Com direção magistral e estética inconfundível, Tarantino suplanta a si próprio em ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD
Por Sayonara Salvioli
O filme é uma produção de 2019 (coparceria entre Estados Unidos e Reino Unido) e ganhou os holofotes esperados – até pelo próprio tema – por ocasião do Oscar no ano seguinte. No entanto, ERA UMA VEZ EM HOLLYWOD, uma obra-prima de Tarantino, prova a cinéfilos, críticos e espectadores por que é um daqueles filmes atemporais...
Em
princípio, realço aqui uma condição de cinéfila convicta: assistir a um filme
de Tarantino será sempre vivenciar o “Mito do Cinema Total”, de Bazin. Seria
este um modo mais do que realístico de vivenciarmos a cinematografia. De acordo
com o teórico francês, isso significa o máximo que um filme pode conseguir com
um espectador: leva-lo à esfera de uma vivência tão absoluta da telona, que é
como se entrasse nela, numa espécie de consumação sinestésica do filme. Desse
modo, haveria uma “sensação total”, a qual se afiguraria como uma paralela duplicação
de realidade.
Pois
bem, na minha opinião, Tarantino alcança essa proeza em seus filmes de época.
Assim também foi com Pulp Fiction (USA, 1994). E a obra fílmica recriada no
ambiente dourado de uma Los Angeles em seu apogeu – é a meu ver um novo retrato
móvel da teoria de Bazin. Essencialmente porque Tarantino, mais uma vez, glocaliza
a plateia no exato universo pintado na
tela! O cenário de seu universo ficcional é tão refletor de tal período
histórico-cultural (o escolhido da vez), que nos sentimos presentes à cena,
como se participantes de sua ficção bem-proposta. Assim é com o vivíssimo
cenário dos Anos 60 de Era uma vez em Hollywood.
Da
trilha sonora ao cenário – passando pela iconografia (principalmente a
publicitária) – o espectador é convidado, cena a cena, a visitar a época e o
contexto sociocultural do filme. E isso é simplesmente fantástico! Reafirmo
que, para mim, é este um dos principais prodígios cinematográficos do genial diretor
– e plenamente consumado no longa que, em 2020, arrebanhou dois Oscars: o de Melhor Direção de
Arte e o de Melhor Ator Coadjuvante. Nas indicações, concorria também às
estatuetas de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Ator (principal) e Melhor
Roteiro Original, ou seja, recebeu seis indicações.
Além
disso, desde a sua estreia – no Festival de Cannes, em maio de 2019 –, havendo
sido indicado à Palma de Ouro e ganhando o Palme Dog, foi alvo feliz de nítida
aclamação crítica e candidato/detentor de diversas outras premiações. Não por
acaso! Além das 10 indicações ao prêmio BAFTA, foi agraciado no Globo de Ouro nas
categorias Melhor Filme e Melhor Ator Coadjuvante. Sim, Brad Pitt emblematizou
nesta produção! Interpretando o peculiar e charmosamente irônico personagem
Cliff Booth –, o arrebatamento do espectador é notório. Seu alcance e sua
vibração são tais, que o espectador não raro o vê como ator principal do filme.
Sim, Pitt supera facilmente o personagem talhado para o protagonismo nesta
produção, Leonardo DiCaprio, na pele do (fictício) ator hollywoodiano Rick
Dalton. Pitt faz o seu dublê, mas acaba superando em muito o magnetismo do
personagem principal, roubando a cena estupendamente. Tanto que venceu todos os
prêmios praticamente: também o Critics’ Choice Awards e, ainda, o SAG Awards.
E o elenco, lançando lume ainda mais ao filme, traz ninguém menos que o astral Al Pacino, que faz na trama o personagem Marvin Shwarz. Daquele jeito todo dele!
Já da presença da interpretação feminina, a força vem da australiana Margot
Robbie, que encontra bela consonância física na personificação de Sharon Tate –
a triste protagonista do contexto trágico que, supostamente, o argumento do filme
intentou recriar. A atriz fica muito bem na tela, principalmente nas cenas de
metalinguagem do longa. Aliás, Tarantino também consolida muito essa proposta –
de um filme dentro do filme – em vários momentos da produção. Faz isso precisa
e emblematicamente!
Para além da dimensão das personas do filme, de sua já dita e bem-fadada direção artística e de sua configuração perfeita de realidade, está um olhar filosófico-reflexivo enviesado na mensagem cinematográfica: há nuances de insinuação e denúncia nas bases do que teria acontecido em torno da fatídica noite de agosto de 1969... Você reparou nas falas colocadas na boca do personagem Cliff (e suas entrelinhas)? Mais do que isso, prestou atenção aos diálogos entre Sharon e seu ex-namorado, o cabeleireiro Jay Sebring (Emile Hirsch), propostos sugestivamente pelo roteiro?
De resto, é preciso
destacar – no contexto das personalidades da trupa hediondamente assassina – o
horror em cena destacado pela horrível persona (no filme modificada
nominalmente) Susan Atkins, vivida no longa por Mikey Madison. Na triste realidade
que foi o assassinato cruel da atriz Sharon Tate [esposa do enigmático diretor
Roman Polanski (Rafal Zawierucha)], foi Atkins quem desferiu
os golpes – principal agente da consumação horrenda de que foi mentor o
psicopata Charles Manson. Se você ainda não viu o filme e não conhece a
história real por trás da trama fictícia, sugiro pesquisar sobre o caso
policial Família Manson/ Tate-LaBianca.
Para finalizar essa
resenha, me valerei de algo que me comoveu – imensamente! – e fecha, com chave
de ouro fidedigna, a produção de Tarantino centrada na Hollywood dos Anos
Sessenta. Foi simples e maravilhosamente poético o enfoque final do
roteirista/diretor: Sharon Tate não morre na sua versão... Tarantino
prefere deixá-la viva e apostar numa realidade alternativa para a sua figura,
meio que a mantendo numa espécie de “feliz e propícia bolha da ficção”... A
despeito de toda a configuração contextual e do momento histórico do crime, o
filme acaba como se a tragédia não tivesse acontecido. Nas tintas de sua
telona, o diretor propôs um outro desfecho, em que os brutais assassinos da
realidade de 69 – liderados naquela noite por Susan Atkins – fossem combatidos
antes que pudessem chegar à casa da mulher de Polanski. E na Hollywood
tarantiana Sharon permanece linda, jovem, viva e esfuziante!... Perenemente –
nas raias do que a ficção pode proporcionar, já que é livre para fazer algo
acontecer, para “carimbar a realidade”, para eternizar o que bem quiser... Poesia
pura! Sim, Quentin Tarantino com isso me ganhou e surpreendeu mais uma vez. Na
verdade, mais do que sempre.