quarta-feira, 30 de junho de 2010

Verba sequuntur rem


Nem tão morta assim a precursora língua... Afinal, inúmeros são os ditos em Latim que – em concomitância com seu significado e expressão – tanto se aplicam ao contemporâneo. Considero apropriada esta sentença, por exemplo: Verba sequuntur rem, isto é, as palavras seguem a coisa. Como assim? Simples: atrelado à chegada de um objeto a um contexto sociocultural, automaticamente o seu nome – o novo nome, a novidade linguística – virá junto. Essa deve ser uma das causas essenciais de renovação da língua, na propagação do que poderíamos chamar, genericamente, de modismos linguísticos, e não apenas de estrangeirismos/empréstimos, dada a peculiaridade de enfoques.


Exemplos bem atuais dessas novidades e incorporações linguísticas são os termos vuvuzela e jabulani. Ora, um campeonato esportivo mundial pode inovar tanto assim o léxico nacional? Certamente que sim. Linguistas os mais diversos – apesar de eventuais divergências – concordam quanto à sua amplitude e à sua flexibilidade. Alguns, inclusive, defendem que o léxico – analogicamente à sintaxe – é suscetível de claras transformações em seu contexto, por vezes, metamorfoses sociais de toda uma comunidade, o que se configura em atualização, em não-conservadorismo, em renovação para uma língua.

No caso de uma língua como a nossa, tão vasta e peculiar, muitos foram os modismos e empréstimos linguísticos, creio que agregados em função da influência de temporalidades socioculturais. De 15 mil palavras durante a Idade Média até as 400 mil “computadas” atualmente, o Português passou por significativa ampliação, no acolhimento gradual de estrangeirismos e empréstimos de linguagem. Ao longo de séculos, importamos termos de idiomas de diversos povos, cujas culturas se mesclaram às nossas, de algum modo. Assim foi que ganhamos e adotamos expressões do Francês, do Inglês, do Árabe e do Italiano. Ora, o homem e seu idioma se adaptam às modificações de seu meio. Assim como facilmente detectamos o elemento arquitetônico francês na paisagem urbana do Rio de Janeiro, vemos também claros reflexos estrangeiros – por vezes sazonais – na linguagem, na roupagem do idioma. Parece bastante natural que a influência das artes e das línguas sofram (ou acolham?) o choque da aculturação, da mescla saudável e complementar da fusão de povos. Não por acaso já incorporamos vocábulos de modo tão agregador que sua aderência à nossa língua já se fez natural, e certas conotações estrangeiras já foram banidas de nosso entendimento espontâneo. Alguns dos maiores clássicos (abat-jour/abajur, chauffer/chofer, atelier/ateliê, buffet/bufê, shampoo/xampu, sandwich/sanduíche, football/futebol) demonstram bem isso. Nesse sentido, chega a ser incompreensível a opinião de Rui Barbosa ante o condenável galicismo de Eça de Queirós. Salvo o devido respeito ao mais que notável Águia de Haia, não é possível concordar com as restrições por ele impostas quanto à adoção e ao uso de elementos de outros idiomas no contexto da língua portuguesa. O que não dizer, então, do arbitrário projeto de lei – na atualidade brasileira! – intentando o fim da incorporação de qualquer estrangeirismo ao nosso idioma? Como no já quase vício-expressionismo linguístico: sem comentários.

De Rui até a era da Internet, então, a influência e o ingresso em nossa língua de termos advindos de outros idiomas e culturas se deram de modo tão vasto e galopante que hoje um sem-fim de termos cotidianos remete a outras etimologias. Aqui se lembre que, ao tempo do grande jurisconsulto e filólogo, os vocábulos em português se mantinham num universo quantitativo de 90.000 vocábulos. Cerca de cem anos depois, a quintuplicação desse número dá conta de uma avalanche de novidades linguísticas – distribuídas em glossários tão específicos quanto variados – capazes de alcançarem o interesse de qualquer sábio! Desde o âmbito de recursos humanos, produção e marketing (empowerment, benckmarking, headhunter, coach, lean production, downsizing, stock options etc.) até a tão propalada área de tecnologia/informática (download, backup, setup, bitmap, firewall, hardware, software, netscape, usenet, e-mail, e-commerce, login, log off, hacher, cracker etc.), os glossários específicos no idioma universal passaram a fazer parte do vocabulário cotidiano dos brasileiros. E, obviamente, se torna impossível não abarcar tais inovações, afinal constituem terminologias já inerentes à nossa prática diária de ações. Você, por exemplo, acha absolutamente normal falar mouse, claro, como se este vocábulo fosse "um dos nossos". Aderência natural.

Além da necessidade de se nominar esse sem-número de tecnologias que invadem a atualidade, também chamam a atenção implementações ocasionais. Voltando à vuvuzela e à jabulani, são exemplos típicos das tais novidades linguísticas que – no caso por influência de contexto e evento – se incorporam à fala e à escrita cotidianas. Em vez de vuvuzela, o nome de atribuição ao (irritante) instrumento sonoro poderia continuar sendo, simplesmente, corneta. Mas poderosas influências mundiais de marketing, oportunamente, conseguiram imprimir ao objeto já conhecido toda uma conotação (e denotação) contextual, na intenção de que o vocábulo expressasse um momento, um local, uma forma de expressão aclamadora, voz de torcida, emoção coletiva. E isso com características genuínas de seu “berço” (vuvuzela é um vocábulo da língua banta zulu – isiZulu –, uma das 11 da África do Sul), no nome e no significado, já que o instrumento de som também teria sua origem no país da Copa do Mundo de Futebol 2010. Precursoramente confeccionada por tribos ancestrais sul-africanas, tinha no início a função de chamar as pessoas para reuniões. Agora tão oportunamente difundida num mundial esportivo, seu uso remonta também, em tempos recentes, aos famosos jogos das equipes de futebol sul-africano. Assim – tal como na sentença latina que inicia este texto –, o nome acompanha o objeto. E na incorporação da personal corneta aos jogos da Copa, veio de encomenda o seu nome, peculiar e característico, configurando hoje modismo linguístico atualíssimo no Brasil do futebol.

E a jabulani (aqui, já com j minúsculo, uma vez alçado o vocábulo à condição de substantivo)? Esta também tem a África do Sul como berço, sobremaneira, inspirador. Trazendo, em suas onze cores, a representação das diversas etnias e dos dialetos sul-africanos, a bola – de consistência leve – também traz no significado do nome a leveza da festa esportiva, significando celebração. Por certo, a nominação não poderia ser melhor, já que evoca a participativa competição esportiva que congrega 32 países, na fusão simbólica, vocabular, solidária e ideológica de diferentes nações.

Em meio a toda essa festa linguística internacional, a melhor lição do que se poderia chamar de internacionalidade linguística – que nada atenta contra a supremacia de um idioma – é a função de enriquecimento de línguas e culturas quando entrelaçadas. No fim de contas, quando dialogam duas línguas entre si, heranças múltiplas e milenares poderão surgir de elementares interseções. Então, não chamemos de cabal utopia o sonho (utópico mesmo, mas com aspectos consideráveis) de Lennon. Nem deixemos de acreditar na profecia de Gilberto Freyre: quem sabe o Inglês não incorporará, algum dia, o nosso personal vocábulo saudade? Depois de – em contrapartida à importação de vocábulos – podermos constatar portuguesismos lá fora, tudo é possível!... Haja vista a exportação de samba e bossa nova (não me refiro aos ritmos e, sim, às palavras que os designam). Divagações à parte, o bom mesmo é celebrar – preferencialmente com todas as letras, em diversas expressões idiomáticas – a festa ideológica da coesão! Afinal, a soma sempre redunda em crescimento, em amplitude. E no universo idiomático isso não pode ser diferente.

Por Sayonara Salvioli

P.S.: Você pode estar se perguntando por que eu, em minhas registradas preleções filológicas, ao me referir a modismos linguísticos não falei de gírias ou dos tais surtos ocasionais de expressões (indevidas) que viram moda. Quanto às primeiras – as já consagradas em contextos socioculturais de uma época, as populares gírias, isso é matéria para um post inteiro, ante a opulência e diversidade do tema! E sobre os tais surtos de expressões, modismos indesejáveis, lembro aqui o reiterado uso de a nível de (erroneamente, inclusive), a/essa coisa de (lembra-se?), no sentido de (em vez do uso simples e adequado da preposição para) etc. Exemplos como estes últimos, na minha opinião, resultam em usos equivocados e massivos, muito mais se aproximando de feições viciosas de linguagem, na forma e no conteúdo.

5 comentários:

Cláudia F. disse...

Artigo maravilhoso! Achei muito abrangente e informativo. Sabe que adoro o que vc escreve e por isso estou sempre por aqui!Bjusss

Anônimo disse...

Encantado com o seu texto, sempre, Sayonara!!! A sua escrita é um deslumbramento!!!!! beijos

Belle disse...

Jabulani e vuvuzela. As novas palavras não deram muita sorte não!
Tambem o Dunga parece ter criado novas ou recriado velhas formas de expressao em campo...e pra ele tb nao faltam os velhos e bons xingamentos dos brasileiros!!

Luciana C. disse...

Gostei muito do que vc escreveu Sayonara! Nada como ler um texto de qualidade, que nos ensina e faz pensar!

Elenita disse...

Realmente, a língua passa por uma reciclagem constante. Novas coisas, novos nomes. Acho que as culturas tem que se adaptar pq isso é desenvolvimento.