Habitava um vilarejo pitoresco um casal atípico e inominável. Ele, um pacato aposentado, com rendas avultantes. Ela, uma mulher alegre, idade: 57; cintura: 58.
O homem e a mulher bem podiam ser considerados personagens bizarros de folhetim. Maxwel era alto, moreno, sorridente, extremamente magro e careca. Só que ele não era biologicamente careca: raspava todo o cabelo, pois assim se cria mais bonito. Jamais se viu calvície mais brilhante! Esmeralda, muito conservada, tinha pele alva e corpo de violoncelo. Trajava sempre vestidos coloridos e muito justos, na altura dos joelhos. Precisava ser respeitável. Seu sorriso de fisionomia antiga, contudo, exibia uma expressão esquisita.
O casal vivia bem. Na vila provincial de dois mil habitantes, sua condição econômica era abastada. Maxwel agradava aos pobres com mimos insignificantes, mas que lhes eram caros e preciosos. Esmeralda fazia o melhor doce de leite em cubos que já se conhecera e o distribuía entre a criançada da vizinhança.
Sua rotina era alegrada por bailes ocasionais. Não havia um só movimento dançante nas redondezas em que os dois não estivessem presentes, a rodopiar pelo salão. Imaginavam-se grandes dançarinos. Imaginavam-se.
Esmeralda esmerava-se em brilhos e enfeites para parecer bela e atraente. Carregava os cabelos (cacheados e "moldados") de laquê e pintava rudemente o rosto. Cria-se bela, inacreditavelmente. A mulher mais linda do baile... A rainha do salão!
Na verdade, Maxwel e Esmeralda formavam um casal fora de moda e fora de esquadros. Mas que ostentava no vilarejo de habitantes ignaros uma imagem de casal admirável e de porte. Os dois passeavam de braços dados pela praça do albergue, como se fossem representantes da mais fina estirpe. Eram pessoas admiráveis e de berço, sustentavam.
Toda a inocente gente do lugar nutria grande consideração pelo casal residente na Rua Libélula, 502. Davam-lhe sua amizade sincera e filhos para batizar. Era oportuno e providencial: retornavam-se-lhes lucros, ínfimos presentes que lhes ativavam a cobiça reles.
Falava-se, porém, a boca pequena, que o homem não era lá muito sério. Metia-se pelos becos escuros do lugarejo, atrás de moçoilas desavergonhadas. Bolinava-as e pagava-lhes com mimos e suspeitos empregos. Feio, cadavérico e desajeitado, precisava esforçar-se para agradar.
A mulher, nessas ocasiões, ficava em casa e se fingia de morta. Mas era muito séria. Não procedia mal com o marido. Seu único capricho era frequentar a sociedade, falava cheia de orgulho. Gostava de sentir-se o centro das atenções nos bailes de província. Querer aparecer era coisa que não fazia mal a ninguém.
Do homem falava-se também que nutria uma paixão platônica pela índia Bartira, moça de dezoito anos que se desnudava e desfilava nos trilhos da linha férrea nas noites de lua cheia. Segundo a língua do povo, a bugra, a qual fora apanhada no mato a laço e levada para a vila, era inocente e virginal. Só que quando a lua se enchia e apontava no céu claro, seu lado selvagem aflorava... A moça ficava nua em pêlo e punha-se a andar e correr sobre a linha do trem. Muitos homens do lugar ficavam acordados durante essas madrugadas. Urravam extasiados quando a indígena surgia. Mas ninguém a atacava. Aquilo era apenas um feitiço de Jaci, diziam.
Maxwel era o mais devotado entre todos os assistentes do espetáculo do luar. Permanecia sentado, magnetizado ante a visão. Seus olhos ficavam parados, e o espiríto parecia deixar seu corpo, aparente e momentaneamente sem vida.
Aos domingos, o casal ia à missa e fazia o ofertório. Dar o dízimo não era nada. Deus fora muito bom com eles. Era preciso retribuir.
Estranhamente, Esmeralda e Maxwel não tinham filhos. Só um gato pardo e feio. O bichano era magro, apesar do muito leite que bebia. Penduradas na varanda dos fundos, havia também muitas gaiolas de periquitos, sanhaços, curiós e canários. O casal aninhava também um melro, chamado Azulão.
Sua vida parecia quase normal. Aos olhos da gente simples local, entretanto, tinha um quê especial de glamour. Um glamour desbotado, era verdade, mas não deixava de ser um glamour.
Esmeralda tinha modos suspeitos, jeito vulgar e trejeitos notórios. Andava pela casa descalça e com pouca roupa. Mas o povo ingênuo a julgava uma boa senhora. De respeito e consideração.
Na verdade, porém, a mulher houvera sido descoberta por Maxwel num antro noturno da Bahia, um randevu chamado Borboleta de Ouro, freqüentado pelos cacaueiros da região. Maxwel cumpriu as regras da casa e alugou-a por três noites consecutivas. Apaixonou-se pela alvura da mariposa de curvas generosas, transgrediu as leis do bordel e a pediu em casamento. Esmeralda topou na hora. Onde se viu mulher da vida rejeitar marido?!... Ainda mais de papel passado, como ele prometia. Mas não cumpriu. Só que ela quis assim mesmo. É claro. Afirmava em seu jeito tosco que “juntado com fé, casado é...”
Ao deixar a vida fácil, Esmeralda não imaginava que ia virar dama de respeito da sociedade d’algum lugar. Não sabia que existia no mundo uma cidade como Vida Feliz. O lugar era uma comunidade de pessoas meio inocentes, meio hipócritas, que não reconheciam ou condenavam quaisquer desabonos morais e sociais. E Esmeralda deixou a vida fácil para ir pra Vida Feliz. Decidiu que ia viver só para o marido, o seu marido. Nossa, como isso dava respeito! Principalmente a ela, que nunca tivera marido!
O casal viveu muitos anos na pacata província rural. Quando ia aos bailes da sede municipal, causava risos e estranhezas... Todos riam do pretenso pé-de-valsa e da prostituta passada. Sim, ali em Vasos, as pessoas percebiam o inusitado daquela performance dúbia. Viam claramente a simplória pretensão do homem e o sorriso indisfarçável da antiga meretriz. Mas em Vida Feliz os dois continuavam sendo um casal de respeito.
E na sua vidinha de glamour provinciano, os dois viveram muitos anos. Até que, numa noite de lua cheia, Maxwel foi encontrado morto no Beco da Escuridão, próximo à estação ferroviária.
Esmeralda chorou “por fora” durante vinte dias. No vigésimo primeiro, declarou que ainda estava viva e precisava fazer mais caridade: adotou todos os afilhados do sexo masculino, até os crescidos. E continuou a viver feliz em Vida Feliz, por mais alguns anos. É verdade que os vizinhos estranhavam os agudos sons guturais que emanavam da casa, nas madrugadas, após os longos bailes da rainha do salão... Mas, sempre que o dia clareava, Esmeralda continuava a ser uma mulher de respeito. Dona Esmeralda. Dona Esmeralda Paranhos, viúva do saudoso e respeitável Maxwel Paranhos. Deus o tenha.
Por Sayonara Salvioli
9 comentários:
Demais!!! Hahahaha
Outro estilo, escritora de mil faces!!
ah! como eu queria estar lá pra ver o "espetáculo do luar" hahaha Que índia é essa?
Que contexto o dessa cidadezinha! Lugar inusitado... Gostei!
Um randevu na Bahia, personagens provincianos, "os reis da valsa"??!!... Hilário!!!!
Adoro histórias assim! Têm ingenuidade e ao mesmo tempo a riqueza de personagens incomuns, antológicos mesmo!
"Aluguel de dama" por três noites consecutivas... Que imaginação!!!
Como sempre, aportar por aqui é prazerosa viagem! Teus personagens são deliciosos, Sayonara!
bjs
MLeite
Amiga querida,
Seu blog é uma delícia e você é um sucesso!
No dia do seu aniversário, quero te dar PARABÉNS pelo seu brilho pessoal e por sua sabedoria, que não é desta vida...
Que o grande Mentor do universo ilumine cada vez mais a sua rota!
Sayonara!!!!!!Que calor é este hein!!!!ótimo o texto.Aproveitando a oportunidade e a descoberta do seu aniversário.Desejo a vc felicidade, paz, sabedoria e prosperidade na sua profissão.Que vc tenha infinitas inspirações e que seja apreciadas por todos, em forma de aprendizado, cultura...Que Deus te abençoe...
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