segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Evocação personal


Eram sete da matina, hora de profundo hermetismo. Fração sagrada das parcas vinte e quatro horas diárias, momento máximo de minha apreciação do universo de Hypnos (risos sonolentos). E justamente em momento assim tão solene... Trrriiiiimm: toca o telefone. Como tenho excelente ouvido, consigo me transportar até a longínqua dimensão da realidade:
– Alô! – atendo, com voz distante e nítido tom de desagrado.
– Bom dia! Aqui é o Estêvão.


Meu coração se acelera. Não é possível! Engulo em sequíssimo, mas tento disfarçar meu embargamento emocional:
– Eeestêvão???
– Sim. Tudo bem?
– Tuudo... – esfrego os olhos pela nona vez em meio minuto – Mas... que Estêvão?
Antes que ele pudesse responder, viajei pela milésima faixa sideral, imaginando se tratar do protagonista um tanto pirado do conto que eu houvera escrito exatamente naquela noite, pouco antes de dormir... Apavorei-me ao imaginar que ele havia saído do limbo de todos os personagens do mundo para, sem cerimônia ou qualquer escrúpulo, invadir a privacidade da minha vida real – e em horário proibido! Que falta de respeito! Tremenda falta de noção de hierarquia! Acho que não dosei bem a sua psique ou os seus traços morais... Mas a emoção não é a de indignação ou de condenação... ou de uma especulação cognitivo-autoral... É de meedo! Respiração ofegante: acabo de me lembrar que assistira também aquela madrugada um filme forte e assustador, em que um personagem saía da ficção e ia procurar o autor... para matar!!! O terror me faz descobrir o bruxismo, e meus dentes trincam mais do que o poderiam em Oymyakon... Suspiro mais fundo e digo com voz de thriller:
– Como foi que você descobriu o meu telefone?
Quase meio minuto de aterrador silêncio. Onomatopeia para o meu coração: Tum tum tum (risos ridículos)... Finalmente:


– Você não se lembra?
Pânico nº 78. A essa altura, eu já divagava por Pirandello... Deus dos autores! Então o meu Estêvão – criatura que fiz surgir à testa do mundo imaginário – achou de aterrorizar-me com seus dramas internos? Provavelmente Estêvão sentira algum vazio lítero-existencial, talvez alguma lacuna na constituição de sua personalidade... Claro! Problemas de tipificação estrutural. Reflito mais profundamente e constato que a culpa devia ser minha: dei-lhe características delimitadas de criatura, mas não lhe concedi o arbítrio de uma história verdadeira para viver! Seu habitat na celulose realmente era um lugar triste e solitário... e sua dimensão vital era limitada, cerceada por uma autoria egoísta e impiedosa. Lamentação: agora era tarde! Estêvão soltara as amarras de sua aquém-vida, e – como um fantasma pós-moderno da ficção – vinha me puxar os pés na manhã!

Ele insiste:
          – Parece que você não está se lembrando de mim.

Sua voz saíra metálica, taxativa, cruel. Eu corria perigo! E àquela precoce hora quem iria me salvar?... Naquele exato segundo concluí que estava perdida. E tudo por causa de um personagenzinho idiota, maníaco-depressivo, que eu trouxera à luz numa noite cinza... O problema é que eu não imaginara que ele transporia a linha (tênue, pelo visto) da dimensão ficcional para a humana! Afinal, enquanto um personagem tem uma constituição artificial – fechada, acabada –, o ser humano apresenta zonas conflituosas de ação e reação, indefinidas, em processo contínuo e inacabado, como se sempre em construção...

De repente, Estêvão me tirou do devaneio analítico com sua voz alta e sem educação. Minhas pernas tremeram, tremor seguido por três segundos de espasmo: não o reconheci nessa hora. Estava certo que ele era um tanto doente e problemático, mas não me lembrava de tê-lo feito claramente agressivo e grosseiro... Foi quando ele esclareceu:

– A senhora não está mesmo lembrada de mim?! Nos falamos há uns quinze dias... Sou o fotógrafo do casamento da sua amiga... Ela me disse que era pra acertar com a senhora o conceito de imagem e cenário.
          Ufa!!! Mil agradecimentos à Nossa Senhora dos Distraídos (ou dos Loucos?)! Tratava-se, então, do   
          tal fotógrafo... Acontecera que uma amiga próxima, praticamente da família, me pedira para auxilá-la 
          na organização de seu casamento – detalhes de estruturação de cerimônia religiosa e recepção... 
          Motivo: eu era conhecida na região pelo meu know-how em organizar casamentos [aos dezenove,   
          “produzira” o meu próprio, com uma infinidade de detalhes supérfluos e seis mil – isso: 6000 (leia-se 
          seis mil mesmo!!!) convidados!!!!!] Por causa desse fato (talvez refletor de uma então provável 
          anomalia psíquica de minha parte), pessoas de várias cidades me procuravam – a mim, à famigerada 
          noiva popularíssima – para que eu as ajudasse em seu grande evento [E pensar que eu nem ganhei 
         dinheiro com tais consultorias; não cobrava! (risos)]...

Minutos seguintes: instantes leves de alívio extraordinário. O homem era, de fato, real, assim mesmo, bem pleonasticamente, para a minha felicidade e integridade! A confusão se dera pela confusão imediata de nomes, e eu não me lembrava de ele se chamar Estevão... Em seu cartão constava apenas E. Guedes Rubim. Conversei então com a criatura – sem segundo sentido –, acertamos detalhes, marcamos uma reunião. E eu pude voltar a dormir, como um anjo... Ops! Sem entidades. Foi um sono bem humano.


Por Sayonara Salvioli

7 comentários:

Cláudia F. disse...

Sensacional, Sayonara! Crônica mais que bem-humorada, leve e ao mesmo temo consistente, bem construída, perfeita! Adorei!!!!

vania disse...

jura que pensou que era o seu personagem sayonara?? vc eh d+!!!!!!!! kkkkkkkk

Mônica disse...

Hahahaha...muito legal o texto!!!!!

Marcelle disse...

Nossa, Sayonara!!!!! Um casamento com seis mil convidados??????? Só podia ser o seu mesmo!!!!!!!!!!!!!

Luciana C. disse...

Que viagem!!!!!! Também o que se pode esperar de uma escritora tao imaginativa como voce? Bem que a Raquelzinha sempre alegou que você vive num universo paralelo... rsrs Coisas de autora!! haha

Zuleika disse...

Hilário!!!! Nada como a imaginação de uma escritora para escapar à monotonia do mundo real!!

alvinho disse...

sinistroo