sábado, 8 de novembro de 2008

Motorista movido a álcool




Cosme era, autenticamente, um motorista movido a álcool. Força de expressão? Não! O álcool era a força motriz de um estranho organismo, um corpo frágil que andava daqui e para ali à base de ingestões seguidas de tragos etílicos. Complicado? Impossível?! Absolutamente, não! Beber sempre foi seu hábito mais sagrado, uma espécie de religião e modo de viver. Tristemente, o álcool era o seu prazer e a sua refeição.
Cosme era um sujeito magro, de olhos esbugalhados, meio manchados de vermelho, e dentes deformados. Quando não estava dirigindo, trazia invariavelmente um cigarro na mão esquerda e um copo na mão direita. Apresentava, também, algumas características que lhe marcavam a conturbada personalidade de bebedor profissional: risada solta, jeito displicente e passadas largas, meio que sem destino ou objetivo.

Cosme trazia os bolsos sempre cheios de cédulas de baixo valor – amassadas, de mau aspecto (arghh!) – e moedas, usadas para comprar suas doses homeopáticas de álcool. Aqui e ali, entre os diversos pontos do itinerário de seus patrões, ao parar o carro, as usava nos botecos que descobria nas proximidades. Não importando onde estivesse, ele sempre achava um. Era incrível: mesmo em locais distantes – onde antes ele nunca estivera –, ele se movimentava com uma facilidade tal que logo encontrava bares, e fazia seus novos e rasos amigos... Muito simpático e falastrão, se enturmava com qualquer trupe que falasse a sua linguagem de copos.

Diferentemente do motorista movido a álcool, era o seu irmão gêmeo: Damião. Este era tímido, reservado e – incrivelmente – não bebia! Isso mesmo: era um empregado-padrão, que nunca negligenciava suas obrigações. Andava sempre arrumado, com a barba feita, apresentando-se com a discrição de seu temperamento assentado. A única semelhança ou interseção entre os gêmeos era a sua sincronicidade em sensações... Aquela conhecida simultaneidade que ocorre, principalmente, com univitelinos: um passa mal e o outro sente. No caso dos dois, toda vez que Damião – que tinha uma saúde frágil (apesar de não beber!) – passava mal, Cosme apresentava o mesmo sintoma. Até onde se sabia, contudo, Damião não sofria as consequências das bebedeiras de Cosme. Sorte a dele, visto que – em caso contrário – não teria mais paz orgânica ou de espírito. Segundo alguns, no entanto, não seria “à toa que ele tinha aquela saúde tão ruim... Talvez fosse por causa dos hábitos alcoólicos do irmão"!

Cosme, na verdade, era um bebedor inveterado de cachaça, mas não desses que ficam cambaleantes, se arrastando e beijando o chão... Não! Ele andava pelo mundo, em sua costumeira alegria, de modo tranqüilo e descontraído. Junto ao volante ou longe dele, nunca deixava perceptível o grau de acometimento etílico de sua corrente sanguínea. Era impressionante como a ingestão contínua da droga alcoólica não lhe afetava as atitudes e, principalmente, os reflexos na condução de um veículo. Ainda assim, certa vez, o patrão o chamou:

– Cosme, assim não dá... Não é preciso nenhum bafômetro para perceber o seu “grau”. A partir de agora, você vai conduzir os veículos da empresa; não vai mais dirigir pra minha família.

E assim foi. O novo motorista da casa, Seu Nicanor, era um senhor cortês, polido, com ares e hábitos sérios, ou seja, não professava a fé da bebida; ao contrário, trazia sempre consigo uma Bíblia: seu alimento era o Evangelho. A patroa de Cosme, embora não desgostasse do antigo motorista, aprovou a nova contratação: Seu Nicanor era um motorista mais formal, dentro dos moldes convencionais exigidos pela profissão: concentrado, sensato e, essencialmente, sóbrio 24 horas por dia!

A rotina da casa pareceu ficar mais tranquila com a chegada do novo motorista: horários ingleses e chofer a postos no automóvel. Nada de “fugidas” para o bar mais próximo, deixando o carro sozinho. Nunca mais houve atrasos ou displicências. E assim tudo correu, maravilhosamente bem, por 17 dias. No 18º, Seu Nicanor bateu com o carro, estando a filha dos patrões, de oito anos, a bordo. Batidinha sem maiores conseqüências, nada grave, mas que constituiu fato suficiente para afastar o novo motorista da função. E para a alegria da menina – que era muito amiga de Cosme – voltava ao cargo o motorista que ela conhecia desde que se entendia por gente.

A verdade era que todos da família gostavam muito de Cosme e, mesmo, o preferiam aos outros que passaram pelo volante da casa. Ele era bom de se lidar, prestativo e bem-humorado, apesar dos problemas que enfrentava na rotina de seu próprio lar: vez por outra, segundo a empregada, lá chegava com os cabelos inundados de Mucilon... A mulher dele – talvez irritada ou com ciúmes da rival cachaça – derramava sobre a sua cabeça todo o conteúdo da mamadeira de Cosme Júnior.


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Probleminhas cotidianos à parte, Cosme retomou as funções em grande estilo e cheio de conversa:

– O Nicanor é bonzinho, coitado... Mas é barbeiro que só ele... Bater com a menina no carro! Vê se pode... Comigo isso nunca vai acontecer!

E não aconteceu mesmo. Cosme jamais deixou seu amigo álcool se apresentar diante da família do patrão. Segundo as pessoas da casa, a sua condição de bêbado era algo que não se percebia do banco de trás: “Vez por outra, um odorzinho desagradável se espraiava pelos ares, mas nada que trouxesse grandes incômodos".
Certamente, o conhecido “bafo” de Cosme não podia incomodar a distância a patroa e a patroinha. Além disso, era minimizado por um estratégico e constante consumo de "balinhas camuflantes"... E outros hábitos pouco ortodoxos do motorista já haviam se modificado com os anos; na verdade, quando fora admitido como “condutor oficial” da família, já fazia uma figura melhor: segundo os amigos, já até adquirira o hábito cotidiano do banho, prática que não adotava antes de trabalhar na casa. Segundo se conta – nos domínios do posto de gasolina onde trabalhava –, certa vez os colegas Bem-te-vi e Pardal o pegaram à força para uma limpeza devastadora: jogaram-no debaixo do chuveiro e aplicaram-lhe o tal “sabonete-do-diabo”. Para quem não conhece, este é um tipo falso de sabão, que, quanto mais friccionado na pele, mais a suja. Falou-se que fizeram a maior festa com o coitado. Parece até que foi a partir daí que Cosme se despediu da abstinência do banho.

Abstinência da bebida, porém, esta Cosme nunca conheceu. Não costumava almoçar ou jantar, mas fazia várias “refeições” líquidas por dia: um cardápio de diferentes aperitivos compunha a sua alimentação. Muito brincalhão, ao chegar à casa dos patrões, sempre procurava pela cozinheira – junto à qual fazia suas investidas –, pedindo-lhe um cafezinho:

– Me dá um cafezinho aí, minha fror.

Fror dava o cafezinho a ele. E ainda lhe oferecia comida, mas ele nunca aceitava. Houve um dia em que a patroa, ao ouvir a voz de Cosme na área de serviço, dirigiu-se até lá, para pedir à cozinheira que servisse almoço a ele. Lá chegando e o vendo sem camisa (a empregada estava tirando uma mancha de aveia do traje de motorista), ficou estarrecida com a magreza de Cosme e exclamou:

– Cosme, você precisa se alimentar e parar de beber. Se continuar assim, você vai morrer!

Mais proféticas não poderiam ter sido as palavras da patroa de Cosme. Não muito tempo depois, se soube que ele fora internado em estado grave. “Assim, de repente?!”, as pessoas se perguntavam. Não tão de repente assim. Na verdade, o álcool foi corroendo o seu organismo aos poucos, como um veneno letal de efeitos de longa duração. Segundo os médicos que o atenderam, seu esôfago estava "regado de sangue"... Na realidade, Cosme resistiu à morte o máximo que um organismo poderia suportar; provavelmente, a medicina refutaria a sua sobrivência, anos a fio, com aquela TAS tão elevadamente absurda!... Os males foram se acumulando e, um dia, numa dessas surpresas cabais da vilã doença, seu corpo – aparentemente sem sequelas – combaliu-se, de uma vez, e caiu por terra. Literalmente.

Depois de uns poucos dias no hospital, Cosme foi enterrado no alto de uma colina. Ao seu lado, em concomitância absoluta, jaz o seu irmão Damião, que havia morrido pouco tempo antes.

Apesar do desfecho fatídico de sua história, Cosme deixou um milhão de amigos e simpatizantes. Sempre que se lembram dele, as pessoas riem, descontraídas, numa espécie de recordação relaxante. Seu jeito alegre e descompromissado fazia dele uma pessoa leve, dessas que nos trazem boas lembranças. Neste caso, também se construiu um emblema: Cosme era o estereótipo perfeito do motorista movido a álcool!

Por Sayonara Salvioli


P.S.: Talvez o leitor que me conhece estranhe o conhecimento etílico aqui expresso (risos), mas é que fui testemunha da história de Cosme... Na verdade, o "Cosme da realidade" era meu empregado: foi meu motorista por dezesseis anos!
Apesar do fato de o protagonista desta história ter combinado, por muito tempo, dois elementos inconciliáveis: volante e bebida, fica aqui o alerta conhecido e compreensível: "Se beber não dirija; se dirigir, não beba!" A respeito, acesse:

18 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom, Sayonara! Sua sutileza nas descrições e contextualizações é impressionante!
Estou sempre por aqui.

Drica Parente disse...

Adoro o seu jeito de escrever!! E esse seu motorista é um personagem impagável!!!!!

Anônimo disse...

Sou visitante quase assídua. Apenas não deixo comentários sempre. Mas este Cosme não pode passar em branco... Que história!

Unknown disse...

Sutil demais o seu texto! Da composição do personagem ao clima da história! Os detalhes, então... Parabéns!!!

Unknown disse...

O texto atinge muito o leitor. E, apesar do fim triste de Cosme, consigo ver no personagem uma aura alegre e engraçada, do jeito que você descreveu ao longo de toda a narrativa.Bacana mesmo!

Anônimo disse...

que motorista mais engraçado, hein?!!! rsrsrs

Anônimo disse...

Sayonara:
Mais uma vez, você trata com maestria um personagem da vida real!
Além de sua extrema habilidade com as letras, tem o dom de captar, com extrema sensibilidade, a alma dos que te cercam! Parabéns!
Estarei sempre visitando o seu blog, para fazer essas lindas e divertidas leituras!

Entre letras disse...

Vc tem saudades dele ne´!?!?Mas uma saudade gostosa e de provocar risos.Bonita a homenagem!!!!!
O fragmento:"passadas largas, meio que sem destino ou objetivo"me tocou bastante(Profundo).Agora!!!!minha "fror" me rancou risos...e o jeito debochado: "fror dava o cafezinh a ele"eu ri mais ainda.Eu fico imaginando ele com aquele ar de malandro(no bom sentido), calmo, encostado a parede, com "carioquês"carregado falando:Oi minha fror!!!Gostei dele sem conhecê-lo.Parabéns!!!Adoro suas postagens....

Prof.Paulo (Paulinho Campos) disse...

Li e reli de tanto que gostei querida Sayonara, que texto delicioso! Viajei, letrária e literalmente, nessa história de vida tão confusa do Cosme quanto bela pelo pitoresco e poético! Mas viajei guiado por você, tão magistralmente que me senti dentro da história e pegando uma carona com o Cosme, passeando por todos os ambientes da narrativa!!!
Não vou me cansar de dizer para você:
PARABÉNSSSSS!!!!
Beijos do seu amigo e fã,
Paulinho

Entre letras disse...

Boa tarde Sayonara!!!!!!Gostaria de ler um texto seu sobre menores abandonados.Se não for pedir muito.Admiro seu talento...Fiz um poema(é antigo)sobre o ônibus 174 e coloquei no meu blog.Saúde e felicidade p/ vc.Henrique

Unknown disse...

Parabéns!Adorei o texto..ainda mais conhecendo o protagonista!(:
Impossivel não admirar seu talento!

Anônimo disse...

Sayonara, querida amiga e poeta,
a perícia com que você domina os caminhos e descaminhos das palavras na construção da história de Cosme é tão agradável de se acompanhar, impossível não ler de novo. Há uma fina ironia que nos deixa num perplexo lugar entre o pasmo e o riso. Parabéns! Gostei muito.

Anônimo disse...

Sou professor de literatura e vi seu pertil no orkut. Muito legal o que vc escreve. Vc é do Rio?

Sayonara Salvioli disse...

Agradeço as leituras e as gentis palavras de meus queridos amigos e visitantes.

Comentários e resposta:

- Para Henrique:
Realmente, Henrique, você captou com muita sensibilidade o subtexto "das passadas" de Cosme, um tanto perdidas na vida... Você também percebeu o tom de "malandragem" do personagem. Em contexto real, ele era assim mesmo como imaginou!... Apenas não era carioca: era do interior do Estado do Rio de Janeiro.

- Para Nathália:
Seu comentário, querida amiga, é muuuito bem-vindo: até agora, é a única visitante que conheceu o Cosme da realidade, sendo "testemunha ocular" desta história!

- Para Marcos Azeredo:
Não, Marcos; não sou carioca, embora também ame o Rio de Janeiro e resida aqui há cerca de sete anos.
Obrigada pela visita e pelo comentário, afinal comungamos o amor pela Literatura! Volte sempre!

- Para Anônimo:
Sinto que você é pessoa querida. Pelo teor de suas palavras, quase posso reconhecer a identidade...
Creio que, na hora em que postou o comentário, tenha acontecido com você o mesmo que se deu comigo, certa vez: a postagem saiu "anônima", sem que eu quisesse.
Ficarei feliz com a sua identificação!

Beijos a todos :)

Unknown disse...

Sempre que seu afilhado dá uma folguinha, passo por aqui. Mas é sempre tão rápido que não p/ deixar comentário. Queria dizer para você e para os outros que passam por aqui, que tive o privilégio de te conhecer quando ainda éramos adolescentes (época do "Sê-tu") e ainda ganhei de presente de 15 anos, um belo texto que de tão belo, andou bastante e hoje infelizmente não sei onde está. Sempre gostei muito do que você escreve e tenho o maior orgulho de ser sua amiga mesmo que distante. Beijos.

Anônimo disse...

Por várias vezes,pude comprovar
o carinho dele por vocês.
Principalmente com sua filha,nas idas e vindas do colégio....
Realmente ele merece fazer parte de suas lembranças boas.
Adoro seu jeitinho de escrever....

Anônimo disse...

Adorei o texto!
Me fez recordar com muito carinho daquela " figura",rsrs...
Parabéns, amiga!!!

Anônimo disse...

Apesar da leveza com que você tratou o tema, fico pensando em como seria bom se o Cosme real não fosse alcóolatra àquele ponto... Mas infelizmente é assim mesmo: os personagens mais interessantes das ficções têm sempre um final triste, por ser marcante, e vice-versa. Muito boa a história!