Quando eu era criança, li a obra Ou isto ou aquilo, da sensacional Cecília Meireles. E me chamavam especial atenção os seguintes versos: É lá que eu quero morar: no último andar. Ora, além do poema na obra específica, eu lia, relia e reencontrava aqueles versos em todos os livros de Comunicação & Expressão (lembram-se desta nomenclatura?) da escola. Havia um, inclusive – de quando eu tinha nove anos – que trazia uma ilustração complementando perfeitamente a idéia dos versos de Cecília: uma menina, provavelmente da minha idade, olhando as estrelas, em meio à altura estonteante de um último andar do que parecia ser o maior arranha-céu do mundo!...
Aquela imagem, em coesão cognitiva com o lirismo daqueles versos, me reportava a um apartamento – situado onde eu não sabia – plantado bem no meio das nuvens! [De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar]. E tal me parecia muito interessante, embora a realidade de meu momento infantil também fosse fantasiosa: eu habitava o mistério de uma casa enorme – cenário perfeito de um filme de suspense –, que tinha um imenso corredor, com portas labirínticas por todos os lados (parecia-me – quando eu saía correndo pelo corredor, sozinha – que de cada porta daquelas saía um fantasma diferente!), com muitos quartos e salas, espelhos, portais, cofres, estantes e livros... Uma grande casa linear, que não necessitava de uma amplitude vertical como a dos versos cecilianos. Ainda assim, aquela página com os versos e a ilustração me detinham, e retinham mesmo minha imaginação, fazendo-na divagar pela cidade distante do reino mágico daquela poetisa que queria morar no último andar!... No último andar é mais bonito (...) É lá que eu quero morar. E eu pensava: eu também!
Seria difícil descobrir (embora eu tivesse contado o número de andares do prédio do desenho e este mudasse de livro para livro) se aquele arranha-céu de literatura aplicada excedia um prédio de uns trinta andares... Seria possível? Nem os anos – décadas – me responderam isso, mas Mestre Tempo não se esqueceu da incógnita. Embora um pouco mais tarde eu tenha me descoberto levemente acrofóbica, o que talvez tenha amainado, por vários anos, a minha fixação por um tal fantasioso andar perto do céu... Mas eis que, um belo dia, visitei um imóvel, e do alto de uma de suas janelas vislumbrei, em divisa tênue, o encontro do mar com o horizonte! [Do último andar se vê o mar]. A paixão foi quase imediata e... resultado: mudei-me para lá! Ou melhor, para cá!
No primeiro amanhecer, acordei com um passarinho entrando por uma fresta ainda não coberta no vão do ar condicionado [Os passarinhos lá se escondem para ninguém os maltratar]; nas primeiras noites, mirei as luzes do entorno: pareciam olhos de íntima metrópole [Todo o céu fica a noite inteira sobre o último andar]; nos primeiros meses, o céu visto dos olhos da cobertura [Quando faz lua no terraço fica todo o luar]; nos meses seguintes, porém, meu olhar começou a buscar um estreitamento com a terra [O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar]. A poetisa era também profetisa, afinal uma condição pressupõe a outra.
De uns tempos para cá, ao visitar lugares de alturas mais razoáveis, comecei a sentir uma certa familiaridade com o que é mais próximo dos espaços lá de baixo: parques, crianças e gentes em seu tamanho natural!... E agora me sinto, de novo, quase que como a menina dos versos de Cecília: a mesma perplexidade ao olhar para as nuvens, porém com um certo estranhamento ao mirar a distância do último andar. Será que é lá (aqui) que eu quero morar?... Parece acometer-me, tardiamente, o complexo de Rapunzel! (risos). Também me vêm à mente consciências bruscas de Ismália!... Porém, consciências... claro! Prefiro, naturalmente, contemplar a lua no céu de um alto bem mais alto que sobre a lua no mar! Mas não tão alto que se avizinhe do céu assim! Restam-me, então, os elevadores e as escadas, pois meus vôos de imaginação parecem me ditar um passeio mais ao nível das gentes passantes, dos gramados e das flores, das praças, dos cãezinhos passeadores, da padaria, da banca e das esquinas. Depois da experiência real do arranha-céu de Cecília, no poema da realidade estou me sentindo como que presa na torre!...
Por Sayonara Salvioli