DESINVENTARAM O RELÓGIO DE PULSO
Todo mundo sabe que Santos Dumont encomendou o primeiro relógio de pulso a seu amigo joalheiro, o francês Louis Cartier, o mesmo da griffe de relógios, fundador da famosa joalheria. Na ocasião, segundo nos relata a história, o gênio da aviação inventara a parafernália ultramoderna porque estava cansado de usar o tal relógio de bolso... Afinal, a antiga geringonça requeria um tempo para ser tirada do bolso, sem contar que muitos modelos ainda tinham uma tampa que precisava ser retirada para que se pudessem ver as horas!... É fácil imaginar que isso não era nada cômodo para quem saía por aí dirigindo máquinas voadoras!
Muito bem, o tempo passou, e parece que as coisas foram revertidas: agora as pessoas deixam de usar o relógio de pulso, e, mesmo com todo o incômodo, preferem abrir a bolsa ou a mochila para tirar o celular e ver as horas!... Experimente, na rua, perguntar a alguém "que horas são"... Verá que a pessoa logo levará a mão dentro de uma bolsa, tateando até achar o celular, a fim de verificar a quantas anda o tempo e responder à sua pergunta! O que aconteceu, afinal: desinventaram o relógio de pulso?! Sim, hoje você pode contar nos dedos as pessoas (privilegiadas, por sinal) que mantêm o uso do relógio; o marcador do celular é hoje o novo design de ponteiros-cronômetros!
E o grande paradoxo disso tudo é que a tecnologia – que, primordialmente, deve servir para tornar as coisas mais práticas – acabou invertendo o jogo dos valores, e, neste caso, traz de volta um hábito antigo de se buscar num bolso ou bolsa algo que, há mais de um século, já se podia trazer, fácil e acessível, visível no pulso!
Lembrei-me que, na infância e na adolescência, eu colecionava relógios e – mais que isso! – via o artefato-jóia como peça fundamental do vestuário e, acessoriamente, um elemento consagrado do modismo. Mas o tempo passou, e – com as novas tendências – temos hoje aparelhos pós-moderníssimos que exercem, entre mil outras, a função de relógio.
Às vezes me pergunto sobre que categorias de pessoas mantêm o uso do convencional relógio de pulso. Mas não posso responder com a precisão britânica de um francês (Cartier... risos), visto que o utilitário ainda se encontra em pulsos mirins com adornos cor-de-rosa, em pulsos aristocráticos abaixo de um rosto sisudo ou em pulsos rotineiros que, na emergência do trabalho, carregam no braço o fiscal das horas!
Paralelamente, não me furto a pensar na plausibilidade de uma diminuição de mercado, já que hoje a humanidade aprecia de tão diversos modos o fascínio do tempo marcado!... Não vemos na atualidade, por exemplo, um modismo tal que mexa em estruturas nesse sentido... E tal nem mesmo poderia se dar! Até porque tal impacto já teve lugar há mais de cem anos, quando uma nova febre agitava Paris: o Santos – protótipo feito por Cartier especialmente para Santos Dumont – havia aderido à reprodutibilidade em círculo nobilíssimo: o novo adereço adentrava os salões da alta roda masculina parisiense (sim, porque o relógio de pulso feminino já tinha sido inventado umas décadas antes)... E o design da obra de Cartier, seguindo inspirações do gênio brasileiro, era um tanto diferente e mais que inovador: uma caixa de metal, retangular, e alças de couro. Um deslumbre – e funcionalíssimo! – para a época! Louis Cartier passou, então, a comercializar o protótipo em sua famosa boutique na Rua de La Paix. E o modelo se consolidou na história da relojoaria... Tanto que, mesmo hoje com as tais cibernéticas invasões (celulares, iPhones, iPods), ainda há lugar para a tradição elegante de um legítimo Cartier. Um modelo tradicional ao estilo Santos, lançado em 2009 (mais de um século depois!) – com caixa de carbono e pulseira de lona –, por exemplo, é adquirido por seus apreciadores pela bagatela de R$20.330,00. E as pessoas nem usam mais relógios!...
Por Sayonara Salvioli