A mão invisível do Guararapes
– De como Marina ganhou um presente e as peripécias
vividas até ir recebê-lo
Marina, ao consagrar-se uma
balzaquiana, recebe um telefonema bem no meio da noite de aniversário.
Do outro
lado do fio de Graham Bell, uma voz familiar:
– Amiga, o meu presente é o seu
afilhado: estou grávida do João Filipe; escolhi você pra ser a madrinha dele –
surpreende Viviane, a eterna Vivi do colegial. As duas não se viam havia uns
onze ou doze anos.
Marina fez estardalhaço. Esse sempre
foi o seu modo de reagir à alegria, à surpresa, ao susto ou ao pranto. Sua
irmã, Colette, sempre diz: “Marina é espalhada”. Mas, além de espalhada e boa
amiga, a balzaquiana nº 1 sabe também como ser uma amiga sumida, dessas que
sobem para uma nuvem de distância e ficam por lá, provisoriamente, longe de
seus entes mais queridos.
Pois bem... Depois do telefonema de
aniversário, Marina sumiu das vistas de Vivi mais uma vez. Mas ambas não eram
muito normais: Viviane tinha a capacidade de sempre tudo entender e ponderar;
era a própria flor da sensatez. Já Marina sempre foi louca mesmo. E as duas
sempre se deram harmoniosamente.
O tempo passa: três anos! João Filipe
já tem mais de dois anos quando Marina marca finalmente a data do batizado com
a amiga. Circunstância meio arrastada, apesar do forte elo das colegas de
adolescência. Compromissos, trabalhos, fatos novos e adiamentos. Mas Marina
sempre soube quando não podia mais adiar uma situação. Desta vez, não era
momento de sair do Rio (ainda menos que das outras vezes não-idas), mas Marina
tinha certeza de que não haveria prorrogação depois do segundo tempo. A
paciente Viviane pedira até seu documento de identidade:
– É porque preciso apresentar na
secretaria da igreja.
Marina entendeu; nem Vivi perdoaria
nova protelação. Mas já estava mesmo decidido que viajaria; Marina podia ser
enrolada, mas nunca fugira de guerra que fosse sua. Se achava que esse era o
seu papel, era capaz até de enfrentar um leão (não duvide!).
Contudo, o acaso – que nunca dá
trégua à nossa protagonista – apronta mais uma das suas... E justo no dia de
viajar para Recife, acontece algo com Marina que quase a impede de ir (ainda
narrarei aqui no blog o episódio, que merece descrição de detalhes)... Mas
nesse momento Marina vence o improvável e corre para o aeroporto em cima da
hora.
Já no Santos Dumont, encontra-se com
sua providente secretária, que lhe entrega as malas (no dia difícil, nem teve
como voltar a casa para apanhá-las). Pegou-as e partiu.
Prestes a atravessar o portão
de embarque, ouve um grito:
– Marina, espere!
Era sua irmã Colette, que conseguia
alcançá-la. As duas se abraçaram. Com expressão meio exasperada, Colette falou:
– Tive um sonho... Premonição. Vai
mesmo viajar?
– Claro, né, Colette! Como não, minha
irmã? Como João Filipe poderá fazer Primeira Comunhão daqui a uns poucos anos?
Colette sorriu aquele seu sorriso de
superior equilíbrio e falou:
– Só mesmo você, Marina, para pegar
um avião, viajar do sudeste ao nordeste do país, para fazer um batizado! – e
riu-se. [Afinal, o que fazer se Deus lhe dera uma irmã assim? Ela sabia que
Marina iria batizar João Filipe mesmo que fosse em Galápagos ou nas Maldivas.
Aliás, quanto mais inesperada a situação, mais chance de acontecer em sua
vida].
É claro que a madrinha levou quatro
malas para ficar três dias. Tudo bem: as malas eram suas. O que ela não podia
levar estava mesmo na bolsa de mão: aqueles óculos emprestados de Colette... Marina
é excêntrica, mas Colette... Ah, Colette!... Aquela lá é personal, brava, uma
fera! Ai de quem perder algo seu: risco de elotrocução pelo olhar! Deus nos
livre!
– Do voo e da chegada de Marina a Recife
Sentada
em sua confortável poltrona, Marina pensou em descansar; nas três últimas
noites só havia dormido por prestação, ou seja, duas horas e meia num dia,
quatro horas noutra noite, três horas na mais recente. Mas eis que um casal
falastrão se posiciona ao seu lado. A mulher a olha e sorri com um
sorriso-de-todos-os-dentes. Marina faz cara de antipática [não lhe interessava,
depois de tanto estresse, estabelecer vínculos de viagem]! Necessitava mesmo,
com todos os seus neurônios, de um sono de ciclos de cinco estágios. Mas a
curta viagem nem daria para tanto... A balzaquiana respira fundo, silente (como
nunca antes). Passam-se dois minutos... lentos. A estranha sorri novamente.
Marina permanece impassível debaixo das lentes dos óculos Emporio Armani. A
mulher, claro, puxou – digo, forçou – papo:
–
Você também é de Recife?
Marina
volta ao seu exercício diário de boa educação, mas uma educação espartana:
–
Não.
–
Ah, é paulista?
–
Não.
–
Hummm... já sei: pelo sotaque, é de Brasília!
–
Não, senhora; sou do Rio.
Não
houve jeito. A mulher queria falar e falar. Marina entregou os ouvidos. E
também para o irmão da falastrona:
–
Ah, não são marido e mulher?
–
Que nada, menina, esse é meu irmão: Aleixinho. Meu maninho, dois anos mais
novo; cuido dele desde criança – disse, com o olhar enternecido e uma repulsiva
fala molhada.
– A
senhora não quis se casar?
–
Querer, eu quis, sim... Ah, e como eu quis! Ah, menina, você não conhece a
triste história de Marinalva Praxedes. Prazer, menina: Marinalva!
–
Prazer. Marina.
–
Ora que nossos nomes combinam! Tão bonitinha, com o nome parecido com o meu...
veja, Aleixinho!
E
Marinalva, Marina e Aleixinho trocaram palavras a viagem toda. Marinalva contou
até o motivo do não-casamento:
–
...Aí, minha filha, o meu noivo fugiu com a noiva de Aleixinho... Uma tragédia
em família no agreste! Coisa de cordel, menina! – E cochichou: – E me mantive
intacta, pra todo o sempre, Nossa Senhora sabe. – Voltando ao alto tom de
brados: – Ele também! – apontando o irmão: Aleixinho também é virgem! – Meio avião
voltou seus olhares, entre comentários ruidosos, aos virgens cinquentenários.
Marina
nem se deu ao trabalho de afundar na cadeira. Já que não pudera dormir,
participar do espetáculo era o de menos. Afinal, tudo aquilo não chegaria a
três horas. E realmente logo estavam aterrissando no Aeroporto de Guararapes.
A
moça bem que tentou se desvencilhar do casal de convictos (ou seria invictos?)
na chegada. Mas a quase xará não deixou, claro. Deu-lhe o braço e fez com que
seguisse com eles até o desembarque. Na hora de pegar as malas, Marina tentou
escapar, mas houve um atraso e as suas não apareciam nunca na esteira... Senhorita Praxedes aproveitou, então, para
tirarem retrato.
–
Vamos tirar uns retratinhos pra marcar esse dia?
E
foi aí que a viagem de Marina começou a ficar séria... A balzaquiana – a essa
altura toda estropiada e mais atarantada que de costume – não teve outro
remédio senão fazer as vontades da mulher. Tira que tira foto daqui e dali!...
Marinalva fez a coitada até atravessar todo o saguão do aeroporto, já distante
da esteira para onde teriam de voltar depois do susto... Sim, um terrível susto!
Não é que, de repente, Marina percebeu que não tinha mais os óculos escuros que
usava?! Sim, os óculos Emporio Armani... Ai meu Deus, os óculos de Colette, os
preciosos óculos que a irmã trouxera de sua última viagem à Europa!... Marina
se agitou e remexeu a gola... Sim, a grande gola de sua estilosa blusa preta. Pensou
para que tanta e tão exótica gola, toda
enrolada, cheia de pano... para os óculos se perderem naquele bolo de
tecido?! Sim, uma gola daquelas jamais seguraria uns óculos tão delicados!... E
valiosos, pois tinham dona:
–
Deus tenha piedade! Estou perdida! Colette vai me matar!
Marina
percebera que, ao tirar os óculos para fazer as fotos, não os recolocara...
Procurou-os, então, pela bolsa, avidamente, desesperadamente... Ai, meu Deus! Descontrolada, a irmã mais
velha – que parecia uma criança amedrontada (mas todos, sem exceção, tinham
medo de Colette mesmo!) – sentou-se no
banco mais próximo e começou a revirar a bolsa... Mas... nada de achar os
óculos! Só encontrou a embalagem. Aí, então, Marina fez algo que só uma mulher
em ebulição de desespero é capaz de fazer: virou a bolsa “de boca pra baixo” em
cima do banco! Senhor, só quem viu uma cena assim tem noção do que é o conteúdo
de uma bolsa de mulher “ejetado” à vista de todos! Olhos curiosos de todos os
lados se voltaram para aquele turbilhão de pequenos pontos, multicoloridos e
desorganizados, de todas as formas e tipos: batons, pincéis, canetas, cartões,
fragmentos de carteira, moedas, cédulas, molhos de chaves, documentos,
celulares, carregadores, câmera, iPod, agenda, microagenda, post-its,
termômetro, escova, pente, prendedor de cabelo, perfume, álcool em gel,
enxaguante bucal, spray de fixação de maquiagem, estica-cílios, drágeas e...
embalagens de óculos! Ufa! Nossa Senhora
das necessidades primeiras! Marina chegou a começar a inspirar e expirar
com uma constância mais equilibrada quando tateou a primeira embalagem e...
encontrou algo! O Senhor seja louvado!
Os óculos! Marina abriu-a e pein-pein-pein-pein: eram os seus óculos
de grau! Puxa!... Mesmo com toda a necessidade que tinha deles, não se
importaria de tê-los perdido para poder achar os valiosos (e imperdíveis)
óculos de Colette! Enfim, a coisa estava feia!... Mas havia, ainda, uma segunda
embalagem, e esta, sim, era a embalagem Armani; abriu-a como quem abre um
tesouro, mas... decepção: estava vazia! O desespero bateu ainda mais forte. E
agora, como faria? Que contas iria prestar a Colette, a irmã mais brava do
Brasil?! E o pior: desta vez nem poderia fazer como de tantas outras: comprar
uma réplica e colocar no lugar sem que a bravíssima percebesse, pois afinal não
existia, ainda, daquele modelo novo à venda no país! Ai, meu Deus, estou perdida!
Com
os pensamentos em polvorosa, Marina atravessou todo o saguão, ante as
exclamações da matraqueira e aquele seu irmão panaca, que ria mansamente de
tudo, todo o tempo, sem motivo. Marina estava roxa de raiva! Tudo por causa
daquele casal esdrúxulo!... A mulher até que era simpática, coitada, apesar de
desregulada... Desregulada, Marina pensou: quem
era ela para falar de alguém que não regulava as próprias atitudes?!
Marinalva
ajudou a atarantada a atravessar saguão e adjacências, por onde procuraram que
procuraram os óculos... e nada! Até que voltassem ao banco, onde a bolsa de
Marina ficou abandonada aos cuidados do virgem sorridente, barrigudinho e
cinquentão. E foi aí que a protagonista da saga do batismo a distância fez o
que se pode fazer nesses casos: sentar e chorar, não sem parar de remexer os seus pertences
espalhados sobre o banco e revirando todos os bolsos internos da bolsa!... Foi
quando Marinalva a cutucou: Marina levantou os olhos e se deparou com Vivi e o
marido, Renato, que haviam chegado para buscá-la.
É
claro que a boa e velha Viviane do Ensino Médio deu aquele sorriso de canto de
boca... Então, não estava acostumada com o jeitinho peculiar da amiga? Apenas
perguntou, já com o riso da placidez:
– O
que houve, Marina?
Balzaquiana
nº 1 então narra toda a saga da chegada ao aeroporto quando se lembra de que
precisava voltar à esteira para apanhar suas malas... Foi quando viu o amigo
recente de quase nenhuma fala lhe trazendo gentilmente a bagagem. Despediram-se
os três, a falastrona até quieta.
Balzaquiana
nº 2:
–
Vamos, Marina?
–
Claro que não, Vivi! Você me desculpe, sei que você e Renato estão esperando, mas daqui não saio, daqui não arredo pé enquanto não
achar os óculos de Colette!...
Renato,
pessimista, não disfarçou:
– Não
vê que não vai conseguir, Marina? Você perdeu esses óculos! Isso já era!
Mas
Marina não se deu por vencida. Quando isto irá acontecer na vida?
–
Espere aqui, Vivi, que vou falar com aquele segurança.
–
Bom dia, senhor. Eu estou com um problema sério: perdi uma coisa muito
importante, uns óculos de alto valor simbólico para a minha irmã e...
– Se
a senhora perdeu, é difícil achar de novo, dona.
Marina
suspirou.
– O
senhor tem um supervisor, não tem?
–
Tenho. É o Seu Lenivaldo. A senhora vai lá em cima: segundo andar, no setor de
resgate, mas lhe adianto: não vi ninguém achar nada aqui hoje, não, senhora...
Marina
subiu como um foguete. Lá chegando, dirigiu-se a um senhor de bom semblante:
–
Bom dia, amigo! Eu poderia falar com o supervisor do setor, o Senhor Lenivaldo?
– Já
está falando, senhora. Em que posso ajudar?
Marina
disse, então, o que buscava, enquanto o homem ouvia, quieto, a sua narrativa
tresloucada. Ao final, com um tom compassado de voz, ele disse:
–
Ah, um óculos assim pretinho, com uns prateadinhos em cima...
Bingo! Marina
respirou aliviada. A descrição daquele detalhe – sui generis para um homem – revelava que os óculos de Colette
haviam sido encontrados pela segurança do aeroporto. A nossa heroína não sabia
como agradecer àquele senhor e a toda a sua equipe pela extrema eficiência e
rapidez no resgate de um objeto perdido. Ao avistar, de novo, o objeto precioso de seus temores,
garantiu ao chefe dos seguranças que mandaria um e-mail
elogioso para a ouvidoria do Aeroporto, destacando a sua competência e boa
vontade.
Marina
deixou Seu Lenivaldo muito satisfeito enquanto Vivi a levava rumo a casa para
ver seu afilhado. No caminho, Viviane praticamente infligiu uma medida à amiga:
–
Marina, você promete que nunca mais vai pegar nada emprestado com Colette?
A
trapalhona assentiu com a cabeça, mas seu pensamento já voava longe... Ela só
conseguia pensar em como o aeroporto recifense podia ter uma segurança tão
eficiente capaz de – em segundos e sem quaisquer vestígios – ser capaz de
efetuar aquela sistemática de ação: resgatar para os donos, antes que larápios
os vissem, objetos perdidos em brevíssimos ínterins!
O
carro encostou na garagem do prédio de Viviane quando Marina fazia seu
agradecimento comovido à mão invisível do Guararapes.
Por Sayonara Salvioli