quarta-feira, 6 de maio de 2015

Por Hipócrates!


Disse Caetano que “de perto ninguém é normal”. Parodiando sua fala, Marina diria que não é absolutamente normal qualquer pessoa com a qual conviva e se dê bem. Segundo a própria, aliás, ela atrai pessoas não normais e adoravelmente loucas... Sim, porque os ditos loucos, na verdade, são as pessoas mais criativas e interessantes que conheço, ela afirma.
A coisa é tal que até ao procurar ajuda médica para algum problema, Karina se depara com médicos um tanto fora do senso comum... Como naquela vez em que, sofrendo de fascite e não arranjando tempo (nunca!) para fazer fisioterapia, teve uma nova crise de dores no pé direito... E o pior: sempre na época do Natal!
Era a segunda vez que o problema ecoava em agudos gritos de dor na prévia da festa natalina. E Karina, como sempre, recorria aos médicos plantonistas da época. Daquela vez, por sorte, não procurara nenhum pronto-socorro de madrugada (como era seu feitio) e, assim, conseguira um ortopedista, especificamente. O bom também fora que, assim que adentrara o setor e preenchera a ficha, o médico logo chamou:
– Karina Pereira Flandres.
E a moça se adiantou, adentrando o consultório. Logo se sentou e deu um sorriso de convenção para o médico, que do outro lado falou:
– Senhorita... Karina, o que há? Algum problema?
A mocinha, pouco paciente que era, teve vontade de dizer: não, imagina, gosto de visitar hospitais, ou: senti que se viesse até aqui, poderia conhecê-lo, ou, ainda: a época de Natal me estimula a aproximação de pessoas enfermas, estou aqui como voluntária... Mas ela conteve seus ímpetos pouco admiráveis (Dona Wilma não a educara assim) e disse apenas:
– É que tenho fascite e...
O médico era um completo aloprado e não lhe permitira continuar.
– Ah, sim, fascite plantar... é uma dor própria da fascia plantar. Fasc... vem de facia, portanto, fascite: inflamação da fascia, entende?
Karina só balançava a cabeça afirmativamente.
– Então, como eu ia dizendo, se trata de uma inflamação, às vezes grave e irreversível, provocada por traumatismos de repetição na base da tuberosidade medial do calcâneo, se é que me entende...

Karina dá um riso sem graça, e inquire o médico:
– O senhor não vai examinar o meu pé? É o direito.
– Ah, sim – diz o médico louco, que segura o pé esquerdo da moça e continua a discorrer sobre a disfunção: – Está vendo aqui... essa protuberância... São as forças da tração no ponto de apoio que causam a ite do caso, quero dizer, a inflamação, o que acaba ocasionando fibrose e completa degeneração das fibras fasciais originadas no osso. Entendeu?
Estava claro que Karina não entendera nada, principalmente porque aquele não era o pé acometido. Mas ela sabia que de nada adiantaria chamar a atenção para o pé certo. Já o dissera, e ele fez ouvidos moucos. Então ela ia educadamente assentir que sim quando seu interlocutor, sem absolutamente se importar com a sua opinião, mandou uma seta:
– A obesidade costuma ser uma das causas.
Assim também era demais. E Karina não mais se conteve:
– Que isso, Doutor? Como assim... obesidade? Sou manequim 36! Acho que estou muito bem para os meus dezesseis anos!
– Talvez já haja em seu organismo alguma predisposição para futura obesidade, e neste caso algum ponto de apoio esteja sendo atingido por um tipo de peso concentrado ou coisa parecida...
– Mas como pode haver uma conseqüência de um peso que ainda não existe, doutor?
– Minha filha, você quer refutar as afirmações de Hipócrates nos tomos Das Articulações e Das fraturas?

– Fraturas? Mas não tenho nenhuma fratura no pé!
O médico, agora com ares irretrucáveis de louco inconteste, aloprou de vez:
– Menina, você é muito teimosa! Por Asclépio, Higia e Panacea, eu não estudei pra isso! E nem sou expert em casos de fascia plantar... Minha especialidade é esmagamento!
Karina arregalou os dois olhos já muito grandes. O que aquele louco pensava em fazer com ela?

O aparente doidivanas, porém, por uns minutos demonstrou certa normalidade convencional ao formular sua receita:
– Apesar de não ser essa minha especialidade, vou te prescrever inicialmente – mas veja bem: apenas inicialmente! – a terapia da crochetagem mioaponeurótica.
– ???
– Mas vou já te mandar pro meu colega Paulo de Tarso – e lhe deu um cartão do colega. – Você vai precisar se submeter a duas sessões por semana, ao longo de um período de um pouco mais de um mês, cinco semanas para ser preciso. Apenas se lembre: nada de saltos agulha, nem alimentos condimentados, nem esforços concentrados. Limite suas ações e ingestões nas festas por causa do pré-operatório!
Marina não entendera absolutamente nada. E Doutor João Marcos não explicou o que era crochetagem... A moça desconfiava tratar-se de algum tipo de fisioterapia, algo específico para os membros inferiores, mas não conseguia pensar direito com aquele aloprado lhe impingindo os ouvidos de aparentes impropérios. Mas a paciente se deu por feliz de estar de passar as mãos na receita e poder sair dali... Despediu-se do médico com poucas palavras e praticamente fugiu da clínica. Uma vez lá fora, resolveu pegar na bolsa o cartão do profissional indicado, e quase teve um treco quando leu: Paulo de Tarso Duboc, cirurgião de pés – casos graves e irreversíveis de traumatologia.
Karina não sabia se ria ou chorava, se desconsiderava o ortopedista aloprado ou se desenvolvia um pavor imediato por atendimento de profissionais não indicados... Resolveu, então, que finalmente iria procurar um ortopedista (normal) com indicações, que provavelmente lhe recomendaria um fisioterapeuta também normal para assistência regular. Afinal, essa história de – por uma simples e inicial fascite – ser levada a um atendimento por um especialista em esmagamento e amputação, que, por sua vez, a indicava a um fazedor de cirurgias irreversíveis de pés era mesmo de assustar... até a ela! Coisas que só acontecem com Karina e seu despropositado modo de levar a vida...
Por Sayonara Salvioli