foto: W. I
O cenário pode ser a paisagem londrina de Trafalgar Square, a Piazza di San Marco, o Central Park ou um largo do Rio de Janeiro. Não importa onde. Sempre será possível encontrar na realidade, assim como no cinema, a figura mítica da mulher dos pombos... Quem não se lembra, por exemplo, daquela cena do filme Esqueceram de mim, em que a enigmática mulher atemoriza Kevin, que depois estabelece com ela um simbológico laço de amizade?
Essa espécie de peregrina dos animais é uma mulher de semblante pálido e olhar perdido, com características de viventes de rua, a sair por aí como que abandonada da própria vida... A mulher dos pombos de qualquer país destaca-se no meio da multidão justamente por ser aquela que não segue o fluxo dos humanos; ao contrário, para no meio da praça a conversar com as aves, acariciando-as e ofertando-lhes comida. Talvez a solidão humana explique esse subterfúgio das andarilhas sem rumo que parecem ver nas pequenas aves seus parentes mais próximos.
Se você é carioca – ou já viveu no Rio de Janeiro – e sabe do que eu estou falando, provavelmente já deve ter se deparado, num largo da cidade, com a mulher dos pombos que por ali passeia com ares de ermitã fora de contexto. Figura quase saída de uma Commedia delle maschere, ela protagoniza uma espécie de personagem sem rumo, que se mascara e esconde do mundo. Aliás, esta mulher dos pombos versão carioca – envolta em seus mistérios de aparência e personalidade – representa uma bem contemporânea lenda urbana.
Como protagonista de uma boa história, nossa heroína das ruas se diz soberana: Rainha Elizabeth, segundo ela, é o seu nome. E um certo ar de nobreza realmente não lhe falta: além de algo implícito na fisionomia, veste-se com roupas sobrepostas umas às outras: saias longas, blusas de amplas mangas sob casacos pomposos... Ela parece uma caminhante das ruas, mas não uma mulher do povo. É bem verdade, porém, que a primeira impressão causada pela dita rainha é a de um ente fantasmagórico movendo-se por entre a multidão, como se a este mundo já não pertencesse. A primeira vez em que a vi, por exemplo, fiquei profundamente impressionada com a sua expressão vaga, um jeito de quem não está ligada à temporalidade da vida... Rainha Elizabeth abordou-me na rua, olhou-me com olhos de vidro embaçado e falou:
– Quer comprar um lencinho?
E estendeu-me as mãos longas e ossudas com dois ou três lencinhos. No mesmo instante, parei e pus-me a contemplá-la de alto a baixo... Alta, magra, de pele muito alva, ela me lembrava mesmo a ideia de fantasma que povoou a minha mente de criança. Por um átimo, quase murmurei meu espanto ao olhar para o seu rosto branco, branco, parecendo a encarnação própria de um ente de outro tempo, de outra vida!... Deti meus olhos na face estranha e pude perceber que em sua superfície havia uma espécie de pancake ou algo como um creme branco derretido. O que era aquilo, meu Deus? Teria ela saído de um palco de época?! No minuto seguinte, eu estava a fitá-la firmemente, propondo-lhe um de meus costumeiros questionamentos de quando desejo alcançar a alma alheia:
– Por que quer me vender lencinhos? É você quem os faz?
Ela reagiu apenas com um sorriso enigmático, desses que substituem a fala quando esta não quer se fazer ouvir. Eu insisti nas perguntas:
– Você mora por aqui?
Novamente Rainha Elizabeth não se curvou à minha curiosidade. Estendeu-me as mãos com os lencinhos, ainda uma vez, e ofertou-me outro sorriso, tão doce quanto melancólico. Senti um misto de piedade e respeito humano. E não comprei seus produtos, pois acreditei que, se o fizesse, estaria lhe oferecendo algum tipo de esmola. Não me pareceu justo tratar desse modo quem necessitava de outro tipo de ajuda, talvez psíquica ou amistosa. Fixei meu olhar em sua imagem e, de novo, me chamou a atenção seu estilo personal, no jeito e na composição das roupas, as quais, apesar de mal arranjadas, davam ideia de alguma opulência. A respeito, depois confirmei minha impressão, quando fiquei sabendo de seu endereço: um prédio nobre nas imediações do largo que frequentava na companhia dos pombos.
Correm pelo bairro diversos boatos sobre Rainha Elizabeth do Largo... Uns dizem que ela usa assim tantas roupas e mantém o rosto coberto de creme branco porque sofre de uma doença epitelial rara, o que a impediria de tomar sol normalmente. Numa versão dentro da outra, dizem que tal doença seria uma consequência de contaminação pelo contato estreito com os pombos, os quais constantemente trazia ao colo, beijava e aconchegava junto ao peito... Outras pessoas já atribuem suas anomalias comportamentais a um distúrbio de ordem psicológica, surgido com um problema de amor: ela teria sofrido a perda do noivo de muitos anos – um piloto da Força Aérea – que morrera na Segunda Grande Guerra...
Ainda sobre seu suposto e propalado "reinado próprio", disseram-me certa vez que ela ficava feliz quando alguém a chamava de Majestade. Assim, no outro dia em que a vi, quando ela se aproximou, eu lhe disse com ar solene:
– Bom dia, Majestade! Como tem passado?
Foi impressionante a sua reação! Ela colocou, no mesmo instante, um sorriso complacente nos lábios e respondeu:– Muito bem. O czar da Rússia lhe manda lembranças.E afastou-se, sem mesmo me oferecer os lencinhos, não sem antes deixar de me ofertar um novo e amplo sorriso, que parecia me devotar amizade pelo resto da vida, já que eu partilhava do seu sentimento de nobreza.
Houve, ainda, uma outra vez em que a encontrei: sentada bem no meio do largo, próximo ao chafariz, ela estava cercada de pombos por todos os lados... Pensei em aproximar-me, no desejo de falar melhor com ela, talvez até para uma entrevista, uma aproximação mais detida. No entanto, fiquei quase paralisada ao perceber que os pombos interagiam com a sua protetora... Parecia que a comprendiam e – mais ainda – que a amavam! Rainha Elizabeth e seus pombos praticamente formavam uma pintura: os pequenos pássaros pareciam caminhar em seus braços e aconchegar-se na roda de sua longa saia! Ante a visão de quem quer que olhasse, misturavam-se mulher e pombos: não se sabia onde começava uma e onde terminavam outros... Diante de tamanha harmonia, até desisti de aproximar-me. Não, decididamente, eu não poderia influir – com a minha humana pessoa – naquela quase estátua de praça na forma de mulher dos pombos!
Rainha Elizabeth também externa certos medos e reações à tecnologia. Os que afirmam ter ela problema de memória (há também esta corrente) atribuem sua repulsa ao moderno a uma tentativa constante de voltar ao passado. Teria ela um medo exacerbado de entregar-se ao momento presente, já que para ela o amor e a alegria ficaram para trás, num tempo distante... Desse modo, ela teme elevadores e câmeras. Conta-se que, certa vez, reagiu quase agressivamente quando um colegial tentou tirar uma fotografia sua:
– Não faça isso! Vai roubar a minha alma!...
De tempos em tempos, Rainha Elizabeth some das ruas. É quando todos afirmam vê-la muito pouco, quase nada, às vezes nunca. Proclama-se, então, que ela morreu. E a população fica triste: adultos, crianças e adolescentes sentem falta do ente esquálido que por eles passa feito vento... e tão bem representa a fantasia em seu imaginário coletivo!... Rainha Elizabeth é importante no meio em que “figura"; não querem que ela deixe de reinar!
Fazia muito tempo que eu não a via. Mas, determinado dia, minha intuição certeira pareceu avisar-me de sua presença. Estava no largo e, de repente, meus olhos se encheram com uma revoada abrupta, num deslocamento meio apoteótico de pássaros... Depois, novo ajuntamento das aves; dezenas delas aterrissavam em seu habitat urbano, já quase demarcado pelo pouso diário. Ouvi o arrulhar dos pombos que se reuniam no estacionamento próximo, junto à igreja. Virei-me para o lado e vi uma cena que não mais me saiu da cabeça: Rainha Elizabeth - como se no âmago de seu castelo, rodeada de súditos - lá estava a acenar-me, sorrindo-me um sorriso plácido, a ostentar o peso suave de um pombo em seu ombro...
Por Sayonara Salvioli