terça-feira, 10 de setembro de 2024

 

CRÍTICA DE CINEMA | 

POR SAYONARA SALVIOLI


 Ainda que com insipiências, A VIÚVA CLICQUOT é um filme necessário

        A saga admirável de uma mulher precursora, inventiva e corajosa

                                       


Não, não trago aqui hoje a resenha crítica de um clássico. Nem na concepção nem na duração / no timing preciso de tela; falo de uma produção fílmica contemporânea que, em apenas 89 minutos (muito breve para a trama), apresenta  na superfície  uma história que deveria ser maior em oferta ao espectador em diversos sentidos. Afinal, em seu cerne, o longa dirigido por Thomas Napper  A Viúva Clicquot: a Mulher que Formou um Império  busca brindar o espectador com uma história de vida que é uma verdadeira lição. E isso Napper consegue: a produção é um verdadeiro brinde a uma mulher que é lição de inteligência, pertinácia, ideal e visão de negócios.

Assim foi a empresária e industrial precursora que construiu seu império particular na França do primeiro decanato do século XIX:  Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin, eternizada como a Viúva Clicquot, ninguém menos do que a conhecida Grande Dama do Champagne.




Pouco tempo para muita (e boa) história

O roteiro não atende ao chamado da história, que é ótima, no entanto só se consumaria, em toda a sua pujança, num contexto dramático mais narrativo e incitante. E, definitivamente, uma produção de menos de 90 minutos de um roteiro insipiente não alcança a proeza de narrar, com a necessária robustez, uma saga tríplice: um drama familiar, a origem do charmoso champagne francês e o pano de fundo sociopolítico das guerras napoleônicas.

De modo bem diferente daqueles filmes que, por missão, nos prendem à poltrona do cinema por longo tempo [longa-metragens perenes, tais como os icônicos Titanic (exatas três horas de duração), ou  À Espera de um Milagre, em suas três horas e nove minutos de oferta de emoções marcantes, ou, ainda, o formidável A Lista de Schindler, que nos avassala durante o período integral de 3 horas e 15 minutos] este  apesar do approach familiar e simbólico num contexto de história da França, background particularmente atrativo não perfaz um ritmo na medida da (originalidade da) trama.

Trata-se de uma cinebiografia que requer reforços, pois sua temática, mais do que polêmica, é necessária. E vibrante na sua essência, já que a Viúva Clicquot foi uma grande mulher e, por tal, merecia um retrato fiel e abrangente na tela grande. Não apenas por estes tempos atuais e seus clamores, mas pelas histórias clamejantes femininas de todos os tempos.   

Mesmo sendo um filme (também) incipiente no seu modus operandi, surpreendentemente se dá um certo processo de empatia, e o espectador se sente atraído por uma mulher extraordinária  que influenciou o seu tempo  e o nosso! Afinal, quem aí não conhece o champagne do rótulo laranja que, por toda a parte, adorna mesas e faz borbulharem, com especialidade, taças cristalinas no Réveillon e outras ocasiões especiais?


Story line forte e fotografia pictórica

Também este não é um texto publicitário; é uma análise fílmica de um produto audiovisual que, se não impacta por uma direção brilhante ou por uma estética inovadora, guarda em si alguns filetes de qualidade, como a consistência da story line e da protagonista, bem como a beleza indiscutível na direção de fotografia. Sim, o argumento é amplo, de excelência e seria possibilitador se o roteiro não sofresse o que se pode chamar de um modesto approach em seu cadenciamento.

Contudo, o longa cumpre o papel sagrado do cinema de fazer vibrar na telona uma história de verdade: mesmo não contada na efervescência (devida) das borbulhas do Veuve Clicquot, o sabor da trama se faz sentir em sua essência. Isto quer dizer, no final das contas, que independentemente da abordagem da história é passada a mensagem ao público da mulher inteligente e poderosa que transforma um produto e seu tempo. 


A trilha real da protagonista / Em cena, Barbe-Nicole

Na pele da atriz estadunidense Haley Bennett, é impressionante a trajetória de Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin a herdeira francesa dos vinhedos Clicquot —, que também o era por ascendência paterna (seu pai foi um rico prefeito de Reims, a mais importante cidade da região de Champagne-Ardenne).

Viúva já aos 27 anos, durante todo o casamento Barbe-Nicole dividira com o falecido cônjuge o gosto por experimento com bebidas, sendo, portanto, uma verdadeira aficionada de vinicultura. O então marido  o dândi Monsieur Clicquot, o instável François (Tom Sturridge)—, que a trama entrega como suicida [em narrada vivência de fragilidade, aparente vício e doença (ao tempo da histórica febre tifóide)], fez questão de passar à jovem esposa sua paixão e à promissora vinícola da família. Após sua morte, pois, a missão com as folhas de uvas e seu primoroso extrato, gota a gota, foi transferida para a sua firme e jovem mulher, que abraçara a causa com ardor, ideal e... engenho. Sim, a Viúva Clicquot tinha um gênio empresarial raro, como bem demonstrou nos anos da década (de ouro!) de sua construção industrial e comercial.

Recusando-se a escutar o sogro, que praticamente ordenara que ela vendesse a propriedade, ela, como que numa intuição de negociante fora do comum, simplesmente deixou de passar o vinhedo adiante para...  o vizinho de sobrenome Moët! Sim, caro leitor, o detentor original da (também) conhecida marca dos nossos tempos Moët Chandon... E assim, com toda a sua antevisão, se dá a história da criação de um império por essa mulher, que não aceita qualquer poderio masculino a interpor-se entre ela e o comando de seu negócio.

Firme, ousada e habilmente controladora, à testa da vinícola familiar, Barbe-Nicole, ante as opressões de uma sociedade patriarcal engessada, resiste em sua solitude e, ao mesmo tempo, sua autonomia de administradora dos bens agrícolas de François Clicquot, bens e produtos esses que ultrapassaram as fronteiras da França para que a grife de bebidas pudesse se tornar o que é hoje. E isto num tempo em que uma mulher assim tinha que enfrentar (e vencer!) um tribunal constituído de arbitrários julgadores (todos homens, claro!) a clamarem desrespeitosamente que uma mulher não poderia ficar à frente de um negócio. Uma sociedade determinante de mulheres fadadas à submissão e à derrota pessoal. Pois foi nesse meio e em tempos de guerra que Barbe-Nicole se fez vencedora.

Beleza de cenários I Direção de fotografia digna de nota


A fotografia do filme essencialmente por se passar, em proximidade geográfica e simbólica com a região de Champagne (no nordeste da França, na fronteira com a Bélgica bem ao norte do país) é garantia de beleza e comoção cênica. Com os núcleos de filmagem praticamente centrados na região (vizinha) de Chablis (foco no Chateau Beru), a produção coleciona frames de puro encantamento estético e conceitual; a sofisticação das cenas parece um processo natural (não é fruto de arrojo na direção do longa, absolutamente), mas um reflexo dos cenários artisticamente absorventes: as externas do olhar fotográfico de Caroline Champetier (!). Este sim no viés específico de apuradas lentes reúnem paisagens belíssimas e harmonizadas com o espetáculo local do cultivo da uva, vinha a vinha...  Aí se pratica o tom de uma direção fotográfica de primor. Sem dúvida, o filme atinge fortemente o espectador neste ponto. 


Locações e processos do vinho branco de excelência, sinônimo de elegância

Aqui se dá uma sincronia de cenário com o approach do sentimento dos protagonistas, sinestesicamente voltados para os lindos e frutíferos vinhedos que são a alma daqueles terrenos franceses. Há, a propósito, aqueles que considerem que em nenhuma outra parte do globo se plantam, colhem e borbulham essas frutas simbólicas e cristalinas como na região de Champagne e suas adjacências igualmente vocacionadas ao vinho de borbulhas não por acaso dando esse nome singular à bebida-padrão do charme, do glamour e das celebrações. Sim, numa vivência do chamado “cinema total”, absorver a fotografia do filme é quase como sorver a bebida transformada por Barbe-Nicole em seu(s) precioso(s) processo(s) de aprimoramento do champagne.  


É uma pena que não hajam sido explorados conhecimentos (mesmo rasos) da enologia de Barbe-Nicole, pois isso no tom adequado poderia seduzir o público — o tema é vibrante. Infelizmente, o espectador sai do cinema sabendo apenas que Madame Clicquot foi a criadora do champagne rosé (na verdade, só se passa a conhecer o rosé uma década depois do desenrolar cronológico do filme). Contudo, é justíssima a atribuição de pioneirismo à Viúva que manipulava o nobre líquido propiciador de prazer, pois embora na França se diga que outros produtores contribuíram nos processos — foi Barbe-Nicole a responsável por técnicas como remuage, essencialmente. Pois antes dela a bebida era algo turvo e apresentava excesso de resíduos, sendo por meio do primeiro método que se chegou à limpidez do champagne. A propósito, a viúva inventiva é a responsável também pelo beneficiamento trazido pelo método dégorgement... Tudo isso explica a inegável soberania da grife Veuve Clicquot ainda na contemporaneidade... Barbe-Nicole, ao dar vida e efervescência às deliciosas bolhas do champagne tal como o conhecemos hoje, fez sua marca chegar a valores unitários de garrafa que, na atualidade, oscilam entre  R$690, 00 e R$4.900,00, aproximadamente.

Paradoxos Menções especiais para a produção: os bons acertos | Economia ideológica

As lacunas e a modéstia do script não puderam ofuscar, felizmente, a precisa reconstituição de época, com realística cenografia e figurino fiel. Estes foram pontos altos no filme de Napper.  

Entretanto, uma economia no discurso ideológico (pretendido?) se faz sentir claramente no que tange à questão em si do feminismo (o filme podia mostrar muito mais a potencialidade feminina quando o cerne da trama é comandado por uma mulher de tal naipe). Paralelamente a isso, silêncios e evasões colocam reticências nas cenas denotadoras da bissexualidade (pouco mais que insinuada) de François. O mesmo se diga da performance prenunciada da própria protagonista, Barbe-Nicole, em sua relação aparentemente intimista com a criada Anne, vivida pela talentosa atriz Natasha O’Keeffe.

Nessa seara de sentidos reclusos, o roteiro se retrai e contrai, não concedendo direito ao discurso direto. Falha grave, já que cinema não pode ter economia de sentidos. Isto, aliás, é o contrário do que propôs Bazin.

Prodígios do elenco: a química entre os personagens de Haley Bennett e Chris Larkin

A interação entre Bennett e Larkin foi além do roteiro: os atores se harmonizaram como os vinhos, por assim dizer, com a relação amorosa que a Viúva Clicquot estabeleceu com o seu distribuidor nas terras do czar. Aqui, um perdão pelo spoiler ou, dadas divulgações prévias, o filete de informação dramatúrgica não chega a tanto? 

Da distribuição à expansão de fronteiras ao tempo de Napoleão


E à Viúva Clicquot em todo o seu gênio comercial couberam ainda dificuldades outras, para além de lutar contra intempéries da natureza, em desníveis climáticos, ou amargar perdas de safras inteiras. Extrapolando as experiências ruins e (quase!) o declínio completo do negócio do vinho, a negociante audaz ainda teve que combater as adversidades de uma guerra (!).  E, ainda mais do que isso, usá-la a seu favor. Já pensou, caro leitor e espectador, o que é amargar prejuízos com uma estação hostil e destruidora, ao mesmo tempo em que falta tudo, nos campos e nos lares,   em decorrência de batalhas desoladoras? Pois esse foi um dos cenários que o roteiro (mesmo incipiente e superficialmente) apresentou. E, sim, por isso e por muito mais nas entrelinhas, vale a pena abandonar o conforto do seu streaming e ir até o cinema mais próximo para conhecer esta história!

Quanto às campanhas de Napoleão versus Champagne Clicquot (aqui sem qualquer oferta de spoiler), fica a ressalva elogiosa à comerciante revolucionária que, num inóspito âmbito de destruição, foi capaz de fundar um império. Sim, a saga e as safras Clicquot se desenvolveram e frutificaram no bojo dos anos implacáveis das Guerras Napoleônicas!... Destaque neste ponto, especificamente, para a campanha da Rússia, onde as tropas do lendário general francês foram abatidas pelo exército do czar... 

Foi quando a invasão comandada por Napoleão Bonaparte ameaçou o negócio do champagne, simplesmente porque atingiria/impediria o consumo da clientela-mor de Madame Clicquot, representada pelos figurões nobres russos.  Contudo, apesar do clima bélico impeditivo (comprar e beber o líquido do país oponente era um acinte pátrio), ainda assim a Viúva Clicquot negociou com Alexandre I e venceu a batalha das garrafas, fixando para sempre seu rótulo na economia francesa. 


E as borbulhas do vinho branco nobilíssimo estouraram no ambiente hostil da derrota napoleônica para a Veuve Clicquot — esta, opostamente, a literal celebração da vitória, delineando a formação de seu próprio império.

Em última análise fílmica, tanto aqui se disse sobre a estrela da produção, que fica fácil concluir que, apesar das inconsistências, o longa cumpriu o papel de uma cinebiografia: fazer o espectador se interessar pela história de vida do(a) protagonista. Nisso, o filme do britânico Napper cumpriu a missão.

E, acima de tudo, A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império mostrou ser um filme importante para a sociedade e a Sétima Arte como testemunho, pois afirma e reafirma a força sublime da mulher vencendo desafios até mesmo em tempos impensáveis para o (verdadeiro) feminismo. A cinebiografia é um depoimento autêntico do feminismo real — aquela condição soberana que faz de uma mulher o centro do que ela deseja, irremediavelmente, com a capacidade absoluta que tem, se assim o desejar, de pôr todos a gravitarem ao seu redor(!). E brindar a esse poder resoluto e inconteste! Sim, ser feminista não é menos que isso. 

A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império | Widow Clicquot

EUA, 2023, 89 min
Direção: Thomas Q. Napper
Elenco: Haley Bennett, Tom Sturridge, Chris Larkin, Ben Miles, Anson Boon, Cecily Cleeve, Sam Riley e Natasha O’Keeffe
Roteiro: Christopher Monger e Erin Dignam (baseado no livro A Viúva Clicquot – A História de um Império do Champagne e a Mulher que o Construiu).

Distribuição no Brasil: Paris Filmes

Sayonara Salvioli é escritora, dramaturga e roteirista, com formação acadêmica - Graduação em Roteiro de TV e Cinema, Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Literatura Comparada e MBA em História da Arte e da Cultura Visual.