terça-feira, 10 de setembro de 2024

 

CRÍTICA DE CINEMA | 

POR SAYONARA SALVIOLI


 Ainda que com insipiências, A VIÚVA CLICQUOT é um filme necessário

        A saga admirável de uma mulher precursora, inventiva e corajosa

                                       


Não, não trago aqui hoje a resenha crítica de um clássico. Nem na concepção nem na duração / no timing preciso de tela; falo de uma produção fílmica contemporânea que, em apenas 89 minutos (muito breve para a trama), apresenta  na superfície  uma história que deveria ser maior em oferta ao espectador em diversos sentidos. Afinal, em seu cerne, o longa dirigido por Thomas Napper  A Viúva Clicquot: a Mulher que Formou um Império  busca brindar o espectador com uma história de vida que é uma verdadeira lição. E isso Napper consegue: a produção é um verdadeiro brinde a uma mulher que é lição de inteligência, pertinácia, ideal e visão de negócios.

Assim foi a empresária e industrial precursora que construiu seu império particular na França do primeiro decanato do século XIX:  Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin, eternizada como a Viúva Clicquot, ninguém menos do que a conhecida Grande Dama do Champagne.




Pouco tempo para muita (e boa) história

O roteiro não atende ao chamado da história, que é ótima, no entanto só se consumaria, em toda a sua pujança, num contexto dramático mais narrativo e incitante. E, definitivamente, uma produção de menos de 90 minutos de um roteiro insipiente não alcança a proeza de narrar, com a necessária robustez, uma saga tríplice: um drama familiar, a origem do charmoso champagne francês e o pano de fundo sociopolítico das guerras napoleônicas.

De modo bem diferente daqueles filmes que, por missão, nos prendem à poltrona do cinema por longo tempo [longa-metragens perenes, tais como os icônicos Titanic (exatas três horas de duração), ou  À Espera de um Milagre, em suas três horas e nove minutos de oferta de emoções marcantes, ou, ainda, o formidável A Lista de Schindler, que nos avassala durante o período integral de 3 horas e 15 minutos] este  apesar do approach familiar e simbólico num contexto de história da França, background particularmente atrativo não perfaz um ritmo na medida da (originalidade da) trama.

Trata-se de uma cinebiografia que requer reforços, pois sua temática, mais do que polêmica, é necessária. E vibrante na sua essência, já que a Viúva Clicquot foi uma grande mulher e, por tal, merecia um retrato fiel e abrangente na tela grande. Não apenas por estes tempos atuais e seus clamores, mas pelas histórias clamejantes femininas de todos os tempos.   

Mesmo sendo um filme (também) incipiente no seu modus operandi, surpreendentemente se dá um certo processo de empatia, e o espectador se sente atraído por uma mulher extraordinária  que influenciou o seu tempo  e o nosso! Afinal, quem aí não conhece o champagne do rótulo laranja que, por toda a parte, adorna mesas e faz borbulharem, com especialidade, taças cristalinas no Réveillon e outras ocasiões especiais?


Story line forte e fotografia pictórica

Também este não é um texto publicitário; é uma análise fílmica de um produto audiovisual que, se não impacta por uma direção brilhante ou por uma estética inovadora, guarda em si alguns filetes de qualidade, como a consistência da story line e da protagonista, bem como a beleza indiscutível na direção de fotografia. Sim, o argumento é amplo, de excelência e seria possibilitador se o roteiro não sofresse o que se pode chamar de um modesto approach em seu cadenciamento.

Contudo, o longa cumpre o papel sagrado do cinema de fazer vibrar na telona uma história de verdade: mesmo não contada na efervescência (devida) das borbulhas do Veuve Clicquot, o sabor da trama se faz sentir em sua essência. Isto quer dizer, no final das contas, que independentemente da abordagem da história é passada a mensagem ao público da mulher inteligente e poderosa que transforma um produto e seu tempo. 


A trilha real da protagonista / Em cena, Barbe-Nicole

Na pele da atriz estadunidense Haley Bennett, é impressionante a trajetória de Barbe-Nicole Clicquot-Ponsardin a herdeira francesa dos vinhedos Clicquot —, que também o era por ascendência paterna (seu pai foi um rico prefeito de Reims, a mais importante cidade da região de Champagne-Ardenne).

Viúva já aos 27 anos, durante todo o casamento Barbe-Nicole dividira com o falecido cônjuge o gosto por experimento com bebidas, sendo, portanto, uma verdadeira aficionada de vinicultura. O então marido  o dândi Monsieur Clicquot, o instável François (Tom Sturridge)—, que a trama entrega como suicida [em narrada vivência de fragilidade, aparente vício e doença (ao tempo da histórica febre tifóide)], fez questão de passar à jovem esposa sua paixão e à promissora vinícola da família. Após sua morte, pois, a missão com as folhas de uvas e seu primoroso extrato, gota a gota, foi transferida para a sua firme e jovem mulher, que abraçara a causa com ardor, ideal e... engenho. Sim, a Viúva Clicquot tinha um gênio empresarial raro, como bem demonstrou nos anos da década (de ouro!) de sua construção industrial e comercial.

Recusando-se a escutar o sogro, que praticamente ordenara que ela vendesse a propriedade, ela, como que numa intuição de negociante fora do comum, simplesmente deixou de passar o vinhedo adiante para...  o vizinho de sobrenome Moët! Sim, caro leitor, o detentor original da (também) conhecida marca dos nossos tempos Moët Chandon... E assim, com toda a sua antevisão, se dá a história da criação de um império por essa mulher, que não aceita qualquer poderio masculino a interpor-se entre ela e o comando de seu negócio.

Firme, ousada e habilmente controladora, à testa da vinícola familiar, Barbe-Nicole, ante as opressões de uma sociedade patriarcal engessada, resiste em sua solitude e, ao mesmo tempo, sua autonomia de administradora dos bens agrícolas de François Clicquot, bens e produtos esses que ultrapassaram as fronteiras da França para que a grife de bebidas pudesse se tornar o que é hoje. E isto num tempo em que uma mulher assim tinha que enfrentar (e vencer!) um tribunal constituído de arbitrários julgadores (todos homens, claro!) a clamarem desrespeitosamente que uma mulher não poderia ficar à frente de um negócio. Uma sociedade determinante de mulheres fadadas à submissão e à derrota pessoal. Pois foi nesse meio e em tempos de guerra que Barbe-Nicole se fez vencedora.

Beleza de cenários I Direção de fotografia digna de nota


A fotografia do filme essencialmente por se passar, em proximidade geográfica e simbólica com a região de Champagne (no nordeste da França, na fronteira com a Bélgica bem ao norte do país) é garantia de beleza e comoção cênica. Com os núcleos de filmagem praticamente centrados na região (vizinha) de Chablis (foco no Chateau Beru), a produção coleciona frames de puro encantamento estético e conceitual; a sofisticação das cenas parece um processo natural (não é fruto de arrojo na direção do longa, absolutamente), mas um reflexo dos cenários artisticamente absorventes: as externas do olhar fotográfico de Caroline Champetier (!). Este sim no viés específico de apuradas lentes reúnem paisagens belíssimas e harmonizadas com o espetáculo local do cultivo da uva, vinha a vinha...  Aí se pratica o tom de uma direção fotográfica de primor. Sem dúvida, o filme atinge fortemente o espectador neste ponto. 


Locações e processos do vinho branco de excelência, sinônimo de elegância

Aqui se dá uma sincronia de cenário com o approach do sentimento dos protagonistas, sinestesicamente voltados para os lindos e frutíferos vinhedos que são a alma daqueles terrenos franceses. Há, a propósito, aqueles que considerem que em nenhuma outra parte do globo se plantam, colhem e borbulham essas frutas simbólicas e cristalinas como na região de Champagne e suas adjacências igualmente vocacionadas ao vinho de borbulhas não por acaso dando esse nome singular à bebida-padrão do charme, do glamour e das celebrações. Sim, numa vivência do chamado “cinema total”, absorver a fotografia do filme é quase como sorver a bebida transformada por Barbe-Nicole em seu(s) precioso(s) processo(s) de aprimoramento do champagne.  


É uma pena que não hajam sido explorados conhecimentos (mesmo rasos) da enologia de Barbe-Nicole, pois isso no tom adequado poderia seduzir o público — o tema é vibrante. Infelizmente, o espectador sai do cinema sabendo apenas que Madame Clicquot foi a criadora do champagne rosé (na verdade, só se passa a conhecer o rosé uma década depois do desenrolar cronológico do filme). Contudo, é justíssima a atribuição de pioneirismo à Viúva que manipulava o nobre líquido propiciador de prazer, pois embora na França se diga que outros produtores contribuíram nos processos — foi Barbe-Nicole a responsável por técnicas como remuage, essencialmente. Pois antes dela a bebida era algo turvo e apresentava excesso de resíduos, sendo por meio do primeiro método que se chegou à limpidez do champagne. A propósito, a viúva inventiva é a responsável também pelo beneficiamento trazido pelo método dégorgement... Tudo isso explica a inegável soberania da grife Veuve Clicquot ainda na contemporaneidade... Barbe-Nicole, ao dar vida e efervescência às deliciosas bolhas do champagne tal como o conhecemos hoje, fez sua marca chegar a valores unitários de garrafa que, na atualidade, oscilam entre  R$690, 00 e R$4.900,00, aproximadamente.

Paradoxos Menções especiais para a produção: os bons acertos | Economia ideológica

As lacunas e a modéstia do script não puderam ofuscar, felizmente, a precisa reconstituição de época, com realística cenografia e figurino fiel. Estes foram pontos altos no filme de Napper.  

Entretanto, uma economia no discurso ideológico (pretendido?) se faz sentir claramente no que tange à questão em si do feminismo (o filme podia mostrar muito mais a potencialidade feminina quando o cerne da trama é comandado por uma mulher de tal naipe). Paralelamente a isso, silêncios e evasões colocam reticências nas cenas denotadoras da bissexualidade (pouco mais que insinuada) de François. O mesmo se diga da performance prenunciada da própria protagonista, Barbe-Nicole, em sua relação aparentemente intimista com a criada Anne, vivida pela talentosa atriz Natasha O’Keeffe.

Nessa seara de sentidos reclusos, o roteiro se retrai e contrai, não concedendo direito ao discurso direto. Falha grave, já que cinema não pode ter economia de sentidos. Isto, aliás, é o contrário do que propôs Bazin.

Prodígios do elenco: a química entre os personagens de Haley Bennett e Chris Larkin

A interação entre Bennett e Larkin foi além do roteiro: os atores se harmonizaram como os vinhos, por assim dizer, com a relação amorosa que a Viúva Clicquot estabeleceu com o seu distribuidor nas terras do czar. Aqui, um perdão pelo spoiler ou, dadas divulgações prévias, o filete de informação dramatúrgica não chega a tanto? 

Da distribuição à expansão de fronteiras ao tempo de Napoleão


E à Viúva Clicquot em todo o seu gênio comercial couberam ainda dificuldades outras, para além de lutar contra intempéries da natureza, em desníveis climáticos, ou amargar perdas de safras inteiras. Extrapolando as experiências ruins e (quase!) o declínio completo do negócio do vinho, a negociante audaz ainda teve que combater as adversidades de uma guerra (!).  E, ainda mais do que isso, usá-la a seu favor. Já pensou, caro leitor e espectador, o que é amargar prejuízos com uma estação hostil e destruidora, ao mesmo tempo em que falta tudo, nos campos e nos lares,   em decorrência de batalhas desoladoras? Pois esse foi um dos cenários que o roteiro (mesmo incipiente e superficialmente) apresentou. E, sim, por isso e por muito mais nas entrelinhas, vale a pena abandonar o conforto do seu streaming e ir até o cinema mais próximo para conhecer esta história!

Quanto às campanhas de Napoleão versus Champagne Clicquot (aqui sem qualquer oferta de spoiler), fica a ressalva elogiosa à comerciante revolucionária que, num inóspito âmbito de destruição, foi capaz de fundar um império. Sim, a saga e as safras Clicquot se desenvolveram e frutificaram no bojo dos anos implacáveis das Guerras Napoleônicas!... Destaque neste ponto, especificamente, para a campanha da Rússia, onde as tropas do lendário general francês foram abatidas pelo exército do czar... 

Foi quando a invasão comandada por Napoleão Bonaparte ameaçou o negócio do champagne, simplesmente porque atingiria/impediria o consumo da clientela-mor de Madame Clicquot, representada pelos figurões nobres russos.  Contudo, apesar do clima bélico impeditivo (comprar e beber o líquido do país oponente era um acinte pátrio), ainda assim a Viúva Clicquot negociou com Alexandre I e venceu a batalha das garrafas, fixando para sempre seu rótulo na economia francesa. 


E as borbulhas do vinho branco nobilíssimo estouraram no ambiente hostil da derrota napoleônica para a Veuve Clicquot — esta, opostamente, a literal celebração da vitória, delineando a formação de seu próprio império.

Em última análise fílmica, tanto aqui se disse sobre a estrela da produção, que fica fácil concluir que, apesar das inconsistências, o longa cumpriu o papel de uma cinebiografia: fazer o espectador se interessar pela história de vida do(a) protagonista. Nisso, o filme do britânico Napper cumpriu a missão.

E, acima de tudo, A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império mostrou ser um filme importante para a sociedade e a Sétima Arte como testemunho, pois afirma e reafirma a força sublime da mulher vencendo desafios até mesmo em tempos impensáveis para o (verdadeiro) feminismo. A cinebiografia é um depoimento autêntico do feminismo real — aquela condição soberana que faz de uma mulher o centro do que ela deseja, irremediavelmente, com a capacidade absoluta que tem, se assim o desejar, de pôr todos a gravitarem ao seu redor(!). E brindar a esse poder resoluto e inconteste! Sim, ser feminista não é menos que isso. 

A Viúva Clicquot – A Mulher que Formou um Império | Widow Clicquot

EUA, 2023, 89 min
Direção: Thomas Q. Napper
Elenco: Haley Bennett, Tom Sturridge, Chris Larkin, Ben Miles, Anson Boon, Cecily Cleeve, Sam Riley e Natasha O’Keeffe
Roteiro: Christopher Monger e Erin Dignam (baseado no livro A Viúva Clicquot – A História de um Império do Champagne e a Mulher que o Construiu).

Distribuição no Brasil: Paris Filmes

Sayonara Salvioli é escritora, dramaturga e roteirista, com formação acadêmica - Graduação em Roteiro de TV e Cinema, Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Literatura Comparada e MBA em História da Arte e da Cultura Visual. 


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Com direção magistral e estética inconfundível, Tarantino suplanta a si próprio em ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD

Por Sayonara Salvioli


O filme é uma produção de 2019 (coparceria entre Estados Unidos e Reino Unido) e ganhou os holofotes esperados – até pelo próprio tema – por ocasião do Oscar no ano seguinte. No entanto, ERA UMA VEZ EM HOLLYWOD, uma obra-prima de Tarantino, prova a cinéfilos, críticos e espectadores por que é um daqueles filmes atemporais... 

Em princípio, realço aqui uma condição de cinéfila convicta: assistir a um filme de Tarantino será sempre vivenciar o “Mito do Cinema Total”, de Bazin. Seria este um modo mais do que realístico de vivenciarmos a cinematografia. De acordo com o teórico francês, isso significa o máximo que um filme pode conseguir com um espectador: leva-lo à esfera de uma vivência tão absoluta da telona, que é como se entrasse nela, numa espécie de consumação sinestésica do filme. Desse modo, haveria uma “sensação total”, a qual se afiguraria como uma paralela duplicação de realidade.

Pois bem, na minha opinião, Tarantino alcança essa proeza em seus filmes de época. Assim também foi com Pulp Fiction (USA, 1994). E a obra fílmica recriada no ambiente dourado de uma Los Angeles em seu apogeu – é a meu ver um novo retrato móvel da teoria de Bazin. Essencialmente porque Tarantino, mais uma vez, glocaliza a plateia  no exato universo pintado na tela! O cenário de seu universo ficcional é tão refletor de tal período histórico-cultural (o escolhido da vez), que nos sentimos presentes à cena, como se participantes de sua ficção bem-proposta. Assim é com o vivíssimo cenário dos Anos 60 de Era uma vez em Hollywood.





Da trilha sonora ao cenário – passando pela iconografia (principalmente a publicitária) – o espectador é convidado, cena a cena, a visitar a época e o contexto sociocultural do filme. E isso é simplesmente fantástico! Reafirmo que, para mim, é este um dos principais prodígios cinematográficos do genial diretor – e plenamente consumado no longa que, em 2020,  arrebanhou dois Oscars: o de Melhor Direção de Arte e o de Melhor Ator Coadjuvante. Nas indicações, concorria também às estatuetas de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (principal) e Melhor Roteiro Original, ou seja, recebeu seis indicações.


Além disso, desde a sua estreia – no Festival de Cannes, em maio de 2019 –, havendo sido indicado à Palma de Ouro e ganhando o Palme Dog, foi alvo feliz de nítida aclamação crítica e candidato/detentor de diversas outras premiações. Não por acaso! Além das 10 indicações ao prêmio BAFTA, foi agraciado no Globo de Ouro nas categorias Melhor Filme e Melhor Ator Coadjuvante. Sim, Brad Pitt emblematizou nesta produção! Interpretando o peculiar e charmosamente irônico personagem Cliff Booth –, o arrebatamento do espectador é notório. Seu alcance e sua vibração são tais, que o espectador não raro o vê como ator principal do filme. Sim, Pitt supera facilmente o personagem talhado para o protagonismo nesta produção, Leonardo DiCaprio, na pele do (fictício) ator hollywoodiano Rick Dalton. Pitt faz o seu dublê, mas acaba superando em muito o magnetismo do personagem principal, roubando a cena estupendamente. Tanto que venceu todos os prêmios praticamente: também o Critics’ Choice Awards e, ainda, o SAG Awards.



Bom, a “apologia” de algumas das minhas considerações anteriores nesta resenha, por si só, já ressalta a justa premiação do filme por tantas “bancas de arte”. Tarantino também arrematou os títulos de Melhor Filme do Ano pela AFI Awards; Melhor Filme, melhor Roteiro Original e Melhor Design de Produção (C.C.A.). E é esse quesito de Design de Produção que vai ao encontro, propriamente, da escolha da majoritária Academy of Motion Picture Arts and Sciences por sua Direção de Arte, reafirme-se. Dos detalhes de propaganda na TV do período à abordagem dos cenários (e dos transeuntes, dos veículos, etc.) nas ruas, tudo é apresentado ao espectador como sendo um empréstimo de realidade. E assim foi a primorosa direção de arte: da estética geral aos detalhes de recriação (de revistas, “reclames”, objetos, cartazes e produtos mercadológicos da época), é impressionante o talento do genial Quentin Tarantino em apropriar-se cinematograficamente de outras lentes do tempo.

E esse tempo revisto pelo diretor faz passar, panoramicamente na tela (inclusive de nossa imaginação), os memoráveis "Cowboys" do mais tradicional Faroeste, o Spaghetti Western satirizado na trama, o Kung Fu de Bruce Lee e, de modo pictórico, o universo Flower Power da década inesquecível, tudo, tudo pintado em tintas de uma realidade vibrante não mais retornável. 

E o elenco, lançando lume ainda mais ao filme, traz ninguém menos que o astral Al Pacino, que faz na trama o personagem Marvin Shwarz. Daquele jeito todo dele! 


Já da presença da interpretação feminina, a força vem da australiana Margot Robbie, que encontra bela consonância física na personificação de Sharon Tate – a triste protagonista do contexto trágico que, supostamente, o argumento do filme intentou recriar. A atriz fica muito bem na tela, principalmente nas cenas de metalinguagem do longa. Aliás, Tarantino também consolida muito essa proposta – de um filme dentro do filme – em vários momentos da produção. Faz isso precisa e emblematicamente!


Para além da dimensão das personas do filme, de sua já dita e bem-fadada direção artística e de sua configuração perfeita de realidade, está um olhar filosófico-reflexivo enviesado na mensagem cinematográfica: há nuances de insinuação e denúncia nas bases do que teria acontecido em torno da fatídica noite de agosto de 1969... Você reparou nas falas colocadas na boca do personagem Cliff (e suas entrelinhas)? Mais do que isso, prestou atenção aos diálogos entre Sharon e seu ex-namorado, o cabeleireiro Jay Sebring (Emile Hirsch), propostos sugestivamente pelo roteiro?

De resto, é preciso destacar – no contexto das personalidades da trupa hediondamente assassina – o horror em cena destacado pela horrível persona (no filme modificada nominalmente) Susan Atkins, vivida no longa por Mikey Madison. Na triste realidade que foi o assassinato cruel da atriz Sharon Tate [esposa do enigmático diretor Roman Polanski (Rafal Zawierucha)], foi Atkins quem desferiu os golpes – principal agente da consumação horrenda de que foi mentor o psicopata Charles Manson. Se você ainda não viu o filme e não conhece a história real por trás da trama fictícia, sugiro pesquisar sobre o caso policial Família Manson/ Tate-LaBianca.

Para finalizar essa resenha, me valerei de algo que me comoveu – imensamente! – e fecha, com chave de ouro fidedigna, a produção de Tarantino centrada na Hollywood dos Anos Sessenta. Foi simples e maravilhosamente poético o enfoque final do roteirista/diretor: Sharon Tate não morre na sua versão... Tarantino prefere deixá-la viva e apostar numa realidade alternativa para a sua figura, meio que a mantendo numa espécie de “feliz e propícia bolha da ficção”... A despeito de toda a configuração contextual e do momento histórico do crime, o filme acaba como se a tragédia não tivesse acontecido. Nas tintas de sua telona, o diretor propôs um outro desfecho, em que os brutais assassinos da realidade de 69 – liderados naquela noite por Susan Atkins – fossem combatidos antes que pudessem chegar à casa da mulher de Polanski. E na Hollywood tarantiana Sharon permanece linda, jovem, viva e esfuziante!... Perenemente – nas raias do que a ficção pode proporcionar, já que é livre para fazer algo acontecer, para “carimbar a realidade”, para eternizar o que bem quiser... Poesia pura! Sim, Quentin Tarantino com isso me ganhou e surpreendeu mais uma vez. Na verdade, mais do que sempre.





domingo, 9 de junho de 2019

A TRÍADE ELEMENTAR DE MESTRE KELVIN





A TRÍADE ELEMENTAR DE MESTRE KELVIN



Em tempos antigos, junto à costa noroeste da Europa, vivia uma civilização bastante socializada e desenvolvida. A organização de sua sociedade era tal, que raramente havia conflitos de família ou grupos. Todos viviam em harmonia com a natureza e com os irmãos de nação. Mais do que isso, ainda: nunca houvera uma só guerra civil naqueles domínios.




Pois bem, lá havia construções rochosas com cobertura de palha e similares, e uma  área centralizadora, onde funcionavam a Casa do Governo, um mercado de víveres e uma espécie de Fórum. E havia uma praça circular, cercada de pedras, onde funcionava uma Escola de Ábaco – lugar onde se ensinava Aritmética e Raciocínio Lógico aos educandos. Bem ao centro, um púlpito, onde mestres também pregavam para os discípulos ensinamentos de Botânica, Filosofia e Linguística.

O mestre principal daquele pequeno Ágora – como viria a existir na Grécia tempos depois – era um homem alto, muito magro e meio corcunda, mas com uma força tal no olhar e tanta vida nas palavras, que – durante o percurso suave e belo de sua oratória – era como se até as pedras do lugar ganhassem vida e, paradas em sua estática, se pusessem a ouvi-lo, extasiadas com tanta sabedoria!...

Mas não era apenas sabedoria que emanava das palavras de Mestre Kelvin; havia amor e caridade em suas lições. Estas eram tão profundas e verdadeiras, que poderiam – se aplicadas na vida em sociedade – tornar aquele pequeno país uma grande nação, talvez até um reino capaz de agregar várias civilizações.

Pois bem, Mestre Kelvin estava ali ajudando a formar cidadãos para o seu país, e um de seus ensinamentos mais importantes referia-se ao caráter que todo filho daquela terra deveria ter. Ele dizia às suas turmas de atentos ouvintes:

– O princípio da civilização humana baseia-se numa tríade: Bondade, Honra e Verdade. Quem souber aplicar estes três elementos poderá, em qualquer circunstância de sua vida, até governar o mais conflituoso reino.

No dia em que Mestre Kelvin falou isso à turma de Lórien, ele, Ceridwen e Maedhros ficaram reflexivos por longo tempo, pois desejaram ardentemente alcançar, algum dia, a sabedoria de alcançar e praticar aqueles três princípios, como ensinava o mestre. E, na verdade, com o passar dos anos, eles até se saíram bem – como conciliador, médico e guerreiro, em suas respectivas funções.

Um dia, no entanto, quando o reino estava prestes a entrar em colapso e se anunciava a primeira guerra civil daquele povo, insurretos reuniam-se numa caverna junto à entrada da cidade-reino e conspiravam contra o rei Angrod. Este deveria cair... Acontecia, porém, que o Primeiro-Ministro era, então, o bom e velho sábio dos três discípulos de outros tempos: Mestre Kelvin. E derrubar o rei significava atentar contra a vida dele! Ele poderia mesmo morrer... Quanta ingratidão isso não representaria! De todo modo, os inconfidentes precisariam decidir a respeito: na dominação do reino, que estava iminente, o que aconteceria aos membros do ministério e, sobretudo, ao conselheiro-mor do rei?

Foi aí que Lórien, um dos antigos discípulos, professou:

– Não pode haver dúvida. Se derrubar o trono e ocupá-lo, em regra, significa destituir Kelvin ou, mesmo, destruí-lo, a palavra de ordem está dada!

Nisto, incrédulo e estupefato com a atitude do colega, Ceridwen tentou intervir em favor do velho mestre:

– Esqueceu a tríade, Lórien? Destruir o nosso antigo Mestre será como desfazer a espiral do equilíbrio e atrair má sorte ao reino!...

E Maedhros confirmou:

– Elementar, cavalheiro Ceridwen. – e dirigindo-se a Lorien – Se você derrubar a machadadas a árvore mais antiga da floresta, estará destruindo a floresta inteira!

Contudo, Lórien não ouviu seus amigos e prosseguiu em seu plano de tornar-se rei, mesmo que para isso precisasse matar seu velho mestre. Esqueceu-se daquelas aulas repletas de sabedoria – época em que Kelvin tanto o defendera (a despeito de toda a sua rebeldia!) nos Conselhos dos Mestres – e resolveu praticar um pérfido embuste: qualquer coisa, mentiria ao povo dizendo ser Mestre Kelvin um bruxo cruel das mais arraigadas tradições celtas. Que vergonha! Lórien havia se tornado um mentiroso – e não se importava mesmo de trair e trapacear, desde que fosse para se dar bem... Quanta perfídia para um velho aluno do bom Mestre Kelvin!

Pois bem, chegou o grande dia da batalha decisiva. Antes, porém, das lutas sangrentas e dos saqueamentos planificados –, a rebelião fora deflagrada (tudo fora descoberto! Ah, a justiça do Céu neste mundo! Há... e como há!) e Lórien é que foi para a roda dos condenados: o chefe dos revoltosos deveria morrer na forca! Ceridwen e Maedhros, amigos de toda uma vida, fiéis que eram e lembrando-se do espírito de justiça do Mestre, foram até este e apelaram:

– Ó grande e sábio Mestre Kelvin, deixará seu discípulo perecer na roda dos condenados?

E Mestre Kelvin, do alto de sua sabedoria, redarguiu:

– Livrá-lo-ei da pena máxima, que é a sentenciada pena de morte, e também não o banirei do reino em vista da grande estima que nutro pelo seu pai, o conselheiro Mondrien.

Todos se interrogaram, sem nada entender. Então, uma insurreição daquela dimensão (capaz de derrubar o reino!) era descoberta e... tudo ficaria por isso mesmo? Ele mesmo, Kelvin, iria perder a vida hediondamente!... Como poderia haver tamanha complacência e nobreza de sua parte? Foi quando o velho e sábio professor explicou:

– Caro povo, a pior condenação que pode haver é a da condenação sumária de um indivíduo ao descrédito e ao desamor, essencialmente por ter declinado do ensinamento da tríade superior. Refiro-me não a uma condenação falsa e inventada, arquitetada por embusteiros e fraudadores da verdade, mas a condenação real: aquela visão – única e geral –  que todos têm realmente de alguém. Não a simulada por perfídia! Quem, afinal, espera amor, credibilidade ou justiça de perfidiosos?! Na verdade, se advindos de insurretos desonrados, tais “sentimentos” nem têm valor. Quem, afinal, os quererá? A mim, por exemplo, não interessam os favores ou as falsos sentimentos dos que não prestam. Assim é que Lórien (infelizmente, para ele mesmo) não faria falta a este mundo, mas eu sou diferente dele e, por isso mesmo, decidi conceder clemência ao inconfidente.  Como Primeiro-Ministro e Conselheiro-mor do reino, resta-me, pois, lembrar aqui o que significa a base da tríade que ensinei aos meus discípulos:

- 1- a BONDADE: ninguém perde por ser originalmente bom. Eminentemente porque isso suscita uma proteção natural – a redoma própria dos que estão blindados com a nobreza de sentimentos.  Pode até parecer a uns que ser bom significa ser bobo perante o mundo. Mas, creiam, assim não é. Não será possível a alguém guardar em si o dom da bondade se junto deste também não houver, adjacente, o dom da sabedoria. São particularidades espirituais intrínsecas, e não se pode ter um sem ser dono de outro. De modo inversamente proporcional, Lórien demonstrou não possuir nenhuma bondade e, portanto, nenhuma sabedoria também.  Com isso, estará naturalmente condenado ao que é ruim, e sentimentos ruins constituem uma espécie de autocondenação perene. Não é preciso, pois, aplicar-lhe nenhuma outra pena. E, assim, Lórien – já desvalido em bondade – ao chefiar um motim e tentar passar por cima de seu velho mestre, destituiu-se sobremaneira da segunda base da tríade:

- 2- a HONRA: Lórien desonrou-se ao conspirar contra o rei e, o que é pior, contra o seu professor. Esqueceu-se de que preparar armadilhas e motins,  trair e ferir são atos danosos e próprios dos brutos e desonrados. Quem cultiva a honra presta solene e eterno tributo a seus mentores, àqueles que, um dia, sem ganharem nada em troca, o defenderam. Como mestre, o dito mentor teria que ensinar, impreterivelmente. Mas não precisaria defender os seus discípulos com notado e nobre desprendimento, como sempre ocorreu de minha parte. Pode-se recordar agora que, já naquela época, Lórien demonstrava índole ruim e revoltosa, havendo sido defendido por seu mestre, que pensava poder confiar no bom coração dele. Então, agora, décadas depois, o antigo discípulo arquiteta tão falsa e vil acusação de bruxaria ao seu antigo  professor? Mesmo sabendo que este sempre foi um homem da arte e da ciência? Lórien, pois, feriu o princípio da honraria. Está, portanto, condenado à desonra. A pior de todas: não a imputada ou armada injustamente, mas a verdadeira desonra, aquela que atinge a pessoa mais importante: o humano desonrado, pois ele assim se reconhecerá.

-3 – a VERDADE – Ao intentar prejudicar a mim – e até conspirar contra a minha vida –, sendo ingrato e injusto, Lórien praticou –  acima de tudo – a falsidade e a mentira. Assim, feriu a terceira e tão preponderante base da tríade: a VERDADE, aquele princípio que pode definir quem é um humano, em sua real essência. Pois bem, todos sabemos que tal artífice fora uma cruel inverdade, já que foi algo inventado por um inimigo. Mas, ainda que de tal não soubéssemos, o que Lórien planejou apregoar sobre Kelvin era uma fato? O mestre, de fato, era um bruxo, praticou algum dia bruxarias ou malefícios ao próximo? Ele, Lórien, alguma vez ouvira falar de alguma feitiçaria realmente praticada por Kelvin? E, se ouvira, ele comprovara? Vira, com seus próprios olhos, Kelvin preparar alguma poção ou lançar feitiço a algum aldeão do reino? Com toda a certeza, tal não se poderia sequer mencionar, por tratar-se de absoluta infâmia. Lórien também feriu o princípio sagrado da verdade. 

Portanto, concluíra Mestre Kelvin, eis as três razões pelas quais não se faz preciso condenar Lórien: ele – de coração ruim, desonrado e desonroso, já precisa aguentar, em si, a própria e irrefutável verdade de sua autocondenação. E esta, para ele, é o pior castigo. Eu mesmo não irei condená-lo ou bani-lo daqui por sua traição. Até porque não quero ferir outros, além dele, que têm a minha boa visão e a minha consideração aqui em nosso reino. Apenas me surpreendera haver sido ele um dos maiores malfeitores da história, havendo mesmo conduzido os motinados. Se me perguntassem, algum dia, se eu o consideraria capaz de uma perfídia assim, eu diria que não. Mas tal imagem era uma ilusão – a ilusão sobre os verdadeiros amigos. E isto é capítulo para uma próxima lição.

Estas foram as palavras de Mestre Kelvin para o caso. Nem mesmo uma só a mais! Apenas ficou, para a tradição daquele povo, o teor da história, contada e recontada inúmeras vezes na aldeia original e em muitas outras. Dizem até que – tempos e tempos depois – fora essa passagem ocorrida na era pré-romana que dera origem, na Grécia Antiga, ao que hoje conhecemos como “AS TRÊS PENEIRAS DE SÓCRATES”. Terá sido mesmo? Quem saberá?...