CRÍTICA DE CINEMA |
POR SAYONARA SALVIOLI
Ainda que com insipiências, A VIÚVA CLICQUOT é um filme necessário
A saga admirável de uma mulher precursora, inventiva e corajosa
Não,
não trago aqui hoje a resenha crítica de um clássico. Nem na concepção nem na
duração / no timing preciso de tela;
falo de uma produção fílmica contemporânea que, em apenas 89 minutos (muito
breve para a trama), apresenta na
superfície uma história que deveria ser
maior em oferta ao espectador em diversos sentidos. Afinal, em seu cerne, o
longa dirigido por Thomas Napper — A
Viúva Clicquot: a Mulher que Formou um Império —
busca
brindar o espectador com uma história de vida que é uma verdadeira lição. E
isso Napper consegue: a produção é um verdadeiro brinde a uma mulher que é
lição de inteligência, pertinácia, ideal e visão de negócios.
Assim
foi a empresária e industrial precursora que construiu seu império particular
na França do primeiro decanato do século XIX:
Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin, eternizada
como a Viúva Clicquot, ninguém menos do que a conhecida Grande Dama do Champagne.
O roteiro não atende ao chamado da história, que é ótima, no
entanto só se consumaria, em toda a sua pujança, num contexto dramático mais narrativo e incitante. E,
definitivamente, uma produção de menos de 90 minutos de um roteiro insipiente
não alcança a proeza de narrar, com a necessária robustez, uma saga tríplice:
um drama familiar, a origem do charmoso champagne
francês e o pano de fundo sociopolítico das guerras napoleônicas.
De modo bem diferente daqueles filmes que, por missão, nos prendem à poltrona do cinema por longo
tempo [longa-metragens perenes, tais como os icônicos Titanic (exatas três horas de duração), ou À
Espera de um Milagre, em suas três horas e nove minutos de oferta de
emoções marcantes, ou, ainda, o formidável A
Lista de Schindler, que nos avassala durante o período integral de 3 horas
e 15 minutos] — este apesar do approach familiar e simbólico num
contexto de história da França, background particularmente atrativo —
não perfaz um ritmo na medida da (originalidade da) trama.
Trata-se
de uma cinebiografia que requer reforços, pois sua temática, mais do que
polêmica, é necessária. E vibrante na sua essência, já que a Viúva Clicquot foi
uma grande mulher e, por tal, merecia um retrato fiel e abrangente na tela
grande. Não apenas por estes tempos atuais e seus clamores, mas pelas histórias
clamejantes femininas de todos os tempos.
Mesmo sendo um filme (também) incipiente no seu modus operandi, surpreendentemente se dá um certo processo de empatia, e o espectador se sente atraído por uma mulher extraordinária que influenciou o seu tempo — e o nosso! Afinal, quem aí não conhece o champagne do rótulo laranja que, por toda a parte, adorna mesas e faz borbulharem, com especialidade, taças cristalinas no Réveillon e outras ocasiões especiais?
Story line forte e fotografia pictórica
Também este não é um texto publicitário; é uma análise
fílmica de um produto audiovisual que, se não impacta por uma direção brilhante
ou por uma estética inovadora, guarda em si alguns filetes de qualidade, como a
consistência da story line e da
protagonista, bem como a beleza indiscutível na direção de fotografia. Sim, o
argumento é amplo, de excelência e seria possibilitador se o roteiro não
sofresse o que se pode chamar de um modesto approach
em seu cadenciamento.
Contudo, o longa cumpre o papel sagrado do cinema de fazer
vibrar na telona uma história de verdade: mesmo não contada na efervescência
(devida) das borbulhas do Veuve Clicquot, o sabor da trama se faz sentir em sua
essência. Isto quer dizer, no final das contas, que —independentemente da abordagem da história — é passada a mensagem ao público da mulher inteligente e
poderosa que transforma um produto e seu tempo.
A trilha real da protagonista / Em
cena, Barbe-Nicole
Na pele da
atriz estadunidense Haley Bennett, é impressionante a trajetória de
Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin — a herdeira francesa
dos vinhedos Clicquot —, que também o era por ascendência
paterna (seu pai foi um rico prefeito de Reims, a mais importante cidade da
região de Champagne-Ardenne).
Viúva já aos 27 anos, durante todo o casamento Barbe-Nicole
dividira com o falecido cônjuge o gosto por experimento com bebidas, sendo,
portanto, uma verdadeira aficionada de vinicultura. O então marido — o dândi Monsieur
Clicquot, o instável François (Tom Sturridge)—, que
a trama entrega como suicida [em narrada vivência de fragilidade, aparente vício
e doença (ao tempo da histórica febre tifóide)], fez questão de passar à jovem
esposa sua paixão e à promissora vinícola da família. Após sua morte, pois, a
missão com as folhas de uvas e seu primoroso extrato, gota a gota, foi
transferida para a sua firme e jovem mulher, que abraçara a causa com ardor,
ideal e... engenho. Sim, a Viúva Clicquot tinha um gênio empresarial raro, como
bem demonstrou nos anos da década (de ouro!) de sua construção industrial e
comercial.
Recusando-se a escutar o sogro, que praticamente ordenara que
ela vendesse a propriedade, ela, como que numa intuição de negociante fora do
comum, simplesmente deixou de passar o vinhedo adiante para... o vizinho de sobrenome Moët! Sim, caro leitor, o detentor original da
(também) conhecida marca dos nossos tempos Moët Chandon... E assim, com toda a
sua antevisão, se dá a história da criação de um império por essa mulher, que
não aceita qualquer poderio masculino a interpor-se entre ela e o comando de
seu negócio.
Firme, ousada e habilmente controladora, à testa da vinícola familiar, Barbe-Nicole, ante as opressões de uma sociedade patriarcal engessada, resiste em sua solitude e, ao mesmo tempo, sua autonomia de administradora dos bens agrícolas de François Clicquot, bens e produtos esses que ultrapassaram as fronteiras da França para que a grife de bebidas pudesse se tornar o que é hoje. E isto num tempo em que uma mulher assim tinha que enfrentar (e vencer!) um tribunal constituído de arbitrários julgadores (todos homens, claro!) a clamarem desrespeitosamente que uma mulher não poderia ficar à frente de um negócio. Uma sociedade determinante de mulheres fadadas à submissão e à derrota pessoal. Pois foi nesse meio — e em tempos de guerra — que Barbe-Nicole se fez vencedora.
Beleza de cenários I Direção de fotografia digna de nota
A fotografia do filme — essencialmente por se passar, em proximidade geográfica e simbólica com a região de Champagne (no nordeste da França, na fronteira com a Bélgica bem ao norte do país) — é garantia de beleza e comoção cênica. Com os núcleos de filmagem praticamente centrados na região (vizinha) de Chablis (foco no Chateau Beru), a produção coleciona frames de puro encantamento estético e conceitual; a sofisticação das cenas parece um processo natural (não é fruto de arrojo na direção do longa, absolutamente), mas um reflexo dos cenários artisticamente absorventes: as externas do olhar fotográfico de Caroline Champetier (!). Este sim — no viés específico de apuradas lentes — reúnem paisagens belíssimas e harmonizadas com o espetáculo local do cultivo da uva, vinha a vinha... Aí se pratica o tom de uma direção fotográfica de primor. Sem dúvida, o filme atinge fortemente o espectador neste ponto.
Locações e processos do vinho branco
de excelência, sinônimo de elegância
Aqui se dá uma sincronia de cenário com o approach do sentimento dos protagonistas, sinestesicamente voltados
para os lindos e frutíferos vinhedos que são a alma daqueles terrenos
franceses. Há, a propósito, aqueles que considerem que em nenhuma outra parte
do globo se plantam, colhem e borbulham essas frutas simbólicas e cristalinas
como na região de Champagne e suas adjacências igualmente vocacionadas ao vinho
de borbulhas — não por acaso dando esse nome singular à
bebida-padrão do charme, do glamour e das celebrações. Sim, numa vivência do
chamado “cinema total”, absorver a fotografia do filme é quase como sorver a
bebida transformada por Barbe-Nicole em seu(s) precioso(s) processo(s) de aprimoramento
do champagne.
É uma pena que não hajam sido explorados conhecimentos (mesmo rasos) da
enologia de Barbe-Nicole, pois isso no tom adequado poderia seduzir o público — o tema é vibrante. Infelizmente, o espectador sai do cinema sabendo
apenas que Madame Clicquot foi a criadora do champagne rosé (na verdade, só se
passa a conhecer o rosé uma década depois do desenrolar cronológico do filme). Contudo,
é justíssima a atribuição de pioneirismo à Viúva que manipulava o nobre líquido
propiciador de prazer, pois — embora
na França se diga que outros produtores contribuíram nos processos — foi
Barbe-Nicole a responsável por técnicas como remuage, essencialmente. Pois antes dela a bebida era algo
turvo e apresentava excesso de resíduos, sendo por meio do primeiro método que
se chegou à limpidez do champagne. A propósito, a viúva inventiva é a
responsável também pelo beneficiamento trazido pelo método dégorgement... Tudo isso explica a inegável soberania da grife
Veuve Clicquot ainda na contemporaneidade... Barbe-Nicole, ao dar vida e
efervescência às deliciosas bolhas do champagne tal como o conhecemos hoje, fez
sua marca chegar a valores unitários de garrafa que, na atualidade, oscilam entre
R$690, 00 e R$4.900,00, aproximadamente.
Paradoxos — Menções especiais para a produção: os bons acertos | Economia ideológica
As lacunas e a modéstia do script não
puderam ofuscar, felizmente, a precisa reconstituição de época, com realística
cenografia e figurino fiel. Estes foram pontos altos no filme de Napper.
Entretanto, uma economia no discurso ideológico (pretendido?) se faz
sentir claramente no que tange à questão em si do feminismo (o filme podia
mostrar muito mais a potencialidade feminina quando o cerne da trama é
comandado por uma mulher de tal naipe). Paralelamente a isso, silêncios e
evasões colocam reticências nas cenas denotadoras da bissexualidade (pouco mais
que insinuada) de François. O mesmo se diga da performance prenunciada da
própria protagonista, Barbe-Nicole, em sua relação aparentemente intimista com a criada Anne,
vivida pela talentosa atriz Natasha O’Keeffe.
Nessa seara de sentidos reclusos, o roteiro se retrai e contrai, não concedendo direito ao discurso direto. Falha grave, já que cinema não pode ter economia de sentidos. Isto, aliás, é o contrário do que propôs Bazin.
Prodígios do elenco: a química entre
os personagens de Haley Bennett e Chris Larkin
A interação entre Bennett e Larkin foi além do roteiro: os atores se
harmonizaram como os vinhos, por assim dizer, com a relação amorosa que a Viúva
Clicquot estabeleceu com o seu distribuidor nas terras do czar. Aqui, um perdão
pelo spoiler ou, dadas divulgações
prévias, o filete de informação dramatúrgica não chega a tanto?
Da distribuição à expansão de
fronteiras ao tempo de Napoleão
E à Viúva Clicquot — em todo o seu gênio comercial — couberam ainda dificuldades outras, para além de lutar contra
intempéries da natureza, em desníveis climáticos, ou amargar perdas de safras
inteiras. Extrapolando as experiências ruins e (quase!) o declínio completo do
negócio do vinho, a negociante audaz ainda teve que combater as adversidades de
uma guerra (!). E, ainda mais do que
isso, usá-la a seu favor. Já pensou, caro leitor e espectador, o que é amargar
prejuízos com uma estação hostil e destruidora, ao mesmo tempo em que falta
tudo, nos campos e nos lares, em
decorrência de batalhas desoladoras? Pois esse foi um dos cenários que o
roteiro (mesmo incipiente e superficialmente) apresentou. E, sim, por isso e
por muito mais nas entrelinhas, vale a pena abandonar o conforto do seu streaming e ir até o cinema mais próximo
para conhecer esta história!
Quanto às campanhas de Napoleão versus Champagne Clicquot (aqui sem qualquer oferta de spoiler), fica a ressalva elogiosa à comerciante revolucionária que, num inóspito âmbito de destruição, foi capaz de fundar um império. Sim, a saga e as safras Clicquot se desenvolveram e frutificaram no bojo dos anos implacáveis das Guerras Napoleônicas!... Destaque neste ponto, especificamente, para a campanha da Rússia, onde as tropas do lendário general francês foram abatidas pelo exército do czar...
Foi quando a invasão comandada por Napoleão Bonaparte ameaçou o negócio do champagne, simplesmente porque atingiria/impediria o consumo da clientela-mor de Madame Clicquot, representada pelos figurões nobres russos. Contudo, apesar do clima bélico impeditivo (comprar e beber o líquido do país oponente era um acinte pátrio), ainda assim a Viúva Clicquot negociou com Alexandre I e venceu a batalha das garrafas, fixando para sempre seu rótulo na economia francesa.
E as borbulhas do vinho branco nobilíssimo estouraram no ambiente hostil da derrota napoleônica para a Veuve Clicquot — esta, opostamente, a literal celebração da vitória, delineando a formação de seu próprio império.
Em última análise fílmica, tanto aqui se disse sobre a estrela da produção,
que fica fácil concluir que, apesar das inconsistências, o longa cumpriu o
papel de uma cinebiografia: fazer o espectador se interessar pela história de
vida do(a) protagonista. Nisso, o filme do britânico Napper cumpriu a missão.
E, acima de tudo, A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império mostrou ser um filme importante para a sociedade e a Sétima Arte como testemunho, pois afirma e reafirma a força sublime da mulher vencendo desafios até mesmo em tempos impensáveis para o (verdadeiro) feminismo. A cinebiografia é um depoimento autêntico do feminismo real — aquela condição soberana que faz de uma mulher o centro do que ela deseja, irremediavelmente, com a capacidade absoluta que tem, se assim o desejar, de pôr todos a gravitarem ao seu redor(!). E brindar a esse poder resoluto e inconteste! Sim, ser feminista não é menos que isso.
A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império | Widow Clicquot
EUA, 2023, 89 min
Direção: Thomas Q. Napper
Elenco: Haley Bennett, Tom Sturridge, Chris
Larkin, Ben Miles, Anson Boon, Cecily Cleeve, Sam Riley e Natasha O’Keeffe
Roteiro: Christopher Monger e Erin Dignam (baseado
no livro A Viúva Clicquot – A História de
um Império do Champagne e a Mulher que o Construiu).
Distribuição no Brasil: Paris Filmes
Sayonara Salvioli é escritora, dramaturga e roteirista, com formação acadêmica - Graduação em Roteiro de TV e Cinema, Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Literatura Comparada e MBA em História da Arte e da Cultura Visual.
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