quarta-feira, 9 de julho de 2014



O Brasil não é mais o "País do Futebol"?

Reflexões a partir da tragédia esportiva do Mineirão

Uma das primeiras imagens que tenho de nacionalismo passam por um vislumbre do passado, em que atravesso um portão correndo, de saias plissadas azul-marinho e meias três-quartos muito alvas. Em seguida, sigo por uma calçada estreita ladeada por um jardinzinho, até chegar ao pátio, em frente a uma varanda de escola. O local era como um santuário - o educandário onde exercitei, nos primeiros anos, as letras e os números. Ali - em sessões cívicas iniciadas às sete horas da manhã - eu via, todos os dias, ser hasteada a bandeira do meu país ao som do Hino Nacional. Sinceramente, não sei se há em minha alma rememorada de menina momentos mais simbólicos do que este!



Não foi muito diferente a emoção visível no choro das crianças nas arquibancadas do Mineirão de um oito de julho inesquecível. Era, sim, um nacionalismo nascente e aviltado o que se via naqueles rostos inocentes banhados em lágrimas e sentimentos. E tal se deu não apenas - como afirmariam alguns - por causa da (errônea) vivência do futebol no Brasil. E, sim, porque um campeonato esportivo, em que se vê tremular uma bandeira, sempre terá a divisa do nacionalismo. Sim, é possível demonstrar patriotismo nos chamados verdes anos na fila da escola, numa sessão literária, num comício clamando por “Diretas Já” ou (por que não?) num estádio lotado de torcedores veementes. Não há época ou nicho para o exercício da condição cívica, fazendo bater forte no peito o sentimento pátrio. E se este anda meio fora dos corações, não é por culpa do futebol. Também não é uma atribuição do esporte de Charles Miller a obrigação de existir num país que dá certo. Ora, "dar certo" no futebol não elimina a possibilidade de a nação dar certo também em Saúde e Educação.



O Brasil poderia ser o país da Educação, da Cultura, da Arte, da Saúde, da Justiça e, paralelamente, do Carnaval e do Futebol; as primeiras condições não eliminam as últimas e vice-versa. Necessidades estruturais e plataformas fundamentais não dispensam, pragmaticamente, apelos de cultura popular. Preservar raízes da tradição é algo que nunca significou negação às prerrogativas sociopolíticas. E pedir para o brasileiro negar o futebol equivale a privá-lo de uma paixão secular. Seria o mesmo que fazer ressurgir a Grécia Antiga e decretar o fim das Olimpíadas em seus domínios. Tal não seria uma contradição?
Por tudo isso, nunca fui manifestamente contrária à realização da Copa do Mundo 2014 no Brasil; sou contra, em qualquer tempo, aos descasos com as causas públicas; não aceito um país sem políticas decentes de educação, sem hospitais aparelhados, sem segurança nas ruas e nas casas. A Alemanha - como bem se viu em campo - mantém a sua tradição de qualidade no futebol (vejam a história das Copas), mas é uma nação com uma das maiores economias do mundo, educação exemplar e IDH altíssimo [0,920 (Pnud 2012)], por exemplo. Isto quer dizer, em princípio, que não é o fato de um país privilegiar (ou mesmo cultuar) este ou aquele esporte que atrapalhará sua escalada para o progresso, como insistem alguns. Estes, os propaladores de lemas inúteis como o "Não vai ter Copa" ou "Abaixo o país do futebol", precisariam entender que extirpar tradições consolidadas de seu país significa negar suas raízes identitárias. E ferir ou mutilar a identidade nacional em nada irá ajudar nessa nossa corrida (já tão atrasada) para o desenvolvimento.
Quanto à alegação de que nós, brasileiros, sustentaríamos - em nossa carga de autoemoções tendencionistas - estigmas como a incorporação popular do futebol, vale realçar: muito pior do que ostentar simbologias consideradas baníveis, sem dúvida, é carregar nos ombros o peso massacrante de um fiasco em certame esportivo entre nações! E que mal poderá haver em manter simbologias de tradição cultural (muito mais que esporte, meramente, futebol no Brasil é rito) se existirem, também, outros atributos essenciais e qualificativos de nação?
E foram sentidos, exatamente, a identidade nacional, o grito na garganta e o amor à bandeira nessa grande lesão patriótica que foi a goleada de 7x1 da Alemanha sobre o Brasil. Todos nós vimos acordar um nove de julho triste, com transeuntes cabisbaixos, calados e envergonhados. Sim, a nossa vergonha é grande, difícil de ser esquecida. Sentimo-nos humilhados porque assistimos a uma espécie de pelada com emblema nacional! Foi o distintivo de nosso país - ali representado em esfera internacional - que esteve em jogo literalmente o tempo todo, a cada novo gol afundando a nossa rede...
Lamentavelmente, a seleção em campo - sem qualquer harmonia, desprovida de habilidade e estabilidade emocional - em nada se assemelhava às seleções do passado, de qualquer época - quer brilhantes, quer remediadoras. Então, que não percamos o direito de chorar nossas mágoas de brasileiros vilipendiados em nosso bem maior neste caso, que não é o futebol, e sim o amor pátrio. Apesar de esmaecido - bem esquecido num cenário de cores e ultratecnologias contemporâneas -, o nacionalismo ainda pode vigorar.


E - contrariando os que são contrários à Copa -, é justamente (e só, infelizmente) em períodos como este, de campeonato externo, que os brasileiros se vestem de verde e amarelo e relembram seus valores nacionais. Mas esse não é um nacionalismo forjado; não foi algo que os organizadores da Copa (superfalhos e altamente discutíveis) impuseram. Todos sabemos que houve contas astronômicas, absurdas falhas estruturais, obras inacabadas, culpas, erros e prejuízos gritantes da administração. Contudo, no Brasil desta Copa não houve a manipulação popular prevista. Muito pelo contrário, foi essa mesma nação futebolística que, ironicamente, se manifestou contra a realização do mundial no Brasil (não falo aqui de movimentos orquestrados de rua). Faltavam poucos dias para a Copa e não se via, em qualquer parte, entusiasmo por parte dos brasileiros. E - apesar das dúvidas político-administrativas de entorno - eu me perguntava por onde andaria a paixão nacional que eu aprendera, desde os primeiros tempos, a ver como identidade num tal clamor verde e amarelo no peito... No meu caso, não pelo futebol em si (sequer acompanho torneios internos), mas pelo fato de a Copa do Mundo representar um congraçamento de nações do qual faz parte o meu país.
Certamente, houve muitas coisas erradas na preparação do evento (e até escrevi sobre isto no Yahoo), mas eu tinha a consciência de que seria preciso vivê-lo, a partir do momento em que se deflagrassem as partidas com as nossas cores. De repente, porém, com os ânimos emudecidos, torcer pelo Brasil num campeonato internacional virou coisa politicamente incorreta. Mas repito que eu não estava "no bolo". E confesso ter ficado aliviada quando vi a nação vestir, literalmente, a camisa e gritar gol - nos prédios, nos clubes, nos restaurantes, nas ruas e nos estádios. O clamor público não tem ainda - nas atuais configurações - o poder de desmontes estruturais na mesma proporção de seu vigor nacionalista. Então, que se viva a verve do patriotismo na melhor roupagem nacional! Afinal, quem torceria pelo Brasil senão nós mesmos - anfitriões e competidores do certame?
Pois bem, neste nove de julho o povo amanheceu de luto, o do tipo patriótico, aquele que dá um nó na garganta, causa gritos e lágrimas de comoção coletiva. E deixa recordações, amargas recordações pessoais, dessas que sobrevivem a décadas e gerações. Falo da pré-adolescente que ainda vive em mim, na lembrança apaixonada do Olé da Seleção de 82... 



Visualizo na memória, sem dificuldade, a minha própria imagem num quadro de três décadas anteriores: eu estava de joelhos na sala quando Abraham Klein levantou o braço e cristalizou aquele 3x2 da Itália (leia-se: de Paolo Rossi) sobre o Brasil... Uma sentença trágica para os tantos milhões de brasileiros que tinham a certeza da vitória de sua amada (e imbatível!) Seleção Canarinho, aquela que encantava o mundo com a mágica inventiva e adoravelmente estética de um futebol-arte! 





Este parecia ressurgir dos videotapes repletos de maravilhas do passado, dos lances inacreditáveis das históricas Copas de 58, 62 e 70.





Ora, o jogo derradeiro de 82 dos brasileiros na Espanha - na chamada Tragédia do Sarriá - nunca me saiu da memória, nem mesmo quando, 12 anos depois, aconteceu a aguardada revanche, na Copa de 94, nos Estados Unidos. Evidentemente, fiquei feliz com a vitória do Brasil, mas aquele resultado favorável nos pênaltis não matou em mim a dor-menina de um dia... Do mesmo modo, as crianças de hoje não esquecerão (jamais!) essa dor de goleada, capaz de deixar marcas indeléveis em seus coraçõezinhos nacionalistas. Igualmente para os que vivenciaram o "Maracanazzo", a lembrança de uma partida fatídica, perdida em cenário nacional, é como um estigma histórico, um marco inapagável no tempo do sempre.




Mas desta vez (e deixem que eu curta o meu doído sentimento patriótico!), o baque foi maior. O gol que "Barbosa deixou passar", como na acusação de muitos, num Maracanã recém-inaugurado, veio sete vezes maior, se é que pode haver precisão nessa conta... Isso porque não perdemos um jogo com dignidade, com um belo time em campo - como em 50 ou em 82 - e sim porque perdemos em brio o mesmo número de lances, adagadas repetidas em nossa pele de brasileiros, de guardiões nacionais - do futebol e da Pátria. E isso ninguém poderá negar: guardamos agora mais um episódio-padrão de sofrimento esportivo-nacionalista; acumulamos na História das Copas no Brasil - precisamente na segunda realizada em solo nacional - um registro dos mais marcantes e lamentáveis: a tragédia da goleada alemã no Mineirão!
Após tudo isso - dor vivida, coração brasileiro em frangalhos -, é hora de entrar em aquecimento, novamente, para correr e lutar nos campos da realidade. É preciso aprender a jogar melhor em todas as posições - Saúde, Educação, Arte, Economia, Segurança Pública, Justiça, Agricultura, Tecnologia, Turismo, Comércio e Indústria, Trânsito e Urbanismo - para uma vitória gradual e completa.
Quanto ao esporte de Garrincha, Didi, Tostão, Pelé, Zico, Romário, Ronaldo e Neymar, muito pode ser feito, com toda a certeza. Num país de memoráveis talentos individuais - que certamente fazem a diferença em campo -, é preciso remodelar sistemas, treinar equipes, regulamentar e bem administrar clubes e federações. Urge que se desfaçam as oligarquias dos desportos e se implante uma gestão transparente e precisa da CBF. Depois de arrumada a casa, por certo não será difícil retornar aos tempos áureos em que o craque nacional exibia ao mundo a ginga inigualável do brasileiro! E, então, será possível que o Brasil - potencial e plausível campeão em escolas, hospitais, Plenário e sociedade - volte a ser o "País do Futebol"! E com muita honra. Avante, Brasil, que no mundo "não haverá Nação como esta"!