Tolstoi disse, sabiamente: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia". Creio mesmo que poucas coisas afetem tanto os humanos como a lembrança e o amor de sua terra. A aldeia de cada um é sua identidade mais arraigada, seu elo mais forte e sua expressão mais genuína. Porque não há no mundo um lugar que se compare à sua própria terra.
Assim é que a nossa cidade é aquele pedaço de universo que mais nos diz respeito. Se um oceano ou uma cordilheira nos separam, ainda há uma força capaz de nos teletransportar a uma ordem de nosso desejo: o de lá retornar, sempre, para nos reabastecermos de energia. E realmente é necessária essa retroalimentação em relação à terra de origem.
Eu caminho sempre em direção ao que me chama, mas sem nunca deixar de voltar os olhos para o início de minha jornada. É por isso que trago comigo a herança da terra, uma espécie de código geográfico de um endereço que me define na cosmologia do tempo-espaço. Por isso é que trago em mim, fortemente, a cidade de Santo Antônio de Pádua.
Embora eu não seja paduana de nascimento, sou cidadã paduana: oficial, convicta, veemente. Vivi na cidade durante quinze anos, alguns dos mais importantes de minha vida, pois foram os que viram minha filha nascer e crescer. Tenho a alegria de saber que Raquel nasceu em solo gentil de pessoas gentis, cresceu por entre espaços cheios de liberdade, aprendeu a conviver e a desenvolver solidariedade numa sociedade harmônica e feliz. Tal núcleo de convivência, no entanto, vive hoje um momento difícil: filhos seus, de todos os bairros – e em todas as direções – se sentem perdidos diante da força arrebatadora das águas do Rio Pomba.
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Mesmo para quem está distante da cidade ou nunca viu de perto uma enchente, não é difícil imaginar o desespero que seja – de um momento para outro – ter a casa invadida por águas que transbordam e parecem adonar-se de todo o resto da paisagem. Independentemente de riscos maiores, vitais, e de desequilíbrios sociais mais graves, a questão material de ter os próprios pertences perdidos é algo muito sério. Eu fico imaginando – e com certeza, você pode imaginar também – que terrível sensação não deve ser o vácuo de uma casa invadida – de repente! – tendo seus móveis, seus livros, suas louças, suas roupas, seus eletrodomésticos e todos os itens da harmonia cotidiana levados ou corrompidos pelas águas. É claro que a vida é sempre o mais importante, e se ela permanece, todo o resto se reerguerá, por certo. Mas pense bem que tsunami na vida de uma família deve ser a chegada de uma correnteza amarela e brutal, dispersando as coisas mais sagradas de sua casa, aquelas que dão alma ao lugar e alimentam, todos os dias, a vida de seus moradores!... Casas em lugares mais altos ou próximas ao rio, bem equipadas ou humildes, habitadas ou fechadas, todas, assoladas sem mais nem menos por uma onda surpreendente de pavor! Num espaço de poucas horas – sem que as pessoas tivessem tempo de providenciar suportes para suspensão de seus móveis e objetos –, todos os apetrechos e construções da mão do homem pareceram tão frágeis como nunca antes se imaginou... Estabelecimentos comerciais inteiros perdendo seus artigos, alimentos perecendo, casas ilhadas sem comunicação ou acesso a quaisquer bens de consumo. Desliga-se a luz, emudecem os telefones, esgota-se a despensa... as padarias e os supermercados estão fechados; crianças precisam tomar sua mamadeira, mas o leite acabou e não há onde comprá-lo. Nem é possível ir a qualquer lugar sem um barco e uma coragem leonina!... Os hospitais estão inundados e os doentes sem proteção. Tudo é dificuldade! O homem duvida de si mesmo quando vê que o seu poder de decisão/ação está bem aquém do que lhe dita a natureza.
A tragédia é inevitável. Dos mais autônomos aos mais carentes, praticam-se perdas pessoais e desesperanças humanas. Para quem está longe, como eu, mostra-se o quadro desolador de um rio sem fim invadindo as praças, o átrio da igreja e todas as ruas que fazem a movimentação da cidade. É desalentador imaginar a face da destruição quando esta aparece sem avisar e se adianta contra tudo e todos. Fico muito triste ao ver e imaginar a equilibrada Santo Antônio de Pádua dançando o forçoso balé das águas de um cataclismo...
A comunidade precisou de ajuda e quase enlouqueceu no ocaso de um silêncio só cortado por barulho de correnteza. Esperaram-se providências da Defesa Civil, aguardou-se uma ajuda dos céus, e a população se desesperou quando não viu, acima de suas cabeças, helicópteros portando mantimentos, agasalhos ou quaisquer materiais de apoio. Apenas a solidariedade de alguns paduanos valorosos, que se aventuraram nas águas levando socorro a seus conterrâneos. Felizmente, dias depois, chegaram barcos em maior quantidade e os helicópteros da Marinha do Brasil. Paralelamente, a situação parecia amenizar-se, quando recursos da Defesa Civil e ações do Corpo de Bombeiros começavam a distribuir alguma tranquilidade.
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As águas baixaram; o rio voltou a habitar sua antiga morada, mas um cenário de desoladora destruição é agora a visão da realidade. Moradores e amigos visitantes lançam-se, em mutirão, à limpeza das casas. Novamente se enxergam o solo, as ruas e os jardins. Pádua ressurge, mas por toda parte – posso pressupor – há uma aura de tristeza, um cântico silente, como se a entoar o som de algum estranho cortejo... Algo parece ter morrido; uma parte da integridade local e fragmentos da identidade da cidade parecem ter ido embora... É que Pádua foi invadida, violada, e parece ter perdido anos – talvez décadas – de sua saga urbanística. E isso deixa forte angústia no ar, principalmente porque há irmãos desabrigados, literalmente sem chão ou teto; outros, irremediavelmente afastados de parte de suas histórias de vida. Tem lugar, agora, a incineração de pertences destruídos pela força das águas. Tudo se dá como se num ritual de abandono da tragédia, ao se deixar a tristeza para trás. Vi fotos de pessoas nas praças, livrando-se das marcas de destruição deixadas em suas casas. Apesar da união solidária que enxerguei nas imagens, senti também um aperto no peito ao me certificar de que – muito além daquele desfazer – há pessoas recomeçando do zero, talvez sem a força necessária da esperança.
Na verdade, a natureza não é inimiga. Os últimos tempos têm dado conta, no entanto, de um distanciamento do homem de seu meio, exatamente em virtude do processo de desrespeito ao ambiente que vem aumentando com os anos. Cada vez mais, a relação entre o aquecimento global (e outros fatores) e os desastres ambientais tem redundado em tragédias, mortes e arrebatamentos brutais. Inúmeras catástrofes naturais, infelizmente, fizeram parte da história deste ano que termina. Dentre estas, as recentes enchentes em Santa Catarina e as que se deram em diversas cidades do Norte Fluminense, bem como as ocorridas em Minas Gerais, as quais convergiram para o atual estado de coisas em Pádua e imediações.
Sem dúvida, se faz necessário que os governos se organizem em estudos e execuções de políticas ambientais profiláticas, quando tanto já se perdeu pela mão desastrosa do homem. É certo que cataclismos e alguns outros fenômenos independem da eficácia da administração pública, mas – ante a terrível enchente ocorrida em nossa cidade – é imperioso que se estude um modo organizacional de se acolherem os dizimados pelas águas. Refiro-me não aos que tiveram perdas reparáveis, na medida em que uma situação mais abastada lhes permite uma reconstrução menos difícil. Falo daqueles que, agora sem casa ou destino, ficaram à mercê da solidariedade e da providência. Ergamos aqui uma voz que clama por uma forma qualquer – ante os recursos a serem oferecidos pelos órgãos e meios competentes – de se executar uma ação efetiva e eficaz de acolhida dos reais necessitados. Penso que também nós, cidadãos, podemos fazer aquilo a que normalmente chamamos “a nossa parte”. Assim foi que vários paduanos – alguns mesmo morando em outras cidades – se organizaram e criaram comunidades no Orkut, trocaram informações, providências e tiveram louváveis iniciativas, como a de se estabelecerem pontos receptores de donativos para os mais atingidos pela enchente.
Finalmente, gostaria de expressar que, apesar da tristeza sentida, é preciso secar as lágrimas, erguer o peito e arregaçar as mangas! É claro que, mesmo de longe, me detive – durante várias vezes – e chorei diante de fotos divulgadas na Internet. Minha filha, paduana amorosa, chorou por dois dias e não conseguiu se movimentar normalmente no Rio: perdeu festas a que ia e ficou atrelada ao telefone e ao Orkut, atenta a quaisquer notícias ou comunicados que precisasse transmitir. Mas, assim como você e eu, ela sabe da necessidade de todos – moradores ou não da cidade – colocarem um sorriso no rosto e saírem por aí, na dinâmica da vida, repondo os tijolos de sua rotina no lugar de antes, com a firmeza e a sensatez das construções sólidas. Para isso, a ordem deve ser lavar o solo, limpar a casa, retirar todo o lodo que restou... É momento de procurar o próximo e não ter medo! Agir e recomeçar, como pressupõe o resto das coisas que nos chamam em 2009. Creio que a esta situação se aplique algo que Dalai Lama disse: “...os fracos se intimidam; os fortes abrem as portas e acendem as luzes”. É hora, pois, de o paduano retornar à sua casa, abrir as portas, acender as luzes e recomeçar a sua história de vida do ponto onde parou. Certamente, assim será que – com as bênçãos de um renascer divino – Pádua renascerá com o Natal!
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Se você nunca pensou que uma cidade pode ter alma, acredite: Santo Antônio de Pádua tem...
Pádua, cidade das rochas, cidade das águas...
... Que o paduano ausente, feliz, rememora,
Junto a intentos, alegrias ou mágoas
Que leva consigo ao ir embora!
À margem do Pomba, ante a Ponte dos Arcos...
Infância e juventude, entre sonhos e lendas;
Em anos felizes e dourados, histórias e marcos:
Danças, folguedos, folclores, parlendas...
(...) Há no interior das cidades tal vida e magia
Que faz pitoresco um mero cotidiano...
Que dá ao dia simples certo teor de alegria
No calendário lento que perfaz cada ano...
(...) Hoje eu sou um paduano ausente
Que vive lá fora, em terra de outrem!
Mas cá estou vivo, em espírito, presente,
Sorrindo tenuamente, ao lembrar de ontem!...
Por Sayonara Salvioli
P.S. 1: Colabore com os atingidos pelas enchentes; doe roupas, alimentos ou quaisquer pertences que possam trazer benefícios aos que estão precisando de ajuda.
Pontos de recebimento de donativos para Santo Antônio de Pádua, Itaperuna e Região Norte / Noroeste Fluminense:
No Rio de Janeiro:
Grupo Bandeirantes de Televisão
Rua Álvaro Ramos, 350 - Botafogo - Rio de Janeiro - RJ
Em Niterói:
Paróquia de São Judas Tadeu
Av. Ari Parreiras, s/n - Icaraí
Especifique que suas doações se destinam ao Noroeste Fluminense.
Você também pode procurar qualquer quartel do Corpo de Bombeiros para fazer suas doações.
Colabore! O homem é aquilo que faz!
P.S. 2: As fotos que ilustram esta postagem representam apenas algumas nuances do terrível desastre que se abateu sobre a cidade. A ausência de créditos se deve ao fato de estarem sendo utilizadas coletivamente, em manifestações extensivas de solidariedade. Na verdade, as pessoas tiraram as fotografias na medida em que isso lhes era permitido, ante a dificuldade de locomoção. Em muitos casos, o fizeram das janelas de suas casas. Certamente, muitos outros ângulos - mostrando faces ainda mais severas da tragédia - talvez não tenham podido ser registrados diante da impossibilidade ou ausência absoluta de tecnologia em tais momentos ou lugares.
Além de agradecer a gentil cessão das fotos, que estão veiculando em Orkuts de amigos comuns, esclareço que - uma vez elucidados os respectivos créditos das imagens - aqui serão devidamente registrados.
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A todos os amigos e leitores deste blog, a minha mensagem de Natal, muito oportunamente, é uma espécie de reflexão, um chamamento para dentro de nós mesmos, em busca da essência humana que nos distingue dos outros seres da natureza. Aproveitemos o Natal para praticarmos paz e solidariedade! Assim, meu maior desejo é que você e sua família possam veicular amor, dentro e fora de suas casas.
Quanto a 2009, isto é matéria para outro post! Afinal, ainda nos comunicaremos antes do ano que vem...