terça-feira, 28 de setembro de 2010

Dona Mudança


Quem não sabe aqui que entre Dona Rotina e Dona Mudança, fiz amizade com a segunda? Talvez por isso insista, até involuntariamente, em alternar horários e distribuir aleatoriamente certas tarefas do meu dia-a-dia. Não compreendo bem uma sistemática de vida que pressuponha atividades sincronizadas com horários totalmente regulares e inflexíveis. Necessito colocar um tempero no trivial. 

Na esteira desse pensamento, encontram-se também aquelas filosofias de renovação permanente, do desafio do trapézio etc. (aqui já mencionadas). De minha parte, hoje prefiro simplificar as abordagens, lembrando apenas o quão necessária se faz a mudança em nossa dinâmica de vida. Afinal, estacionar em algum estágio pode ser a primeira via do marasmo existencial.

Tenho percebido que, com o passar dos anos, estou me tornando mais exigente com tudo à minha volta: com as circunstâncias, com as pessoas, comigo mesma e com o tempo, principalmente. Procuro extrair do Cosmos o máximo de bálsamo vital, aquela espécie de dose extra de essência e significado, aquele quê a mais que pode existir nas coisas, durante cada fase experimentada. E é aí, nessa análise involuntária, porém latente, que surge o ímpeto da mudança.

Por vezes, queremos de fato escolher a via da mudança, mas não o fazemos de imediato por causa de situações que fogem ao arbítrio de nosso desejo, comprometimentos outros alheios à nossa vontade. Em muitos casos, o outro pode ser um impedimento natural e lamentável para o nosso eu, uma espécie de veto da transformação. E talvez seja essa mola propulsora da transformação – o desejo – a grande catapulta da felicidade de Aristóteles. Não podemos deixar, pois, que outrem ou circunstâncias aparentemente desfavoráveis (ou temerosas) possam impedir a escalada natural de nossos pés bandeirantes. 

Na prática, talvez, o dilema fundamental seja fazer a opção entre o antigo (que pode ser a obsolescência) e o novo (que pode ser a plenitude). Por certo, é uma decisão difícil, que envolve nuances tênues do espírito, afinal o susceptível, ao passear pelos terrenos da imprevisibilidade, pode encontrar surpresas fora de roteiro. Mas para os ousados e autoconscientes, o medo do novo nunca existirá de modo a impedir suas ações.
Há pouco, concluí a necessidade da mudança, da renovação, da abertura. Optei pelo novo e me pergunto, a cada momento, o que de mais fascinante ainda pode acontecer... Afinal, é inegável o encantamento que a novidade traz, com todas as suas facetas de atração e susceptibilidades.

E lá vem novamente a Dona Mudança, figura aparentemente amiga de face desconhecida!... Pois aqui estou: quero (re)conhecê-la!...


Por Sayonara Salvioli

domingo, 12 de setembro de 2010

A rosa artificial


Melina guardava lembranças um tanto insólitas da sombria figura de Carlota Sholstein. Lembrava-lhe, sobretudo, a personalidade extravagante e desproporcionada, aquele vozeirão autoritário, de tom grave, saído surpreendentemente de uma mulher de estatura pequena. Carlota media cerca de 1,50 m, mas sua audácia e imponência pareciam forçar a sua imposição sobre o mundo.
Carlota, porém, e a despeito de personalidade tão pouco simpática, era ainda uma mulher bonita em sua face de sessenta e poucos anos e olhos verdes. Seus traços harmoniosos provavam que fora realmente bela na juventude e induziam à idéia de que, como sempre afirmava, tivera os homens a seus pés. Se isso fora verdade, não se sabe, o fato é que Carlota guardava ares abusivos e pretensiosos, aquele jeito de quem pisoteia o mundo e as pessoas, e acha que pode fazer isso.
Mas um detalhe se perdia nas histórias de vantagens da mulher: depois de seus alardeados anos de glória feminina, vivia agora solitária e amarga numa casa de cinco quartos que mais parecia um castelo-fortaleza medievo em tempos de hoje. Em lugar dos antigos saltos-agulha, usava chinelões fofos de matelassê, confortáveis e anatômicos. E as suas roupas agora eram discretas, assentadas no corpo, porém sem o destaque curvilíneo e aprumado de seus dias de diva. Restava-lhe, ainda assim, um pouco da silhueta: quem a olhava de relance podia vislumbrar um desenho esguio de corpo, em formas delineadas de elegância pessoal. Mas a sua persona, esta sim, não fazia bem aos olhos ou sentidos de quem quer que fosse, pois à sua visão se somavam certos pedantismo e artificialidade incapazes de causar qualquer empatia.
Melina se lembrava, por exemplo, de algumas frases repreensíveis da mulher, quando lhe fora apresentada a esta por Heloísa, sua amiga e sobrinha de Carlota. Dentre outras pérolas, a mulher disparara:
– Mas essa sua amiga é mesmo muito sem gracinha, Heloísa. Mulher tem que ser imponente! – e para Melina: – Você até que é bonitinha, menina, mas um pouco suavezinha demais para quem já tem catorze anos... Uma mulher, mesmo novinha, tem que aprumar o corpo e empinar o nariz quando passa por algum lugar, para todos saberem quem é que está passando por ali. Você tem que ser mais metida, Melina!
Heloísa até ficava com vergonha do jeito e das palavras equivocadas da tia. Carlota era uma mulher estranha, dessas típicas figuras estereotipadas de histórias exóticas, meio estapafúrdias mesmo. Embora quisesse parecer fina, primava pela deselegância de atitudes, e luzia um letreiro em sua fronte, o que era perceptível até mesmo para meninas suavezinhas de catorze anos.
Além das frases e dos trejeitos peculiares, Carlota contava muitas histórias, que pareciam cobertas de lenda, como por exemplo a da do “devotamento” de seu antigo noivo [noivado de 25 anos?!], que lhe oferecia, todos os dias, a lua e o sol de presente... Pífias histórias! Também gostava de narrar glórias de riquezas passadas, tentando esconder os louros - em ouro e euros – do presente. Heloísa, a respeito, afirmava com todas as letras que a tia era dona de considerável fortuna:
– Ela é cheia do ouro, literalmente: ouro em barra que ela guarda no banco!... tabletes e mais tabletes!!! Também tem aplicações que lhe rendem mais de 40 mil euros ao mês!
Mas Carlota, apesar dessa riqueza apregoada, não passava de uma sovina de marca. E o que era, de fato, verdade em sua vida não se sabe. O que ficou, afinal, de todas aquelas conversas de visitas vespertinas, junto de Heloísa, à casa de Carlota foi a imagem de uma mulher cheia de artificialidades, tantas que faziam dela uma espécie de biscuit humano fora de época. A lembrança de uma mulher falsa, fútil e carregada de maquiagem forte e apetrechos de mau gosto. Mas uma imagem forte, sem dúvida. Tanto que – mais de uma década depois – toda vez que Melina passa em frente à grande casa de Carlota, não consegue deixar de olhar para a sacada e procurar a rosa vicejante... O que vem a ser esta/ isto? Ahhnn... é a flor “de mentira” que Carlota amarrava à planta do centro da varandinha, para que todos a vissem lá de baixo. Ela dizia:
– Todos que passam pela calçada do outro lado da rua devem ficar imaginando como é que a moradora desta casa consegue cultivar uma planta assim?!... Tão fecunda que tem sempre uma rosa linda, enorme, vicejando e aberta! Que mãos de fada essa mulher tem! Nunca vi uma rosa tão bonita!... Ah ah ah ah!
Era uma vaidade boba, e que parecia mais boba ainda ao ser proferida por Carlota. No entanto, até hoje, quando passa diante da casa de Carlota, Melina estica o pescoço para ver se avista a flor.. E a encontra lá, invariavelmente, bela e magnetizante, fingindo ao mundo que é rosa! A moça imagina que, no dia em que levantar os olhos e não avistar a rosa, em todo o seu viço de mentira, entenderá que Carlota morrera.
No fim de contas, o que mais impressiona Melina na história de Carlota não é a sua imagem nem sua personalidade, e sim a lição do embuste de uma flor sintética amarrada a uma planta de verdade. Melina sempre pensa a respeito e põe-se a refletir sobre a branda inocência dos passantes da vida – transeuntes ignaros – que, muitas vezes, avistam ao longe uma flor artificial julgando tratar-se de uma linda rosa!
Por Sayonara Salvioli