A Viagem (Cloud Atlas, 2012), dos irmãos Wachowski, em parceria com Tom Tykwer, suscita em princípio alguns comentários – ainda que pouco controversos, creio.
A crítica espontânea do longa
O filme A Viagem – sendo dos mesmos diretores da trilogia Matrix, os irmãos Andy e Lana Wachowski – reafirma a sua estética vanguardista, com linguagem fantasiosa e evasiva, em dimensões interpoladas. No foco de sua concepção, mundos distantes são apresentados – de modo fragmentado – na proposta conceitual de um fio de ligação entre as tramas.
No entanto, foge ao espectador a compreensão objetiva de tal interligação de histórias paralelas, vividas em diferentes tempos:
– Em meados do século XIX, o advogado que é intermediário de sua (poderosa) família no tráfico negreiro, mas se arrepende da missão e se torna amigo de fé de um escravo;
– Na década de 30 do século XX, o compositor jovem e genial que se aproxima de um músico já consagrado, porém em seu momento de ocaso. O talentoso rapaz vive uma fuga social, já que tenta esconder sua homossexualidade de uma sociedade repressora. Na convivência com o músico veterano, tem sua obra-prima roubada e sofre ameaças.
– A jornalista idealista (na dinâmica psicodélica dos anos 70), que põe sua vida em risco ao investigar irregularidades na construção inescrupulosa de um reator nuclear;
– Na atualidade, o editor não-famoso que se torna uma celebridade instantânea quando um dos autores da Casa assassina um crítico;
– Na Coréia de um futurista 2144, uma andróide serviçal de um restaurante fast-food é programada para a mecanização até a sua rebelação (e a de seu povo) e redenção;
– Num período pós-apocalíptico (em que a ex-andróide é tida como deusa), tem início uma incipiente civilização, que, na devastação do planeta pós-guerra, retorna à cultura das sociedades pastoris.
Baseou-se o longa na novela literária, de mesmo nome, do britânico David Mitchell. A propósito, tem se assegurado que o livro é inadaptável para roteiro cinematográfico. Eu já não penso assim, pois acredito ser qualquer obra adaptável, dependendo o seu sucesso, porém, da sensibilidade e da flexibilidade do roteirista em transpor para o campo visual um conteúdo surgido para a estática do papel. Não fosse assim, obviamente, não haveria o que se chama de adaptação – ou seja, transposição (de linguagens, backgrounds, mundos líricos, personagens e peripécias). Em viés paralelo, é claro que existem autores e obras mais ou menos adaptáveis. Exemplo: às vezes, um conto pode ser mais audiovisual do que um romance, em vista da abundância sequencial de conflitos, ante o entremeamento de diversificados "pathos" na extensão da trama. Mas o que se deseja discutir aqui não é a adaptabilidade da novela do escritor britânico, e sim os resultados e as corporificações já audiovisuais da linha delineada pelos cineastas. Com esse enfoque, endosso a crítica geral de que o filme não agrada, afinal ele não consuma o argumento com precisão. Sintetizando: faltou roteiro.
Devo dizer que não acho a ideia geral (dos diretores) um amontoado de intenções sem sentido. Lógico que não. Contudo, as diversas vertentes de concepção da história perderam-se num emaranhado confuso, cansativo e não-amarrado em seus diversos tempos e contextos. Para quem não viu ainda, vale ressaltar que o longa-metragem – de quase três horas de duração – passeia o tempo todo pelas tais dimensões temporais distintas; tramas paralelas se fragmentam trazendo à cena personagens e contextos (alternados, em rupturas muito velozes) de passado, presente e futuro. Pretendia-se que personagens de um tempo estivessem ligados, em essência, a figuras subsequentes da trama em outros tempos. Assim, a história que se passa nos idos escravagistas de 1800 deveria ter reflexos na década de 30 do século XX; e esta, por sua vez, no presente dos anos 70 ou, quem sabe, numa era cientifizada do século XXI, em plena sociedade de andróides!... Por fim, numa civilização remanescente em período pós-apocalíptico (contraditoriamente num ano 2300): uma sociedade rústica começando tudo de novo...
E não se estabeleceram, com plausibilidade, vieses de identificação entre esses momentos e personas!
E não se estabeleceram, com plausibilidade, vieses de identificação entre esses momentos e personas!
Evidentemente, nada tenho contra narrativas não-lineares; a questão não é esta. No entanto, quando há paralelismo em dramaturgia, necessariamente, devem existir ligações e encadeamentos lógicos, senão perfeitos, para entendimento e unificação dos vários pontos da trama. É preciso que tudo se encaixe, em coesão de fatos e personificações. E isso não acontece, decididamente, no filme dos Wachowski. Não basta a um crítico, cineasta ou espectador ver as performances brilhantes de Tom Hanks, transmutado em diversas figuras intertemporais. Claro, ele é um ator transcendental (para não perder o sentido correlato – risos) e sabe, mesmo, incorporar um cientista ou um selvagem. Porém, atores espetaculares, máscaras faciais hollywoodianas e efeitos estético-conceituais não garantem a compreensão e o alcance da mensagem cinematográfica. Se a proposta dos diretores era mostrar várias vidas (e personagens e contextos) em diferentes pontos de sua reencarnada existência, deveriam ser reconhecíveis esses elos de identidade, em qualquer momento, país ou século.
Não duvide o leitor / espectador de que é possível unir as pontas de tramas paralelas "viajoras" em tempo e espaço. Sim, todos os fatos e personificações – ainda que em intervalos e situações distantes – precisariam apresentar uma interseção dramatúrgica, um cruzamento de identidades (fossem ou não os mesmos atores). Mas não é o que acontece em A Viagem, onde cada persona se perde no universo geral da trama. E, reitero, não por causa da linguagem fracionada, e sim porque o roteiro não cumpriu a sua função de harmonizar estética e essência. Alguém pode acreditar que funciona, em ficção, uma bela forma sem um bom conteúdo? Pois é o que se dá! As histórias não se unem ao final (no que seria a conclusão do "logos"), e o espectador não tem aquela sensação de empatia com o universo da tela quando sobem os créditos. Contrariamente, quando o filme acaba, as pessoas se despedem dele com a mesma distância conceitual com que assistiram à sua exibição (não raro, vi pessoas conversando(!), bocejando e virando-se para o lado). Obviamente, esse tipo de filme não é feito como se produzem blockbusters, mas boa parte dos espectadores não está – mesmo! – preparada para o convite à reflexão profunda sobre o Cosmos, seus diversos tempos, sociedades e criaturas. E o público que existe de fato com este perfil, sem qualquer dúvida, não se identificou com a proposta, não embarcando na evasão essencial de A Viagem.
Pontos positivos? Na concepção da trama (não estou falando de produção), vou destacar apenas dois:
1- Os cineastas conseguiram demonstrar na telona a sociedade de massificação da China contemporânea. A mecanização industrial – de reprodutibilidade avassaladora – do país oriental foi claramente retratada na sociedade de clones escravizados, estranhamente inseridos num reino de arrojo tecnocientífico.
Isso realmente ficou claro, não só em imagens como em falas como esta:
"Bem-vindos ao Papa Song’s!
"Bem-vindos ao Papa Song’s!
Nas 19 horas seguintes, anotamos pedidos… Servimos comida, vendemos bebidas… Estocamos condimentos, limpamos mesas e jogamos o lixo… tudo feito seguindo fielmente o primeiro catecismo.
Qual é o primeiro catecismo?
– Honrar o cliente."
[Oportunamente acrescento: foi no momento futurista do filme, em uma Seul do ano 2144, que se pôde reconhecer o traço ficcional básico dos irmãos Wachowski, tal como já expresso e definido em Matrix; é como se eles fizessem o filme inteiro para chegar lá, numa busca de clímax. Mas não há êxtase dramatúrgico, pois o roteiro não acompanhou a intenção].
2- Há frações de aproximação com o "mito do cinema total" de Bazin (a arte do real em plenitude sinestésica): no momento do sofrimento da menina da aldeia pós-apocalíptica (visualidade um tanto corpórea) e, principalmente, nas propostas de ficção científica (ambientes, câmaras, procissões, cores e formas num contexto artificial de clones configurados como andróides), reportando-me em átimos a uma "facção" do universo de Eisenstein. Destaque para a cena de Sonmi 451 naquela passarela de ferro, nas alturas, com o seu defensor apaixonado... Você viu?
Afora tudo isso, sobram os reflexos em efeitos especiais, figurino, maquiagem e proposições cênicas de expressão, de acordo com as altas cifras envolvidas no projeto cinematográfico. Sem mais viagens (como o espectador gostaria de empreender), infelizmente!
Por Sayonara Salvioli
9 comentários:
Sayonara, como comentei no seu perfil do FB, concordo com as bases da sua crítica, que tem a meu ver uma ótima fundamentação. Não há dúvida de que um roteiro em correspondência com o argumento inicial é o caminho para um bom cinema, desses que emocionam, impactam e fazem pensar. Quando é diferente disso, acontece como em "A Viagem", situação que você definiu bem: a experiência do cinema termina sem comoção e empatia. Sua mensagem e seu alcance se perdem!
Tb acho que o problema tá no roteiro. O tema é bacana e os caminhos são muitos, mas, quando não é contada uma boa história, não bastam efeitos especiais e formatos suprassumo.
Sim, cara Sayonara, interessam a um crítico obras consistentes, você tem toda a razão. Obras que primem por um roteiro bem estruturado, capaz de abordar uma história inteira. Parabéns pela crítica!
Adorei a sua visão, Sayonara Salvioli! Mas estou aqui por causa da sua matéria no Yahoo!! Está bombando!!!!!! Concordo com você. Tem que repaginar tudo na TV!!
Excelente crítica!!!
Você sabe expor muito bem seus pontos de vista Sayonara Salvioli!! Achei seu blog no link da sua assinatura na matéria do Yahoo. Gostei da sua crítica de televisão tb!!!
Vi o filme e saí de lá muito confusa. Acho que a história se perdeu mesmo.
Pelo menos o cinema ainda é melhor que a TV não é, Sayonara Salvioli?
Crítica pertinente.
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