domingo, 4 de julho de 2010

Presa na torre?!


Quando eu era criança, li a obra Ou isto ou aquilo, da sensacional Cecília Meireles. E me chamavam especial atenção os seguintes versos: É lá que eu quero morar: no último andar. Ora, além do poema na obra específica, eu lia, relia e reencontrava aqueles versos em todos os livros de Comunicação & Expressão (lembram-se desta nomenclatura?) da escola. Havia um, inclusive – de quando eu tinha nove anos – que trazia uma ilustração complementando perfeitamente a idéia dos versos de Cecília: uma menina, provavelmente da minha idade, olhando as estrelas, em meio à altura estonteante de um último andar do que parecia ser o maior arranha-céu do mundo!...

Aquela imagem, em coesão cognitiva com o lirismo daqueles versos, me reportava a um apartamento – situado onde eu não sabia – plantado bem no meio das nuvens! [De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar]. E tal me parecia muito interessante, embora a realidade de meu momento infantil também fosse fantasiosa: eu habitava o mistério de uma casa enorme – cenário perfeito de um filme de suspense –, que tinha um imenso corredor, com portas labirínticas por todos os lados (parecia-me – quando eu saía correndo pelo corredor, sozinha – que de cada porta daquelas saía um fantasma diferente!), com muitos quartos e salas, espelhos, portais, cofres, estantes e livros... Uma grande casa linear, que não necessitava de uma amplitude vertical como a dos versos cecilianos. Ainda assim, aquela página com os versos e a ilustração me detinham, e retinham mesmo minha imaginação, fazendo-na divagar pela cidade distante do reino mágico daquela poetisa que queria morar no último andar!... No último andar é mais bonito (...) É lá que eu quero morar. E eu pensava: eu também!

Seria difícil descobrir (embora eu tivesse contado o número de andares do prédio do desenho e este mudasse de livro para livro) se aquele arranha-céu de literatura aplicada excedia um prédio de uns trinta andares... Seria possível? Nem os anos – décadas – me responderam isso, mas Mestre Tempo não se esqueceu da incógnita. Embora um pouco mais tarde eu tenha me descoberto levemente acrofóbica, o que talvez tenha amainado, por vários anos, a minha fixação por um tal fantasioso andar perto do céu... Mas eis que, um belo dia, visitei um imóvel, e do alto de uma de suas janelas vislumbrei, em divisa tênue, o encontro do mar com o horizonte! [Do último andar se vê o mar]. A paixão foi quase imediata e... resultado: mudei-me para lá! Ou melhor, para cá!

No primeiro amanhecer, acordei com um passarinho entrando por uma fresta ainda não coberta no vão do ar condicionado [Os passarinhos lá se escondem para ninguém os maltratar]; nas primeiras noites, mirei as luzes do entorno: pareciam olhos de íntima metrópole [Todo o céu fica a noite inteira sobre o último andar]; nos primeiros meses, o céu visto dos olhos da cobertura [Quando faz lua no terraço fica todo o luar]; nos meses seguintes, porém, meu olhar começou a buscar um estreitamento com a terra [O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar]. A poetisa era também profetisa, afinal uma condição pressupõe a outra.

De uns tempos para cá, ao visitar lugares de alturas mais razoáveis, comecei a sentir uma certa familiaridade com o que é mais próximo dos espaços lá de baixo: parques, crianças e gentes em seu tamanho natural!... E agora me sinto, de novo, quase que como a menina dos versos de Cecília: a mesma perplexidade ao olhar para as nuvens, porém com um certo estranhamento ao mirar a distância do último andar. Será que é lá (aqui) que eu quero morar?... Parece acometer-me, tardiamente, o complexo de Rapunzel! (risos). Também me vêm à mente consciências bruscas de Ismália!... Porém, consciências... claro! Prefiro, naturalmente, contemplar a lua no céu de um alto bem mais alto que sobre a lua no mar! Mas não tão alto que se avizinhe do céu assim! Restam-me, então, os elevadores e as escadas, pois meus vôos de imaginação parecem me ditar um passeio mais ao nível das gentes passantes, dos gramados e das flores, das praças, dos cãezinhos passeadores, da padaria, da banca e das esquinas. Depois da experiência real do arranha-céu de Cecília, no poema da realidade estou me sentindo como que presa na torre!...

Por Sayonara Salvioli

6 comentários:

Alice Pedrosa disse...

Que lindo!!!
Um texto lembrando os versos da grande CEcília Meireles!! Encanto puro!
E que imaginação a sua, Sayonara!Mas não acredito que uma torre, por mais alta que seja, possa te prender! rsrsrs Vc tem asas!!!

Gaby disse...

Muito legal! No meu livro de comunicação e expressão tinha também a menina dos versos de Cecília, nas imagens que vc tão bem narrou! Fiquei até emocionada recordando várias coisas!
Só que hj eu não quero mais morar no último andar!!!! hahaha

anônimo disse...

bacana o blog. bem escrito e bonito.parabéns!

Anônimo disse...

O Nino Bellieny com uma excelente socialização ao publicar no seu post "presa na torre?!" Me fez conhecer vc e saborear um pouco de seus escritos, reflexões... Admira-la! E, até parece que o último andar basta; mas não basta! P/ mim é apenas o primeiro... Voltarei se me permitir.
Parabéns!!!!!!
Flávia.

Gunter disse...

Belo texto. Gostei de conhecer o teu blog. Parabéns!

Gunter disse...

Belo texto. Gostei de conhecer o teu blog. Parabéns!