sábado, 18 de abril de 2009

Círculo de Fogo


Chamavam-no Pelengo. Era um sujeito esquisito, carrancudo, com ares de quem queria “botar fogo” no mundo. Na verdade, porém, ele só colocava fogo em objetos. Vivente sem rumo e ao relento, todos os dias fazia seu trajeto demarcado: cortava toda a avenida, ao longo da qual fazia seu desfile particular, empurrando aquele triciclo carregado de coisas velhas.

A Avenida Prestes era relativamente movimentada. Por ela transitavam, todo o tempo, veículos e passantes em sua corrida de ir e vir. E o itinerário de Pelengo passava por um supermercado, uma farmácia, uma quitanda, uma loja de tecidos, uma clínica, um hotel, uma fundação filantrópica e um restaurante. Todos que por ali trabalhavam e se movimentavam já tinham incorporado, no panorama de sua rotina, aquela espécie de peregrino com bagagem.

Pelengo era corpulento, usava um chapéu feio e roupas sempre sujas. Agasalhava-se em pleno verão, mantendo-se coberto de casacos mesmo sob um sol abrasador. Às vezes, também trazia sobre os ombros um cobertor velho e esburacado. Aquela destoância de temperatura bem revelava a sua incongruência com o mundo e as pessoas à sua volta, já que sempre parecia tão distante de tudo.

Nem mesmo Erasto, o gerente do supermercado, com seu jeito simpático e falante, era capaz de arrancar manifestações de Pelengo. Sua fisionomia desconfiada foi sempre uma incógnita, e suas palavras eram silentes, como se de um louco sem fala.

Afora as esquisitices, a maior característica do mendigo era o fato de todos os dias – por volta das dezesseis horas – fazer uma trouxa de jornal, papelão e panos velhos e atear-lhe fogo. Era mesmo um espetáculo pouco comum, que mais parecia uma ilustração em p/b de canto de página no cenário colorido de uma rua movimentada.

O piromaníaco, como todo portador de desequilíbrio, lançava mão de recursos próprios para executar seus atos diários. Tais incêndios vespertinos contavam com um aparato peculiar: Pelengo usava um cano, no interior do qual despejava óleo diesel, e sobre a improvisada pira lançava a trouxa com retalhos, revistas, caixas e outros fragmentos de lixo. Formava-se uma imensa fogueira enquanto o incendiário ficava a observar os objetos arderem, impassível e sem dizer palavra.

No início da temporada do piromaníaco pela Avenida Prestes, seus atos causavam espécie, afinal não era comum ver um homem provocando um incêndio em meio à movimentação urbana. Funcionários da clínica e da fundação em frente às quais ele passava já haviam tentado, sem sucesso, resgatá-lo para uma vida saudável. Também não foram poucos os que se aproximaram, na tentativa de o fazerem abrir-se ou entregar-se a cuidados médicos. Mas todas as tentativas foram infrutíferas, e – com o passar do tempo – Pelengo se tornou uma pintura a mais na paisagem urbana. O incendiário acabou virando uma espécie de estereótipo local, aceito e sem realces de atenção. Sua mania doentia era previsível e, àquela altura, já se sabia que ele não representava perigo para a sociedade. Na verdade, ele vivia preso ao próprio mundo, um mundo interior repleto de cinzas como as que restavam de seus incêndios.

Contudo, para as crianças, o piromaníaco era uma figura temida. O homem tinha cara feia, nunca sorria e, para completar, ainda lançava de vez em quando aquele olhar de vou te pegar. Alguns pequenos corriam horrores quando ele se aproximava.

Na verdade, ainda que de forma velada, também os adultos o abominavam desde que Wanda, a espalhafatosa vendedora da loja de tecidos, contara a desventura do pobre homem. Segundo ela – que dissera haver conhecido um parente do mendigo –, este enlouquecera por causa de uma dor descomunal. Segundo ela, aquela vida de louco era castigo, afinal “aqui se faz, aqui se paga”...

Pelengo era um homem normal, com mulher, filho e profissão. Mecânico, tinha uma pequena oficina nos fundos da casa. Tudo corria muito bem, até que um dia sua mulher precisou sair e pediu que ele olhasse o menino Laio, de onze meses, no berço. Disse-lhe o marido que ficasse tranqüila, pois tomaria conta da criança. E nada de ruim teria acontecido se uma dessas ciladas do destino não houvesse escolhido Pelengo para a ocasião... Depois de duas horas de trabalho – já tendo olhado o filho em seu quarto por diversas vezes –, o homem recebeu um chamado para rebocar um carro num bairro vizinho. Coincidentemente, nesse mesmo momento, chegou à oficina Dino, um menino de rua, de treze anos, que houvera se tornado amigo dos donos da casa e gostava de ficar observando o mecânico trabalhar em processos de soldagem. Pelengo já até lhe havia ensinado algumas coisas. E achou que poderia atender ao chamado de trabalho enquanto o garoto ficasse por lá e ajudasse a olhar a criança por um tempo. O homem, então, fitou o filho mais uma vez, fez recomendações a Dino e saiu . Pensou que a sua ausência de minutos não poderia trazer riscos ao pequeno, que dormia a sono solto e, pelo hábito diário, não deveria acordar até o fim da tarde. Já passava das quinze horas quando Pelengo, depois de trancar a casa com os dois dentro, atravessou o portão da garagem em sua caminhonete.

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O relógio marcava dezesseis horas quando Pelengo abriu o portão e viu um dos quadros mais aterrorizantes de sua vida. Nuvens de fumaça se espraiavam pelo ar na direção do quintal. Pelengo correu para ver o que tinha acontecido e, ao aproximar-se de casa, viu altas chamas nas janelas. Foi quando o homem, apavorado, entrou na casa e constatou que o quarto do pequeno Laio ardera por inteiro!

Horas depois, Pelengo olhava o que restou de sua oficina e de sua casa. Concluiu que Dino talvez tivesse ligado as máquinas de solda de que tanto gostava e, em seu desconhecimento do funcionamento do instrumento, num ambiente com galões de gasolina, acabou causando uma explosão que atingiu não somente a garagem como a cozinha e o quarto de Laio. Morreram Dino e o menino, e Pelengo acreditava ter sido o causador da tragédia. A mulher de Pelengo não o perdoara por ele ter deixado “o bebê morrer dormindo”, e o homem, já quase enlouquecido, saíra pelo mundo...

Desde então, o antigo mecânico virara incendiário. E viveu anos assim, até que um dia foi dormir, ante o desleixo de sempre, e deitou-se na rua, cobrindo o rosto com um jornal. Só que a fogueira daquele dia ainda não havia parado de queimar e, quando as luzes da cidade se apagaram, o vento soprou de novo os ares da tragédia e fez Pelengo arder junto com sua trouxa. No dia seguinte, a Avenida Prestes acordara com a notícia: o piromaníaco pegou fogo enquanto dormia. Sua própria loucura – o passado em forma de círculo de fogo – o levara à morte.


Por Sayonara Salvioli

11 comentários:

betina disse...

personagem bizarro esse!!!! Freud explica ;)

Lúcia Costa Ney disse...

Conto emocionante, Sayonara! Vc é uma mestra da arte de narrar! Sou franca admiradora de seu trabalho!!!

Paulo Lemos disse...

Impressionante como o passado pode ditar o resto da vida de alguém. A narrativa comove!

Luciana C. disse...

Parece que estou vendo o "Pelengo", figura "já retida nas minhas retinas"...
Adorei!

Heleninha Ramos disse...

Impressionante o realismo dado ao personagem Pelengo!!

guilherme disse...

sinistra a história do cara!

Unknown disse...

a historia desse maníaco é triste, mas engraçada ao mesmo tempo... os textos desta autora aqui são sempre instigantes!! mesmo quando não são temas da terra nostra... haha
abraços deste seu fã

Maria Amélia disse...

Adorei!!! Sua poesia narrativa é de admirar! Parabéns!!!

Unknown disse...

Personagem antológico esse... como diria o FAustão!!! hehe

Wilminha disse...

TD de bom essa narração! fora do comum!!!

Cláudia F. disse...

Posso jurar que Pelengo existiu!