A TRÍADE ELEMENTAR DE MESTRE KELVIN
Em tempos antigos, junto à costa
noroeste da Europa, vivia uma civilização bastante socializada e desenvolvida.
A organização de sua sociedade era tal, que raramente havia conflitos de
família ou grupos. Todos viviam em harmonia com a natureza e com os irmãos de
nação. Mais do que isso, ainda: nunca houvera uma só guerra civil naqueles
domínios.
Pois bem, lá havia construções
rochosas com cobertura de palha e similares, e uma área
centralizadora, onde funcionavam a Casa do Governo, um mercado de víveres e uma
espécie de Fórum. E havia uma praça circular, cercada de pedras, onde
funcionava uma Escola de Ábaco – lugar onde se ensinava Aritmética e Raciocínio Lógico aos educandos.
Bem ao centro, um púlpito, onde mestres também pregavam para os discípulos ensinamentos
de Botânica, Filosofia e Linguística.
O mestre principal daquele pequeno
Ágora – como viria a existir na Grécia tempos depois – era um homem alto, muito magro e meio
corcunda, mas com uma força tal no olhar e tanta vida nas palavras, que –
durante o percurso suave e belo de sua oratória – era como se até as pedras do
lugar ganhassem vida e, paradas em sua estática, se pusessem a ouvi-lo, extasiadas
com tanta sabedoria!...
Mas não era apenas sabedoria que
emanava das palavras de Mestre Kelvin; havia amor e caridade em suas lições.
Estas eram tão profundas e verdadeiras, que poderiam – se aplicadas na vida em
sociedade – tornar aquele pequeno país uma grande nação, talvez até um reino
capaz de agregar várias civilizações.
Pois bem, Mestre Kelvin estava ali
ajudando a formar cidadãos para o seu país, e um de seus ensinamentos mais
importantes referia-se ao caráter que todo filho daquela terra deveria ter. Ele
dizia às suas turmas de atentos ouvintes:
– O princípio da civilização humana
baseia-se numa tríade: Bondade, Honra e Verdade. Quem souber aplicar estes três
elementos poderá, em qualquer circunstância de sua vida, até governar o mais
conflituoso reino.
No dia em que Mestre Kelvin falou
isso à turma de Lórien, ele, Ceridwen e Maedhros ficaram reflexivos por
longo tempo, pois desejaram ardentemente alcançar, algum dia, a sabedoria de
alcançar e praticar aqueles três princípios, como ensinava o mestre. E, na
verdade, com o passar dos anos, eles até se saíram bem – como conciliador,
médico e guerreiro, em suas respectivas funções.
Um dia, no entanto, quando o reino
estava prestes a entrar em colapso e se anunciava a primeira guerra civil
daquele povo, insurretos reuniam-se numa caverna junto à entrada da
cidade-reino e conspiravam contra o rei Angrod. Este deveria cair... Acontecia,
porém, que o Primeiro-Ministro era, então, o bom e velho sábio dos três
discípulos de outros tempos: Mestre Kelvin. E derrubar o rei significava
atentar contra a vida dele! Ele poderia mesmo morrer... Quanta ingratidão isso
não representaria! De todo modo, os inconfidentes precisariam decidir a
respeito: na dominação do reino, que estava iminente, o que aconteceria aos
membros do ministério e, sobretudo, ao conselheiro-mor do rei?
Foi aí que Lórien, um dos antigos
discípulos, professou:
– Não pode haver dúvida. Se derrubar
o trono e ocupá-lo, em regra, significa destituir Kelvin ou, mesmo, destruí-lo,
a palavra de ordem está dada!
Nisto, incrédulo e estupefato com a
atitude do colega, Ceridwen tentou intervir
em favor do velho mestre:
– Esqueceu a tríade, Lórien? Destruir
o nosso antigo Mestre será como desfazer a espiral do equilíbrio e atrair má
sorte ao reino!...
E Maedhros confirmou:
– Elementar, cavalheiro Ceridwen. – e
dirigindo-se a Lorien – Se você derrubar a machadadas a árvore mais antiga da
floresta, estará destruindo a floresta inteira!
Contudo, Lórien não ouviu seus amigos
e prosseguiu em seu plano de tornar-se rei, mesmo que para isso precisasse
matar seu velho mestre. Esqueceu-se daquelas aulas repletas de sabedoria – época
em que Kelvin tanto o defendera (a despeito de toda a sua rebeldia!) nos
Conselhos dos Mestres – e resolveu praticar um pérfido embuste: qualquer coisa,
mentiria ao povo dizendo ser Mestre Kelvin um bruxo cruel das mais arraigadas
tradições celtas. Que vergonha! Lórien havia se tornado um mentiroso – e não se
importava mesmo de trair e trapacear, desde que fosse para se dar bem... Quanta
perfídia para um velho aluno do bom Mestre Kelvin!
Pois bem, chegou o grande dia da batalha
decisiva. Antes, porém, das lutas sangrentas e dos saqueamentos planificados –,
a rebelião fora deflagrada (tudo fora
descoberto! Ah, a justiça do Céu neste mundo! Há... e como há!) e Lórien é
que foi para a roda dos condenados: o chefe dos revoltosos deveria morrer na
forca! Ceridwen e Maedhros, amigos de toda uma vida, fiéis que eram e
lembrando-se do espírito de justiça do Mestre, foram até este e apelaram:
– Ó grande
e sábio Mestre Kelvin, deixará seu discípulo perecer na roda dos condenados?
E Mestre
Kelvin, do alto de sua sabedoria, redarguiu:
–
Livrá-lo-ei da pena máxima, que é a sentenciada pena de morte, e também não o
banirei do reino em vista da grande estima que nutro pelo seu pai, o conselheiro Mondrien.
Todos se
interrogaram, sem nada entender. Então, uma insurreição daquela dimensão (capaz
de derrubar o reino!) era descoberta e... tudo ficaria por isso mesmo? Ele mesmo, Kelvin, iria perder a vida
hediondamente!... Como poderia haver tamanha complacência e nobreza de sua
parte? Foi quando o velho e sábio professor explicou:
– Caro
povo, a pior condenação que pode haver é a da condenação sumária de um
indivíduo ao descrédito e ao desamor, essencialmente por ter declinado do
ensinamento da tríade superior. Refiro-me não a uma condenação falsa e
inventada, arquitetada por embusteiros e fraudadores da verdade, mas a
condenação real: aquela visão – única e geral –
que todos têm realmente de alguém. Não a simulada por perfídia! Quem,
afinal, espera amor, credibilidade ou justiça de perfidiosos?! Na verdade, se
advindos de insurretos desonrados, tais “sentimentos” nem têm valor. Quem,
afinal, os quererá? A mim, por exemplo, não interessam os favores ou as falsos
sentimentos dos que não prestam. Assim é que Lórien (infelizmente, para ele
mesmo) não faria falta a este mundo, mas eu sou diferente dele e, por isso
mesmo, decidi conceder clemência ao inconfidente. Como Primeiro-Ministro e Conselheiro-mor do
reino, resta-me, pois, lembrar aqui o que significa a base da tríade que
ensinei aos meus discípulos:
- 1- a
BONDADE: ninguém perde por ser originalmente bom. Eminentemente porque isso
suscita uma proteção natural – a redoma própria dos que estão blindados com a
nobreza de sentimentos. Pode até parecer
a uns que ser bom significa ser bobo perante o mundo. Mas, creiam, assim não é.
Não será possível a alguém guardar em si o dom da bondade se junto deste também
não houver, adjacente, o dom da sabedoria. São particularidades espirituais
intrínsecas, e não se pode ter um sem ser dono de outro. De modo inversamente
proporcional, Lórien demonstrou não possuir nenhuma bondade e, portanto,
nenhuma sabedoria também. Com isso,
estará naturalmente condenado ao que é ruim, e sentimentos ruins constituem uma
espécie de autocondenação perene. Não é preciso, pois, aplicar-lhe nenhuma
outra pena. E, assim, Lórien – já desvalido em bondade – ao chefiar um motim e
tentar passar por cima de seu velho mestre, destituiu-se sobremaneira da
segunda base da tríade:
- 2- a
HONRA: Lórien desonrou-se ao conspirar contra o rei e, o que é pior, contra o seu
professor. Esqueceu-se de que preparar armadilhas e motins, trair e ferir são atos danosos e próprios dos
brutos e desonrados. Quem cultiva a honra presta solene e eterno tributo a seus
mentores, àqueles que, um dia, sem ganharem nada em troca, o defenderam. Como
mestre, o dito mentor teria que ensinar, impreterivelmente. Mas não precisaria
defender os seus discípulos com notado e nobre desprendimento, como sempre
ocorreu de minha parte. Pode-se recordar agora que, já naquela época, Lórien demonstrava
índole ruim e revoltosa, havendo sido defendido por seu mestre, que pensava
poder confiar no bom coração dele. Então, agora, décadas depois, o antigo
discípulo arquiteta tão falsa e vil acusação de bruxaria ao seu antigo professor? Mesmo
sabendo que este sempre foi um homem da arte e da ciência? Lórien, pois, feriu
o princípio da honraria. Está, portanto, condenado à desonra. A pior de todas:
não a imputada ou armada injustamente, mas a verdadeira desonra, aquela que
atinge a pessoa mais importante: o humano desonrado, pois ele assim se
reconhecerá.
-3 – a VERDADE
– Ao intentar prejudicar a mim – e até conspirar contra a minha vida –, sendo
ingrato e injusto, Lórien praticou – acima de tudo – a falsidade e a mentira. Assim,
feriu a terceira e tão preponderante base da tríade: a VERDADE, aquele
princípio que pode definir quem é um humano, em sua real essência. Pois bem, todos sabemos que tal artífice fora uma cruel inverdade, já que foi algo inventado por um inimigo. Mas, ainda que de tal não soubéssemos, o
que Lórien planejou apregoar sobre Kelvin era uma fato? O mestre, de fato, era um
bruxo, praticou algum dia bruxarias ou malefícios ao próximo? Ele, Lórien,
alguma vez ouvira falar de alguma feitiçaria realmente praticada por Kelvin? E,
se ouvira, ele comprovara? Vira, com seus próprios olhos, Kelvin preparar alguma
poção ou lançar feitiço a algum aldeão do reino? Com toda a certeza, tal não se poderia sequer mencionar, por tratar-se de absoluta infâmia. Lórien também feriu o princípio sagrado da verdade.
Portanto,
concluíra Mestre Kelvin, eis as três razões pelas quais não se faz preciso condenar
Lórien: ele – de coração ruim, desonrado e desonroso, já precisa aguentar, em
si, a própria e irrefutável verdade de sua autocondenação. E esta, para ele, é
o pior castigo. Eu mesmo não irei condená-lo ou bani-lo daqui por sua traição.
Até porque não quero ferir outros, além dele, que têm a minha boa visão e a
minha consideração aqui em nosso reino. Apenas me surpreendera haver sido ele
um dos maiores malfeitores da história, havendo mesmo conduzido os motinados.
Se me perguntassem, algum dia, se eu o consideraria capaz de uma perfídia
assim, eu diria que não. Mas tal imagem era uma ilusão – a ilusão sobre os
verdadeiros amigos. E isto é capítulo para uma próxima lição.
Estas
foram as palavras de Mestre Kelvin para o caso. Nem mesmo uma só a mais! Apenas
ficou, para a tradição daquele povo, o teor da história, contada e recontada
inúmeras vezes na aldeia original e em muitas outras. Dizem até que – tempos e
tempos depois – fora essa passagem ocorrida na era pré-romana que dera origem,
na Grécia Antiga, ao que hoje conhecemos como “AS TRÊS PENEIRAS DE SÓCRATES”.
Terá sido mesmo? Quem saberá?...