uma probabilidade de, pelo menos, 0,000001 % de chance de acontecer um sequestro ou uma troca de bebês? – E quase fulminou o médico desta vez: – Refiro-me a algo tão preciso quanto a sentença do doge de Veneza!... Não pode haver nenhuma milionésima probabilidade de erro de sua parte, doutor, pois isso seria crime e o hospital (entenda-se: o senhor) seria irrevogavelmente condenado!

O pobre homem mordia os lábios.

E a mãe, persistente:

– Então, doutor, se houver, minimamente, 0,000001 % de grave possibilidade?.. – falou Menina-mãe, com os olhos cuspindo fogo em cima do obstetra.  

Nocaute perfeito. A testa do médico suava... E o coitado sucumbiu:

- O.K., Sayonara. Vamos quebrar as regras do hospital: sua filha vai dormir aqui com você.

– Do meu ladinho?

– Sim, do seu ladinho.

E permanece quase assim até hoje, no quarto ao lado.


Por Sayonara Salvioli

7 comentários:

Helena disse...

Hilário, minha autora voluntariosa!!!! E muito boa a maneira como você nos conduz pelo texto até a revelação final da identidade da mãezona... ou seria mãezinha?... hehe

Paulinho Leivas disse...

Eu é que não queria estar no lugar desse médico...huashuas

Márcia Leite disse...

Acordo e a rua me ofereceu poesia, graças a Deus!, e - depois de registrá-la - resolvo passar no seu blog ( pq me interessa saber de vc!), e vejo este texto que foi logo, na delicadeza da foto, complementando, com suavidade - apesar da 'vozinha autoritária' (ou talvez por isso!) ecoando por toda a manhã de domingo de sol reconfortante e amoroso, como o texto, como vc, como todas as mãeszinhas-meninas. Confirmou o cheiro de anjo do café de hoje!

Cláudia F. disse...

Adorei!! Certificado de mãe com selo!!!rsrs Pulseirinha no braço é pouco!!

Lene disse...

Que mãezinha voluntariosa, hein? rsrsrs

Heloísa Borges disse...

Uma crônica como mãe, outra como filha. Artistas têm todo o sentimento na alma mesmo!!!

Alice Tendler disse...

Que graça de texto, Sayonara!! Como sempre, você narra as peripécias do cotidiano com muito tempero e talento!!! Parabéns!!!! Virei frequentadora assídua do seu "Lauda Eletrônica"!!Bjss