Era o ano de 1657, e Veneza se encontrava sob a égide jurisdicional de Bertuccio Valiero. Diante do Palácio dos Doges, naquele sábado de fevereiro, quem por ali passasse talvez se impressionasse com a sisudez do leão alado que guardava o pórtico real. Abaixo dele, a magnanimidade da Madona, como se em eterno desvelo pela Sereníssima. Ainda abaixo, o relógio do tempo, a escala solar, a roda das destinações...
No interior do palácio, Silvestro se preparava para sair às ruas. Era um momento excitante para ele, pois naqueles meses poderia margear o Grande Canal sem ser reconhecido. Não aguentava mais a bajulação subserviente dos insistentes e o assédio das mais fúteis damas de Veneza. Talvez muitos não entendessem, mas isto de ser o filho do doge tinha lá seus inconvenientes. A verdade era que ele se sentia, todo o tempo, o principal alvo do interesse alheio. Mais do que isso, não tinha oportunidade – nunca! – de ser ele mesmo. Chegava a pensar que poderia passar a vida sem experimentar as aventuras que até mesmo Giovanni, servo do palácio, exibido e folgazão, podia viver... Giovanni lhe contava, inclusive, detalhes inimagináveis das peripécias em que se envolvia nas horas caladas da madrugada. Mas ele, nobre que era, não podia se dar tais prazeres. Restava-lhe somente, então, aquela oportunidade de – escondido por trás de uma máscara – ser alguém como jamais ousara.
Naquela madrugada, podiam-se ouvir as passadas vigorosas de Silvestro no percurso da ponte. Mas o que despertava a atenção dos poucos passantes camuflados era o seu traje: o filho do doge – para não deixar à mostra sua identidade – vestia calça e casaco tão largos que poderiam fazer crê-lo gordo. Sua indumentária também tinha grandes babados no peito. Debaixo da máscara ainda revestiam seu rosto tintas coloridas, que o tornavam um ser peculiar, uma figura diferente das outras que habitavam a Veneza comum. Vestido daquele jeito, na incógnita das horas, Silvestro Valiero jamais poderia ser reconhecido.
A noite estava cálida, e um reflexo azulado cobria o chão da Ponte do Rialto. Por um momento, Silvestro se empolgou com a magia que o envolvia tão estranhamente naquele momento... Olhou ao seu redor: acima, a lua; abaixo, as águas. E, de repente, surgiu diante de seus olhos uma princesa debaixo da máscara! Olhou-a detidamente e pouco pôde ver dela mesma, já que ostentava vestes tão fartas. O observador só tinha a licença prazerosa do colo desnudo que lhe queimava o olhar... E também dos cabelos louros e esvoaçantes que se soltavam da indumentária na parte da cabeça. O traje da dama tinha um traço particular: era ornado por bolas coloridas. Também chamaram os olhos do rapaz as formas geométricas pretas estampando o alvo cetim da saia rodada... Um instante de eternidade parecia perpassar os seus sentidos quando lhe escutou a voz:
– Quem és tu?
– Sou o desconhecido. E tu, bela dama, qual é a tua identidade?
– Como pode a ti isto importar, se as máscaras nos protegem, e tu mesmo confessas tua incógnita condição?
Se a dama pudesse enxergar o que havia atrás da máscara, veria o rubor que ardia na face de Silvestro. Mas o nobre filho de nobre disfarçou:
– Sim. Não importa mesmo se és uma cidadã veneziana, uma filha de Roma ou descendente dos turcos. Também eu posso ser um estrangeiro, até mesmo um degredado da lei e da sorte... Quem saberá?
A moça nada respondeu. Só fez força para que seu olhar reluzisse mais que as estrelas. E conseguiu: fascinado, o rapaz inclinou-se, encostou-a junto à balaustrada da ponte, pressionou-se contra ela, segurou suas faces entre as mãos e a beijou.
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Silvestro apaixonou-se com o ímpeto avassalador dos facilmente enamoráveis. Era jovem e ingênuo, e se deixara encantar pela jovem de seios fartos e faces rutilantes que encontrara na ponte... Naquela noite, voltara para o palácio exultante. Recolheu-se assim que chegou, mas não conseguia dormir. Foi aí que resolveu procurar por Giovanni, relatar-lhe o fato e pedir ajuda, afinal o servo amigo era tão esperto com mulheres! Talvez lhe ensinasse uma maneira de seduzir definitivamente o coração da bela da ponte... E foi lá, no cubículo que Giovanni tinha como aposento, que Silvestro se abriu:
– Estou apaixonado, Giovanni. Esta noite, na ponte...
Silvestro narrou ao criado os detalhes da inusitada descoberta do amor. Falou-lhe dos cabelos sedosos, do sorriso contido e dos olhos fulgurantes da amada. Disse até que, ao recordar-lhe, podia sentir o seu cheiro e a quentura de sua pele... O servo mordiscava a ponta dos dedos enquanto o escutava, mostrando-se atento a cada palavra, totalmente interessado na história do inexperiente amo, o senhor-herdeiro do poder daquele palácio.
Na segunda noite, ouvindo o conselho de Giovanni, Silvestro levara jóias para a dama. Foi quando ela lhe revelou o seu nome: Nênia. Apesar de estar encantado, o rapaz se assustou, pois este era o nome da deusa romana dos ritos fúnebres, aquela que chorava pelo amado... Mas seu coração se aquietou quando Nênia lhe abriu o seu sorriso mais suave!
E o rito do encontro na Ponte do Rialto se repetiu por três semanas. Na quarta, Silvestro partira para lá decidido a revelar-se: diria à moça quem ele realmente era, entregar-lhe-ia o anel de diamante e a pediria em casamento. Não importava quem ela fosse! Como já dissera Shakespeare, a rosa exalaria menos perfume se tivesse outro nome?... Certamente que não! E isso o aliviava bastante quando pensava que sua escolhida talvez nem se chamasse Nênia. Por outro lado, apavorava-se ao pensar que – sob o proibido subterfúgio da máscara – ela pudesse ser uma senhora casada ou até mesmo uma cortesã... Tudo era possível. Afinal, ele mesmo não era filho do soberano doge e quisera fazer-se passar por um estrangeiro, um sem-nome, um degredado?... Mas Silvestro limpou seu pensamento desses medos e deixou que sua fisionomia esboçasse, novamente, o sorriso que o acompanhava naqueles últimos dias. Toda vez que se lembrava de Nênia, ele se sentia mais importante que o próprio doge e, lentamente, seus lábios se abriam em sinal de felicidade...
Mas, eis que naquela noite, ao ir de surpresa para o local onde encontrava a amada (nem mesmo se confidenciara com Giovanni a respeito), quando se aproximava daquele ponto específico do Rialto, seu rosto se fechou com algo que avistara: Nênia abraçada a outro homem, disfarçado com uma vestimenta de losangos coloridos... O estranho apertava a cintura da moça, que o correspondia, acariciava seus cabelos e o contemplava com um riso solto, uma gargalhada que se espraiava pelo ar e parecia penetrar nas águas do canal!... O rapaz apertou os olhos para ver se enxergava direito a cena, quando a moça e o estranho começaram a se beijar com notável lascívia. Por um instante, Silvestro pareceu enlouquecer. E a noite ficou escura.
No dia seguinte, foi encontrado nas águas do Grande Canal o corpo de um jovem rapaz. Os que contam esta história não sabem dizer qual dos dois morrera. A versão mais difundida, contudo, diz que Silvestro, num ímpeto de loucura, tirara a máscara dos dois, descobrindo no adversário seu próprio servo, Giovanni. Desesperado, suicidara-se em seguida... Quanto à moça, a oralidade veneziana afirma haver sido também uma criada do Palácio dos Doges, a qual – mancomunada com Giovanni, seu amante – e favorecida pelo anonimato da máscara, planejara casar-se com Silvestro para ascender socialmente e beneficiar seu verdadeiro amor, colega de condição. Segundo essa versão, Silvestre não teria aguentado a traição e, atingindo o opositor com sua lâmina, em impulso incontrolável de revolta, o teria atirado no canal. A mesma narrativa dá conta de que Silvestro, por longo tempo, parecera ficar louco na ocasião, mas que – quarenta anos depois – conseguira se recuperar e, como o pai, se tornara um ponderado e inabalável Doge de Veneza!
Qualquer que tenha sido o destino dos venezianos, no entanto, é que – no final – tudo não passou de um capricho da roda das destinações...
Por Sayonara Salvioli
9 comentários:
Que demais, minha amiga e escritora predileta!!! Você criou a sua versão particular da história do pierrô, da colombina e do arlequim da tradição carnavalesca!!! Grande insight, como você diz!
Contexto e narrativa perfeitos!
Bom Carnaval!!
Prezada Sayonara,
Estou encantada pelo seu blog. Sou professora de Literatura e visitei seu espaço por recomendação de um amigo da mesma área de atuação.
Sobre este texto, especialmente, devo expressar o quanto me impressionou a peculiarização de elementos da Commedia dell’arte. Uma beleza o seu texto! Parabéns!
Vc sabe que seu blog é parada o-b-r-i-g-a-t-ó-r-i-a pra mim!!!! E desta vez vc acertou em cheio, pra variar... lindo texto! Pela ingênua docilidade do protagonista, pela linguagem e pela ambientação, é claro!! Afinal, estamos falando de Veneza!!!! e isso dispensa comentários!!!
Fico aguardando o próximo...
Sayonara,
Nos conhecemos rapidamente num evento de poesia. No dia, adorei vê-la declamando! Você é dessas raras pessoas que sabem exercer duas artes difíceis: a de escrever e a de falar bem em público!!! Como dizia a nossa saudosa Rachel de Queirós, isso é raro de se encontrar!
Parabéns pelo texto: muito inspirado! E pelo blog, que é excelente! Voltarei sempre.
Um abraço.
Gostei muito, SAyonara. só uma dúvida: vc se baseou em nomes reais de doges etc.?
Saudações literárias!!!!!!Fazendo uma ponte para o nosso carnaval carioca.Queria saber se vc gosta de alguma escola.Embora esteja sendo comercializado e perdendo um pouco a tradição.Mas o povo continua firme, mostrando seus talentos, se divertindo...Adorei seu texto(como sempre).Pena que li com pressa(meu dia está corrido).Mas não perco uma postagem.Abraço pra vc minha amiga virtual!!!!!!!!!!
Muito legal esse painel que vc pintou! Coisa de outros carnavais!!
adorei essa história de carnaval em Veneza!
Sayonara:
Seu texto me fez lembrar os personagens do Carnaval do meu tempo: o pierrô, a colombina e o arlequim. Falando neles, me vêm à mente também os belos bailes de Carnaval que tínhamos, com fantasias deslumbrantes e concursos que não dá para esquecer. Lamento que o Carnaval no Brasil tenha se tornado essa indústria, com um formato pré-fabricado de folia, tão diferente da que brincávamos na nossa época. Era uma folia descontraída mesmo, sem maiores pretensões. Tanto nos bailes como no Carnaval de rua, havia uma leveza como não se conhece hoje...
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