Texto publicado, em 1999, no site cultural Pátio, no espaço Crônica do Dia, e em 2000 na "Gatolândia", antologia editada pela Blocos.
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Conheci a mulher na vizinha casa dos Santos Abud. Lembro-me bem da primeira impressão que me causou: não me despertou simpatia. Suscitou-me, antes, um sentido de desconfiança, denunciado pela frieza do olhar. Sem querer parecer junguiana, costumo conceber, numa pretensa análise de almas, a grande variedade dos tipos humanos. Meu grande hábito é observar as pessoas, delas buscando intuir a essência do espírito. Assim vou acumulando um arsenal múltiplo de personalidades estudadas. E, estranhamente, aquela mulher desconhecida remetia-me a análises profundas da alma humana.
Era uma criatura opaca, dessas que o viço e a transparência há muito abandonaram. Mulher do povo que era, trabalhava como doméstica e emprestava à vida dos patrões um pouco da sua. Seu dia a dia confundia-se com o dos habitantes da casa, que adotara como sua responsabilidade. Apesar da impressão inicial negativa que me despertou, aos poucos foi ganhando a minha credibilidade.
Em seus sessenta e poucos anos, malfadados pelos maus-tratos do ofício, tinha rosto cansado e pele alquebrada. Trazia sempre um desbotado lenço estampado sobre a cabeça e trajava roupas preferencialmente exuberantes, numa perceptível desproporção e assimetria de cores e formas. Era morena, tinha o rosto achatado e um certo ar inflexível. O olhar era brilhante, porém calculista. Falava pelos cotovelos e, ao que se sabe, tal característica a impeliu, por diversas vezes, à perda do emprego. Essencialmente porque, ao falar tanto, já não sabia se fazer ouvir. Também raramente se predispunha a escutar o que lhe era dito, fator preponderante de irritação da patroa.
Sua rotina começava cedo; iniciava as tarefas da casa nas primeiras horas do dia. Entre ininterruptas narrativas e "uma coçadinha" de cabeça, mesclava seus afazeres. Era estabanada na execução de algumas funções, mostrando-se, porém, inigualável cozinheira. Seus pratos eram verdadeiros petiscos de deuses! Sabia, como ninguém, imprimir ao sabor da comida a prazerosa sensação de paladar satisfeito. O arroz-com-feijão de cada dia era uma verdadeira ambrosia; todos da casa lambiam-se de prazer à hora das refeições!...
Havia dias em que estava estupidamente mal-humorada, debatendo-se em reclamações constantes. Era realmente de causar mal-estar até mesmo à gentil Dona Cândida, que, como seu nome, emanava uma certa placidez de espírito. Esta era normalmente calma e paciente, irritando-se, contudo, com Dona Anísia. Vez por outra, perdia as estribeiras, a ponto de quase despedir a falastrona.
Eu, que convivia no ambiente, passava a me interessar, cada vez mais, pelas estranhas atribuições pessoais daquela senhora. Ela misturava em si qualidades e defeitos que pareciam não combinar. Parecia pouco plausível que uma pessoa tão dedicada ao trabalho pudesse ter aquela expressão no olhar e nos gestos. Também era estranho que, com tanta respeitabilidade pessoal e moral (mostrava elementares princípios de ética), não se deixasse afetar pelo amor da convivência. Dona Anísia não fazia mal a ninguém, mas também não se tomava de amores por aqueles com quem convivia. Talvez sua vida passada de sacrifícios e sofrimentos pudesse explicar aquele jeito avesso.
Confidenciou-me, certo dia, que fora casada com um homem que não gostava de tomar banho. Afora as asquerosas condições higiênicas do companheiro, este ainda a maltratava e atrapalhava... Por causa do fulano, já até perdera "importantes empregos”... Seus filhos viviam longe, e a sua companhia era um bonito animalzinho branco e peludo: um gato angorá chamado Mano. Era esquisita e improvável a relação dos dois. Eu, que nunca estudara animais, vi-me subitamente interessada pela psicologia de ação do bichano. Este acompanhava a pobre solitária na ida e na vinda do trabalho. Dona Anísia morava dentro do espaço da chácara, a cinquenta metros da residência dos patrões. E, apesar da curta distância que a separava do local do emprego, compromissava-se o gato a fazer-lhe companhia, impreterivelmente, pela manhã e à noite.
O gato chegava logo cedo com Dona Anísia à casa dos Santos Abud. A seguir, Mano retornava ao casebre próximo da empregada, onde permanecia por todo o dia. Não se via ou ouvia qualquer sinal do animal, que se mantinha oculto no interior da casinha branca de Dona Anísia. Somente à noite o bichano apontava ao longe, ressabiado, desmascarado apenas pelo olhar ofuscante. Silencioso, prostrava-se sob uma árvore próxima à cozinha, diante da qual esperava, deitado, o retorno da amiga. Noite clara ou tenebrosa (nem mesmo tempestades o desobrigavam da missão, apesar da natural aversão de gatos por água), lá estava ele a perscrutar os passos da companheira, que com ele retornaria, mais uma vez, ao lar compartilhado...
Era profundamente impressionante ver a precisão cronológica do gato, que, na hora determinada e constante da saída da mulher, assomava à casa de seus patrões. Tal cumplicidade irracional (seria realmente?) chegava a assustar-me. Como poderia um animalzinho, com tanta acuidade, compreender e efetuar aquela sistemática de vida? Mano, notadamente, não sabia ver horas e falar, mas marcava o tempo como um humano, além de parecer aveludar, com falas caladas, a vida rústica daquela mulher.
Ainda hoje me lembro com carinho da pobre criatura, que abandonou a casa de meus vizinhos meses depois. Diante de seu natural desapego, ela não se fixava, permanentemente, em um emprego. Tal fato (como tudo nela) impressionava a quem quer que fosse, já que detinha em si algumas qualidades desejáveis. O caçula da casa, inclusive, apegara-se a ela. Acho que entendi o motivo: Dona Anísia imprimia uma certa ordem e segurança ao lar, apesar do quê de insatisfação e afastamento que, desde o início, percebi em seu olhar. Mas ela não criava raízes, simplesmente porque não as tinha em seu espírito. Seu liame era apenas o gato.
Valores e estranhezas à parte, a maior lembrança que tenho de Dona Anísia é a sua incomum relação de amizade. Normalmente, o cachorro é considerado o grande amigo do homem. Todavia, naquele caso, o amigo fraternal era um pequeno felino.
Minha alma de poeta faz-me, comumente, divagar por essa lembrança. Vez por outra, pareço vislumbrar em pensamento o olhar enigmático, longínquo e soturno de Mano... E, ainda que eu viva cem anos, nunca me esquecerei da estupenda história real daquela mulher e seu gato.
Por Sayonara Salvioli
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