quarta-feira, 10 de outubro de 2012

CANDICE, A ABELHA-RAINHA

CANDICE, A ABELHA-RAINHA


Seu nome era Candice. Nome estranho, sem dúvida. Porém, ainda mais estranho era aquele bico-de-viúva que ela trazia na testa. Embora fosse uma mulher bonita, aquele desenho em forma de V capilar, tão profundo e bem no meio da fronte, tinha o poder de assustar quem quer que viesse a saber de sua história.

Era uma mulher alegre (alegríssima) em seus trinta e sete ou trinta e oito... por aí. E conservava uma tez bonita. Mais que isso, tinha um corpo de dar inveja às mulheres de Meu Rei, um vilarejo da Bahia. Mas não era só por isso que alimentava fofocas e burburinhos na praça, na igreja e na venda de Dona Alicinha. O que diziam as más – e as boas – línguas era que ela, amásia profissional, já estava no nono parceiro. Amásia pela prática da arte, não pela condição civil, pois nos seus casos a conversa passava sempre pelo cartório. 

Sim, naquela vila de 889 habitantes no fim do mundo, uma balzaquiana estereotipada, usando uma maquiagem brega, com pinta no rosto e brincos esdrúxulos, era o protótipo da casadoura provinciana, um caso típico de colecionadora de maridos. O motivo? Além da natural aptidão de ninfomaníaca, era uma mulher desletrada que fazia das artes do corpo seu ofício de vida. Exercitava o popular "fazer a vida", sem, no entanto, viver numa casa de quengas. 


Candice vivia na sua própria casa – grande, confortável, com oito ou nove janelões na grande fachada pintada de verde musgo. A casa era boa, mas a cor da pintura era feia, de grave mau gosto. No entanto, Candice estava satisfeita, satisfeitíssima com seu lar de parafernálias coloridas e algibeiras cheias. Isso porque, segundo diziam as visitas da mulher (que se aproximavam por puro interesse de conhecer sua vida de perto), algumas coisas chamavam a atenção na casa: a famosa “penteadeira da Candice” – enorme, tomada de perfumes e estojos de maquiagem; o baú de joias, a banheira margeada por uma coleção de essências e cremes; e – pasmem! – sete, oito, dez, treze... bolsas entreabertas lotadas de cédulas, como se podia ver... Bolsas coloridas e bordadas com miçangas... e recheadas! Ela guardava (mantinha) dinheiro assim aos olhos de todos! Mesmo vivendo numa pacata vila, corria permanente perigo de furtos e invasões. E, apesar da sorte de nunca haver tido a casa literalmente invadida por elementos perigosos, era voz corrente que muitos – amigas, empregados, aparentados, visitantes – se “davam bem” ao circularem em sua intimidade com acesso às bolsas cheias espalhadas pela casa.

Corria também à boca solta que Candice teria um cofre escondido – com dezenas de tabletes de ouro!  Tudo começara por causa de um mimo de seu terceiro marido: Aurecindo, o ourives. Certa vez, ele dera à mulher um pendente de ouro 24K inteiramente cravejado de   brilhantes, peça que Candice nunca mais deixou de usar, junto dos outros penduricalhos que carregava nas grossas correntes que davam voltas em seu pescoço. Por causa disso, a casadoura veterana adotou uma coleção de ouro a partir daí. Todos os “da vez”, além de a proverem com uma monumental conta bancária, eram intimados por ela a presentearem-na – no aniversário e nos desaniversários (como diria Carrol) – com mimos reluzentes, preciosos... e áureos!  Joaquina, a empregada de onze anos de casa, apregoava ainda que vivia achando “sacolinhas de veludo com ouro em pó” nos bolsos dos casacos da patroa. 

Na verdade, Candice era obcecada por desejos materiais, desenvolvendo um perfil maníaco que poderia classificá-la como auréfila (quem tem amor ao ouro). E a insanidade chegou a extremos quando a mulher equipou a casa com cama, espelho, aparador e até pia de ouro!





Outra atração da casa era o armário dos falecidos. Construído como uma grande vitrine de madeira de lei, deixava à mostra – pelo vidro frontal – os ternos de todos os maridos, a saber: Rubião, o fazendeiro de cacau; Ariovaldo, o tabelião; Aurecindo, o ourives; Ovídio, o fiscal de rendas; Duílio, o médico; Berilo, o comerciante; Anacleto, o delegado; e Bertoldo, o juiz. E a mulher ainda mandara um marceneiro aumentar o móvel porque pretendia continuar a coleção. De ternos masculinos? Não, de maridos, cada qual a trazer mais benefícios e afortunamentos que o anterior.

A coisa era tal que, no velório do oitavo marido – Bertoldo –, com o corpo do pobre – ou melhor, do rico – ainda quente na sala de visitas, ela falou a Ernestina, sua melhor amiga: 

– Ai, mulher... que não aguento mais tanto sofrimento! Já é o oitavo que me vai... Parece que eles escapolem de mim!... 

E Ernestina:

– 881 – murmurou a amiga, referindo-se ao número de habitantes da cidadezinha... [
Candice matara 8]!

– Como? Não entendi... – fez-se de Joana-sem-braço a assassina sem dolo(?)

– Nada, não – e disfarçou Ernestina, aproximando-se da amiga e a consolando – O que importa é que melhore logo, saia logo desse tormento...

– Ah, Tina... Sei se vou sair dessa vez, não... Estou muito acabrunhada! – e esfregou o lenço nos olhos secos. 

– Você fala assim, mas logo, logo se recupera, minha amiga! Já outras sete vezes passou por isso, e, antes de completar o luto, recebeu proposta e aceitou outro homem em casa! Não há de ser agora que vai amarelar... pois não estou certa?

Candice estava com o olhar parado. Ernestina insistiu:

– Arre, me diga aqui se não falo a verdade? Não vai logo arranjar outro marido? Pare de ficar com esse olhar perdido, mulher! Prefiro a minha amiga serelepe e sestrosa a uma montanha assim parada em cima da cadeira... Fale logo: em que está pensando? Ficou deprimida?

E Candice disparou:

– Na verdade, maltrata-me ainda mais a dúvida... Não sei, ainda, o que decidir sobre o próximo partido, minha amiga... Qual deles poderá me dar uma vida melhorzinha: Adamastor, o industrial ou o embaixador Gastaldo?

Venceu o embaixador. Foi verdade que Candice cultivou uma dúvida muito cruel até decidir. Mas depois concluiu que um homem de mundo lhe traria dividendos em outras moedas. E o destino do novo marido conseguiu ser ainda mais drasticamente acelerado, para pasmo do povo baiano daquela localidade...

Já havia (já?) vinte e oito dias do passamento do antigo marido, o mais recente, Bertoldo,  quando o escrivão de paz Lenivaldo Junqueira professou, para Candice e Embaixador Gastaldo, em tom solene no centro da sala:

– E vos declaro marido e mulher.

Troca que troca aliança, parte-se bolo, toma-se champagne... e Candice expulsa o povo para poder viver a sua lua de mel:

– Vamo, gente, que a noite já vem chegando e quero ficar sozinha com Gastaldo pra dormirmos bem abraçadinhos!

Algumas convidadas momescas roubaram seu quinhão quase permitido de bem-casados, enfiaram-nos em suas bolsas e lá se foram...



Todos, afinal, se foram, apesar de muitos temerem pelo breve (e já condenado) resfolegar do próximo falecido...

Uma vez só, Candice sorriu seu sorriso ornado por dois dentes de ouro – um de cada lado –, aquelas joias bucais estranhas que mais pareciam duas presas de uma tropical Cleópatra.... E Gastaldo? Ah! Este não resistiu às torturas e à mordida (leia-se picada) fatal de Candice!... Famosa por matar os maridos com seus encantos pouco comuns, dando cabo de todos eles em menos de um ano de casamento, desta vez a mulher errou na dosagem – ou acertou em cheio, não se sabe ao certo – e o pobre do zangão da vez sucumbiu mesmo à primeira ferroada!

O vilarejo entrou em polvorosa. Estava claro para todos o poder de fogo da bruxa da paixão (alguns a chamavam assim). Mas matar o marido de amores, escusos amores(?), ainda na lua de mel? Ah, isso era coisa que ninguém conseguia engolir. As vizinhas matraqueiras não saíam da venda da D. Alicinha, a promoverem conferência em frente ao balcão. Diziam:

– Que Candice, que nada! Da pureza ela passou longe! Cândida nem a trisavó dela pode ser! Geração de filhas-de-Eva!

– Filha de Eva qual nada! A mulher é a própria serpente do Éden! É fruto proibido pros homens! 

– Dito e feito! É caírem na sedução dela e beijarem o chão de terra!

– Estranho esse poder dela de matar qualquer marido... Misericórdia!

– Será que ela sofre de algum mal contagioso?

– Ah, não, isso não! Porque assim ela haveria de morrer primeiro!...

– Bem pensado. A circunstância é mais grave, mais enigmática. Há um mistério muito sério na pessoa dessa senhora...

– E já repararam que agora os esposos morrem mais amiúde?

– É verdade! O primeiro morreu depois de onze meses de casamento, digo, acasalamento intensivo.

– E o terceiro, então, coitado, que – depois de seis meses de intensivão – foi encontrado na cama, atravessado no colchão, com os olhos esbugalhados e a boca roxinha?!

– Virgem santa!

– Nem uma coisa nem outra...

– Quero dizer que isso me assusta!

– Está assustado, é? Só porque você é novato na cidade! Se você soubesse, então, como morreu o quinto marido...

– Alguém pode ter morrido de jeito pior que os outros?

– Claro! O quinto morreu de sangramento mesmo, por causa daqueles ferros que ela usa nos coitados... Já viram aquelas correntes e aqueles estribos pendurados perto da cama dela?

– Instrumentos de tortura erótica! 

– E o sétimo, então, esse coitado urrava de dor lá pelas últimas! Uma tristeza!

– Eu, hein?! Credo em cruz! Essa mulher deve ter parte com o demo!

A dona da venda reagiu:

– Não pronunciem esse nome aqui dentro! Além disso, está na hora do cortejo. Não vão acompanhar?

As mulheres saíram, desabaladas, para não perderem acontecimento tão excitante às suas línguas ferinas. D. Alicinha, contida, apenas ficou a observar de longe. Apesar da sisudice, não pôde evitar um risinho de canto de lábio quando viu, à frente do enterro, a viúva, já de braços dados com Adamastor, o industrial. E pensou com os botões de seu armarinho:

– Colecionadora de homens... bruxa da paixão... essa aí é a própria abelha-rainha, isso sim!


Por Sayonara Salvioli