segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Radiografia de brinco



Dia desses, eu estava sozinha num restaurante de shopping, almoçando tranquilamente, com os pensamentos elevados à evasão, quando uma voz me interpelou:
– Desculpe interromper... Posso tirar uma radiografia do seu brinco?
– ???
Olhei para a mulher: era ruiva, alta, e apesar de ostentar bons trajes e adereços, tinha qualquer coisa de primária. Também exibia certa desfaçatez.
Meio sem graça, percebeu que precisava se explicar:
– Ah... Desculpe o mau jeito. Meu nome é Andréa Couto; sou designer de joias – e tirando o cartão da bolsa – Tenho uma loja de bijouterias aqui perto, o endereço tá aqui... E eu a-d-o-r-e-i o seu brinco! E quero tirar uma radiografia dele!
          Designer de joias ou de bijouterias? E... como assim radiografia de um brinco?
Naquele instante, só vinham à minha mente definições usuais do termo radiografia (em Radiologia, processo que permite obter, numa superfície sensível, a imagem de um objeto em raios X)... Mas também me ocorreram outras ramificações de semântica para o vocábulo, também usado para se designar uma espécie de detecção de uma instituição, de um eleitorado, de determinado perfil etc. Mas radiografia de brinco era uma expressão inusitada, pois como poderia alguém desejar verificar a estrutura interna do brinco? Talvez a ideia fosse identificar a natureza de suas pedras? Não, não pode ser isso; não deve ser uma curiosidade típica de ourives ou algo parecido. A menos que seja...

– ...Uma xerox do seu brinco, entende? – tornou a mulher.

– Ahh... entendo! Pode tirar, sim... claro! 
 – eu disse, meio sem jeito. 
– Olha, você pode até vir comigo, tá? Sei lá... no mundo de hoje, você pode até achar que quero afanar o seu brinco – falou a desconhecida interlocutora, dando-me tapinhas no ombro.
– Imagine! Não estou pensando isso.
– Ah, mas pode até pensar... Um brinco lindo desses! – e abaixando a voz, perguntou:
– É joia?
– Não; é bijou.
– Ah, sim, então eu posso levar?
Meio sem jeito, respondi tirando um dos brincos. Não pude deixar de perceber que as pessoas da mesa ao lado nos observavam, e o garçom que atendia à minha mesa não parava de passar para lá e para cá, tentando entender a estranha abordagem da desconhecida.
Andréa Couto arregalou os olhos quando viu que eu lhe estendia o brinco, e me puxando pela mão, disse:

– Venha comigo! Tem uma papelaria aqui nesse piso mesmo, aqui do lado.

Voltei, peguei a minha bolsa de mão, deixei minha executiva na cadeira onde estava, disse ao garçom que já voltava (sou conhecida da casa) e acompanhei a mulher. Entre o restaurante e a papelaria, ela me explicou melhor a situação:
– Sabe, quando vejo um brinco de que gosto muito costumo reproduzir, fazer outro igual, sabe? Mas esse seu é muito sofisticado, e eu achei melhor vencer a vergonha e te pedir emprestado pra uma xerox...

 Eu só assentia com a cabeça. Mas não pude deixar de comentar (alertar):

– Reproduzir, copiar... Olha, não quero ofender, de jeito nenhum. Mas não gosto desses verbos, mesmo! Por que não experimenta criar? Nada como a originalidade, não acha? Além disso, o artista/designer que criou a joia ou bijou não irá gostar, certamente, de ver sua obra reproduzida por aí... Aposto que você também não gostaria de ver um design seu em alguma outra vitrine... já pensou?

A impostora (?) não se fez de rogada:

 – Que nada! Jogos do comércio.

Bem, eu quase falei que ela estaria incorrendo em crime, mas vi que não poderia ajudá-la  a   manufaturar uma nova ética para si. E meio sem que entender por que motivo (Ah, o meu brinco já estava com ela), segui no fluxo para a papelaria do segundo piso...
Chegando à loja, a criatura pediu “uma xerox deste brinco”, e o balconista a olhou com estranheza, mas atendeu a seu pedido de cliente, naturalmente. Quando o brinco já ia ser “radiografado”, a designer se dirigiu a mim, novamente:
– Desculpe abusar, mas você não poderia tirar o outro brinco? Vai ficar mais bonitinho... E também pode haver algum detalhe melhor em um que no outro, e isso pode facilitar a confecção da cópia do brinco, entende?

Entendi e tirei o segundo brinco, passando-o às mãos da personal designer. Depois, fiquei ali parada, disfarçando um risinho incontido de canto de lábio. Não consegui conter o riso, porém, quando ela reforçou ao atendente:
 – Por favor, faça uma cópia, para ela levar também – referindo-se a mim.

Voltamos ao restaurante, onde ela antes tinha ido almoçar, diga-se de passagem. Até que rimos despretensiosamente, e Andrea pareceu-me, então, bastante simpática, apesar de um tanto inconsequente... Afinal, saía a copiar arte alheia por aí. Bom, eu ainda não podia imaginar que tipo de arte seria essa, mas era alheia, e isso, por si só, condenava a minha interlocutora da vez. Mas tentei não armar a teia inflexível   do julgamento. Só exercitei um pouquinho a minha percepção do humano...

Como antes eu já estava terminando de almoçar, pedi apenas uma sobremesa. Mas a designer, que agora dividia a mesa comigo, almoçava a velozes garfadas:
– Não repare a minha afobação, mas hoje não tomei nem café da manhã, por causa da correria. Estou com fome mesmo! – e ria como que de si mesma.
Levantei-me e já ia me despedindo quando a nova conhecida perguntou:
– E você, o que faz? Qual a sua profissão?
– Sou escritora. E já fiz uma radiografia sua para o meu blog.
O leitor sabe que procedi a tal raio X desde o começo da narração; desde o primeiro momento, fiz o meu juízo de valor. Mas a mulher não sabia. E, apesar de antes aparentemente tão descontraída, revelou-me num só olhar um claro temor. Li nas entrelinhas como que um pavor seu de ser descoberta, desmascarada em sua identidade (será que falsa?!), como se a nós, escritores, fosse facultado o dom de fazer radiografias de almas alheias por aí, perscrutando suas verdadeiras intenções, suas frustrações e insuficiências, enfim, seu medo de serem vistas tal como são, sem qualquer possibilidade de disfarce ou autossublimação. E será que não podemos mesmo?


Por Sayonara Salvioli