O Chico Anysio
de todos nós
Hoje eu ganhei
um buraco no peito: um vão nostálgico por causa de um artista que tomou seu
último voo. Falo da partida de Chico Anysio, um brasileiro que – ao longo de
décadas – assentou lugar em nossa casa e em nossos corações.
Apesar dos
muitos anos que se passaram, ao receber a notícia da morte do grande gênio, não
foi difícil fazer uma retrospectiva mental a meus tempos de infância e
adolescência, indo encontrar Chico vivíssimo na sala, nos quartos e na varanda
da minha casa de criança. Corri pela grande casa, repleta de televisores por
todos os cantos (a casa de meus pais é muito ampla, e, por isso, eles sempre
mantiveram diversos aparelhos de TV espalhados pela sua extensão). E foi assim
que encontrei Popó na sala, Pantaleão na varanda, Salomé no quarto de hóspedes
e Bozó no meu quarto. Lá fora, bem além do quintal, estava Bento Carneiro,
ensaiando seu voo eterno por aquelas paragens!... Esfreguei os olhos para
acordar de meu transe, mas em vez de me afastar daquelas imagens alegres do
passado, visualizei ainda um desfile de figuras tão familiares quanto
simpáticas: Tavares, Coalhada, Azambuja, Painho, Véio Zuza, Alberto Roberto,
Santelmo, Apolo, Haroldo, Nazareno, Jovem, Justo Veríssimo, Profeta e Professor
Raimundo... Todos entrelaçados num filete translúcido de infinito, como se numa
bolha de cristal-goma permanente, espraiando-se pelos ares úmidos da minha
lembrança!...
Hoje muito se
fala em TV fechada, mas eu sou do tempo e da teoria de uma TV – antes já
interativa, em sua mediação – fazendo história no Brasil das últimas gerações,
atribuindo-lhe identidade sociocultural e marcas de época. Nas décadas de 70 e
80, não teve infância quem não assistiu ao Sítio do Picapau Amarelo e não viu
Chico City às quintas feiras!... Eu – aficionada de carteirinha – estava lá,
firme e forte diante da telinha, inseparavelmente atrelada aos fenômenos,
modismos e sucessos de ocasião! E Chico Anysio vivificou tudo isso: passou
mensagens, representou o público, direcionou sátiras e fez rir e refletir o
povo, reflexo maior de seus desafios de humorista politicamente engajado. Com a
Salomé, por exemplo, questionava os atos do presidente João Baptista de
Oliveira Figueiredo. Assim era que seu humor tinha o poder de fazer pensar, de
ajudar o telespectador a buscar reflexões importantes... Ora, a Salomé de Chico
Anysio nem mesmo tinha este nome por acaso: representava – como nas escrituras
– alguém que poderia “pedir a cabeça” de João Baptista (o Presidente),
ilustrando com sutileza o poder que o povo poderia ter sobre seu governante-mor,
inquirindo-o e condenando-o por possíveis desmandos. Era o humor inteligente e
participativo na televisão, dando o tom de uma sátira bem engendrada e que, com
leveza, denunciava problemas sociopolíticos. Desse modo, Chico não apenas
entretinha o telespectador, mas o fazia pensar. Tanto que tamanha identificação
com a população gerou, já naquela época, uma ação interativa entre público e
TV: as pessoas enviavam à produção do programa, constantemente, recados e
pedidos ao Presidente via Salomé, que os repassava ao destinatário ilustre em
voz nacional.
O grande criador
e humorista, na minha opinião, foi também um dos cérebros que – num importante
papel mediador exercido junto à difusão da TV – contribuiu para o processo
conhecido como quality television,
que representa a possibilidade de programação televisiva com qualidade. A
propósito, frequentemente refuto discursos academicistas nesse sentido,
lembrando a meu interlocutor que a televisão brasileira, nas últimas décadas, concentrou
um repertório suficientemente expressivo de obras criativas para que constitua
fenomenologia digna de análise. De aprofundada análise, enfatizo. Na TV Globo,
nos programas de Chico Anysio, por exemplo, vimos isso: um entretenimento
saudável e com raízes em cultura e informação participativa. Aqui se ilustrem descontraídos
jogos de raciocínio, conteúdos de sátiras habilíssimas, a intertextualidade com
clássicos e também o teor da “Escolinha do Professor Raimundo”, com falas e
personagens voltados a conhecimentos das mais diversas áreas do saber, ou seja,
um quadro/programa com referências importantes para o público, entre alusões a
ícones da história, das artes e das ciências.
Em tais quadros
e personagens, TV Globo e Chico Anysio mostravam que é possível alcançar o povo
com conteúdos bons, leves e que nada têm a ver com o popularesco. Nessa linha,
muito se viu em
Chico Anysio Especial , Chico Anysio Show, Chico City, Chico
em Quadrinhos, Chico cronista no Fantástico, Chico Total, Chico no voo rasante
de Bento Carneiro, Chico na novela das 9, Chico trazendo Salomé ao Zorra Total...
Chico Anysio em todas as formas e de todas as cores, em todas as falas e seus
muitos amores, nas mais de duzentas faces de sua arte gentil!... Chico praticou
arte por toda a vida, creio que profissionalmente desde os quinze anos de
idade. Quer no rádio, no teatro, no cinema, nas artes plásticas ou na
literatura, ele brilhou todo o tempo com seus feitos e suas criações. Mas foi
através da televisão, com a engenhosa e identificável tipologia humana de seus
personagens, que ele se fez conhecer e amar em toda a extensão do país.
E não somente a
coletânea personal de Chico, como também – e essencialmente – a sua própria
personificação de humorista foi conquistando a receptividade do público, que o
acolhia na rotina como a um ente querido, alguém da família mesmo! E talvez
seja por causa dessa aderência de ídolo familiarizado que os brasileiros a ele
irmanados na Globo de seus lares estejam se sentindo órfãos, um tanto desolados
com a sua partida... Chico Anysio leva consigo um pouco da nossa alma!
Dói também, e
muito fortemente, o fato de ver um gênio sumindo de nosso cenário, alocando-se
sabe lá em que estância do espaço sidéreo das grandes constelações!... Neste
mundo de pessoas comuns, a dor se faz grande quando parte alguém que era um
astro, condensando – numa só personalidade humana – o humorista, o ator, o
escritor, o roteirista, o artista plástico, o compositor, o radialista, o
comentarista, o diretor, o showman!... Afinal, quantos Chicos existiram entre
nós? Já não falo dos personagens, mas dos vários homens e artistas concentrados
num mesmo ser de vários talentos e ofícios. Realmente não é possível
contabilizar entidades subjetivas, emanadas de um só ente, mas é que Chico
Anysio era sofisticadamente um gênio, um sedutor de almas!
E ele soube
seduzir até o instante último de sua derradeira vontade: o seu decreto de
deposição das próprias cinzas – metade em sua terra natal, Maranguape (CE), e
outra no Projac, sede-mor de sua grande paixão: a TV Globo, onde vivenciou quase
meio século de arte!... A partir de agora, quem estiver caminhando pelo Projac
poderá se deparar, num passo ou no ato simples da inspiração, com eflúvios
mágicos dispersos no ar, com o DNA de um mito enxertado no solo, ante os resquícios
valiosos de um homem muito além de sua condição, porque nasceu, viveu e morreu
artista!... Então, não mais choraremos pelo seu dito fim, afinal quem mais além
do verdadeiro artista poderá adonar-se de uma perspectiva de infinito?...
Por Sayonara Salvioli