O pequeno João era um menino diferente dos outros. Não lhe interessava a pressa das manhãs, quando seus colegas saíam em busca de aventuras. Ele preferia as horas noturnas e seu lazer embalado pelas vozes da leitura. Sempre trocou a companhia daquele amiguinho espertíssimo pela de Monteiro Lobato ou Júlio Verne. O passaporte para as viagens de seus sonhos era o livro, sempre ele, o seu melhor amigo.
Se João não era o melhor desportista de sua classe, uma coisa era certa: no pódio da leitura – no campeonato de Comunicação e Expressão – era seu sempre o primeiro lugar. João divagava pelo País das Maravilhas só encontrável na Terra da Fantasia literária. Foi lá que ele conheceu Vinícius, Quintana, Bandeira, Neruda e tantos outros desses artífices das letras que para sempre lhe iluminariam os olhos. Porém, antes mesmo de se deixar ofuscar pelo brilho da literatura, o pequeno João já irradiava luz própria. Assim era na escola, na igreja, na rua ou em casa. Na família, João concentrava todas as preferências, por sua condição-prodígio e pela verdade sempre estampada no olhar. Sua vivacidade de espírito permitia-lhe muitas proezas, e no íntimo do lar, ainda em sua pouca idade, era capaz de despertar a atenção e a admiração dos grandes, dos chamados adultos, aquelas pessoas que ele deveria obedecer, como estava escrito em algum lugar, ele imaginava. Mas não concordava que deveria obedecer a outros sempre. Aos nove anos, já era um diletante, e isso lhe concedia uma sóbria autoridade de menino imponente.
Diante de tamanha popularidade familiar e social, João desenvolveu uma personalidade muito própria: criava teorias e receitas de vida, código que ele imprimia a si próprio. Até porque, se ele seguia regras, estas adivinham de seu pensamento sempre elevado às nuvens da imaginação!,,. E tão alto João ia em seus desejos e ideologias que ele começou a construir um mundo muito particular. Se na escola ou na rua ele não podia tudo, na sua casa ele mandava! Fez-se rei do próprio reino familiar e ali começou a acreditar que poderia moldar um mundo a seu bel-prazer.
Mas havia um reino, além do que excedia os limites da sua casa, que João também não podia dominar. Era o reino da natureza: aquele conjunto de lago, montanhas, campos esparsos e flores que cincundavam o seu lar, mas que guardavam alguma hostilidade em relação a ele... Aquela história, por exemplo, de o sol bater no seu rosto tão logo chegasse a manhã, na sua opinião, era um desrespeito da natureza! Onde já se viu sol invadir sonho de menino enquanto ele ainda exercitava seus indevassáveis devaneios de criança?
Certo dia, então, João murmurou que não aguentava mais aquilo... Afinal, depois de longas horas de leitura na madrugada, acordar já com o astro amarelo tinindo nos seus olhos era coisa de irritar até criança paciente! E ele nem era nem paciente! Foi aí que o menino proferiu a frase mágica:
– Eu queria ter um quarto sem janela!
Mas aquilo, claro, lhe parecia um sonho passível de existência só em contos de fada, onde os meninos podem ser felizes de acordo com as suas vontades mais coloridas...
João ainda não sabia que o desejo é o maior poder do homem.
Naquele mesmo dia, quando ele voltou da escola, avistou uma cena da qual nunca mais se esqueceria enquanto vivesse. Foi com olhos carregados d’água que ele viu o pai – homem de labor admirável e coração amoroso – com espátula e concreto nas próprias mãos – a cobrir aquele indesejável vão na parede de seu quarto! Mais algumas horas... e o seu primeiro grande sonho impossível estava realizado: João agora era o dono do único quarto sem janelas do mundo! E era só seu, o seu país de magos e poções, a sua Pasárgada, o seu reino particular concedido por João pai, que escutara o seu desabafo-asiração, proferido em voz alta na véspera... A um desejo, o sonho concretizado!
Naquela noite, antes de dormir, João sorriu para as estrelas na sua imaginação. Não precisava vê-las através de uma janela; podia contemplá-las, mais resplandecentes que nunca, na translucidez de seus próprios olhos... Ali, naquela cama de menino, alguém iria dormitar na noite com uma verdade davinciana recém-descoberta pelo coração infantil: os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo! Por isso, o quarto de João não precisava de janelas.
Por Sayonara Salvioli